O PAPEL DO QUE ESTÁ MADUROEla que Mora no Andar de Cima, de Amarildo Martins

por Fernanda Queiroz

Alto-astral e com múltiplas camadas de paixão sufocada, Ela que Mora no Andar de Cima nos carrega em uma breve jornada pela subversão dos valores do amadurecimento. Marcélia Cartaxo nos faz mergulhar em sua personagem Luzia, que vivencia um sentimento atemporal por sua vizinha Carmem: o amor platônico.

Ao vermos uma senhora com marcas do tempo aparentes como Luzia fazendo uma tatuagem, saímos da zona de conforto sem pensar duas vezes – para, poucos segundos depois, descobrirmos que Carmem possui o corpo repleto de tatuagens, situação que nos dá um norte para a narrativa.

O desespero transformado em impulso e a necessidade de validação pela protagonista são transmitidos com humor pelo filme. A construção da atmosfera aos olhos de alguém com sentimentos não correspondidos pode ser evidenciada ao compararmos os apartamentos das vizinhas: enquanto o de Carmem é iluminado pela luz do sol refletindo sua postura jovial e livre de amarras, o de Luzia é repleto de cores sóbrias, luzes duras e pesadas.

Ao construir a relação das duas acerca do doce e do amargo – como nas cenas em que ambas fazem shots de tequila –, enxergamos o quanto o estereótipo da velhice e do amadurecimento poluem nossas mentes sobre o amor. Como se o que está maduro não pudesse sentir com espontaneidade ou agir de maneira impensada.

O trabalho de Amarildo Martins é repleto de escapismos que tornam a experiência interessante. Luzia se torna uma cobaia muito receosa dos doces (nem tão saborosos) de Carmem, que é representada de maneira sensual, e assim a idade é retratada de maneira pouco banal a um público mais jovem.

Em contraponto, na cena dos insetos na base do assento do banheiro quando Luzia se ausenta da presença de Carmem, ou quando ela espera à frente do telefone esperando o momento certo de atender, somos preenchidos por uma ideia racional da relação das duas. De maneira abrasiva, Luzia permanece abrindo mão de sua individualidade em busca de ser vista pela vizinha, vivendo em solidão perpétua.

“Se você pensa que meu coração é de papel, não vá pensando pois não é. Ele é igualzinho ao seu e sofre como eu”, é o trecho da trilha de Sérgio Reis que ilustra o ápice da conexão entre a figura das vizinhas, e que acaba tendo um fim abrupto no terceiro ato, nos deixando completamente desconcertados. A troca da cobaia de Luzia pelo sobrinho de Carmem é o que ilustra o fim da construção psicológica de um possível amor recíproco. E assim, Luzia prossegue sua vida ao se deliciar com um grande bolo de chocolate, nos dando um claro sinal de como Carmem ficará para sempre em sua vida.

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