MAIS UMA DONA MARIA

A violência dos detalhes

O cinema de fluxo é um estilo não muito explorado em sua totalidade. É mais comum vermos cineastas que tangenciam essa linguagem, sem se aprofundar ou construir uma narrativa que esteja inteiramente de acordo com o estilo. Talvez por medo de construir uma trama enfadonha e longilínea, os realizadores evitam percorrer pelos caminhos do cinema de fluxo, que foge da construção clássica cinematográfica, ao abandonar a narrativa como foco primordial da produção, situando-se no naturalismo estático e realista dos sentidos. Pensar a sensibilidade como trama vital e trazer esse “sensível” para fora da tela, tirando cada espectador de sua catarse pessoal: isso é o cinema de fluxo.

Foi uma grande surpresa me deparar com o rápido e dilacerante “Mais Uma Dona Maria”, exibido no programa Oficinas Brasil e dirigido por João V. Guimarães. O curta é fruto da oficina paulista Cine Inclusão. O resultado é um filme independente, periférico, simples e lancinante.

Após assistir aos filmes do programa Oficinas, notei que a grande maioria das obras eram documentários, dando vazão para duas animações, três ficções e um pseudodocumentário. “Mais Uma Dona Maria”, justamente, era esse curta que misturava a linguagem documental com uma ficção naturalista e humanista, explorando uma narrativa rápida, com um clímax surpreendente que ocorre por trás da cena. Um clímax intangível, implícito e — infelizmente — realista.

O filme retrata Maria Aparecida sendo entrevistada por um grupo de documentaristas. É a primeira tomada, e Maria explica sua origem — como saiu do Nordeste, veio para São Paulo e participou da ocupação do morro de Heliópolis, onde mora até agora com seu filho mais novo –, fala brevemente sobre seus quatro filhos, sendo que três saíram de casa quando casaram e Davi, o caçula, apresenta uma revolta por morar em uma comunidade pobre; fala, também, sobre sua relação tranquila com Heliópolis, o lugar onde mora desde que chegou à cidade grande, e sobre sua vivência diária.

Em meio à entrevista, Dona Maria é interrompida algumas vezes por barulhos de fogos, que irrompem repentinamente, e por barulhos de carros que passam perto de sua casa com música alta. Ao passo que os ruídos cortam a entrevista, sentimos uma certa tensão crescente que preenche o único enquadramento do filme. Maria está sentada em seu sofá respondendo ao questionário com calma e um tanto de descontração.

A mulher parece se preocupar quando fala de Davi, o mais novo, e suas influências pelo bairro. Davi não gosta de onde mora e vive apresentando comportamentos preocupantes, inclusive conviver com um grupo de amigos que sua mãe não hesita em denominar de “pessoas ruins”. Dona Maria expressa sua inquietude aflita em relação ao caçula, porém continua divagando sobre o lugar onde mora, afirmando com convicção que nunca encontrou problemas com ninguém da comunidade, nem mesmo com o “comando” — grupo de traficantes que controla o morro de Heliópolis.

Porém, num súbito aterrador, a narrativa do filme muda completamente. Logo, conseguimos entender que, na realidade, aquilo não é um documentário. Porém, a atuação naturalista é feita com tamanha maestria que, devo admitir, ainda fiquei com o pé atrás quando tentei me convencer de que, na realidade, estava assistindo a uma ficção.

Dona Maria grita. A câmera continua fiel ao seu único enquadramento. Os créditos surgem, sobrepondo um choro desesperado que acompanha a projeção até o fim.

O assassinato de jovens negros é a medula do curta. Mais uma Dona Maria perde seu filho para a violência de um modelo social desigual, no qual as insurgências da classe trabalhadora e de baixa renda sofrem retaliações diárias e acabam caindo no ostracismo, tornando simples rotina a bestialidade da agressão contra a população periférica.

“Mais Uma Dona Maria” consegue se transformar em uma metalinguagem em que a violência mora nos detalhes. Toda a discussão acerca da questão proposta pelo filme fica para cada espectador, que poderá refletir sobre a eliminação de uma parcela social graças à desigualdade. O cinema de fluxo foi tratado com maestria por jovens estudantes de uma oficina cinematográfica, trazendo para a cena independente e periférica uma visibilidade que faz jus à proporção da militância por trás de um pseudodocumentário.

(Gabriel Faustino)

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