O PESO DE (AINDA) ESTAR AQUI – Mostra Internacional 5: Ainda Estou Aqui
por Gustavo Guilherme da Conceição
“[…] Estou bloqueado entre dois tempos, o tempo da referência e o tempo da alocução; você partiu (disso me queixo), você está aí (por isso me dirijo a você). Sei então o que é o presente, esse tempo difícil: um simples pedaço de angústia.”
(Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso)
Uma criança a caminho de uma praia pede ao pai um caranguejo de pelúcia como presente. Um barco navega em stop motion sobre um mar de cogumelos. Em uma noite de solidão, dois desconhecidos se percebem, trocam palavras, medos e outros afetos. Um projetista se lamenta de seu trabalho em um cinema pornô de Roma. Uma mulher negra trabalha, entre apagões e tarefas intermináveis, até sentir as consequências de seus gestos em seu próprio corpo.
Tais cenas são parte dos curtas-metragens da Mostra Internacional 5: Ainda Estamos Aqui, que, em sua configuração, reúne obras da Itália, França, Reino Unido e Quênia, em cinco filmes cujas imagens parece transitar entre o visto e o não visto, ou, talvez, entre o que se anseia mostrar e o que se prefere esconder, em jogos de cena que tensionam as linhas da causalidade narrativa, sensorial e fílmica.
Perdido (França), de Gaetan Vassart e Sabrina Kouroughli, vai da calmaria de uma tarde em família na praia – uma câmera estável que a tudo observa com atenção – a um frenesi causado pela busca não só do que será perdido, como já sugere o próprio título, mas também daquela primeira imagem de harmonia, de unidade familiar; agora, a câmera na mão estremece e desestabiliza o quadro, a cena, o filme. A forma fílmica é irremediavelmente alterada pela perda, pelo imprevisto, pela ausência não calculada.
Mas o homem que encara o mar ao final de Perdido provavelmente não é capaz de enxergar O Barco (Reino Unido), de David Robinson e Bryan Michael Mills, que navega no lirismo estético das ondas de stop motion em uma mise en scène que transita entre calmaria e caos, submergindo e depois retornando à superfície para seguir seu destino, até desaparecer no horizonte.
Talvez tal ressurgimento aponte para aquilo que a própria sessão, em seu título, não nos deixa esquecer: “Ainda estamos aqui”. Talvez o tema comum, por fim, não seja exatamente a ausência, a falta, mas o impacto irreparável das presenças no mundo — rastros, sombras, memórias, movimentos, sensações, sentimentos.
Dessa forma, portanto, é provável que o encontro que se dá em Bom dia Meia-noite (França), de Elisabeth Silveiro, movido por um diálogo que surge dotado de sintomas de desejo e afeição, mas também de medo e receio com o mundo, com a memória e com as interações, revele nos mínimos gestos o mais profundo desejo daqueles corpos desconhecidos. A solidão, por si só, não seria também uma presença?
Não por acaso, Ambasciatori (Itália), de Francesco Romano, se permite transitar livremente ao redor de encontros, e também de desencontros, entre corpos igualmente desconhecidos que buscam saciar suas pulsões motivadas pelo desejo carnal, numa espécie de santuário da pornografia. Esse lugar, cuja função se desdobra sobre o próprio filme (e na tela do cine pornô dentro da tela de cinema), condiciona a coexistência de todas as personagens a uma atmosfera de obscenidade, não no sentido moralista, mas imagético da palavra: tudo está posto, desvelado, visível, ao ponto em que até mesmo a insinuação de determinados gestos surge sem ar de mistério — a punheta filmada em determinado enquadramento, distante mas ainda guardando algum pudor, tem aqui o mesmo impacto narrativo de um pênis sendo acariciado em close.
Mas há em Ambasciatori um contraponto, presente em cena desde o primeiro plano: um corpo que trabalha. O projecionista do cine pornô é a única personagem que parece, até certo ponto, alheia àquela atmosfera. Apesar de também estar exposto às imagens explícitas dos filmes que exibe, elas implicam nele uma outra reação, a lembrança de uma presença exterior àquele contexto, um afeto fisicamente ausente.
Jua Kali (Quênia), de Joash Omondi, traduz essa lógica para uma espécie de crônica do cotidiano, onde a protagonista é um corpo negro, feminino, rodeado por outros corpos diversos que, aparentemente, não sofrem em si mesmos as consequências de seus gestos, tampouco parecem perceber as implicações de seus atos como motivo direto do movimento frenético daquele corpo, que só entra em cena enquanto corpo que trabalha. Se a câmera frenética investiga, incerta, a perda de Perdido, aqui a estrutura fílmica vai, entre um apagão elétrico e outro (leitmotiv que distancia o corpo-trabalhador dos demais corpos em cena), se condicionado ao ritmo de trabalho, como se trabalhasse junto, ainda que apenas observando — a imagem em movimento, o próprio cinema, é trabalho.
Por fim, quando a inquietação de Jua Kali é interrompida pelo que poderia ser, em outra história, a falha mecânica de um robô, o discurso parece querer retomar certa normalidade, como a da família na praia em Perdido. Mas um retorno incólume à superfície já não é mais possível, pois a norma(lidade) foi tensionada pelas presenças — conhecidas, desconhecidas, ignoradas, perdidas, reimaginadas, concretas, indecifráveis, reais, imaginárias — que aqui, finalmente, constituem o peso de ainda estarem aqui.