QUANDO A GENTE CHEGAR LÁ

Mãe solteira, pobre e em situação de rua

Exibido no Panorama Paulista 2, “Quando a Gente Chegar Lá” tem um título que passa a fazer muito mais sentido no eco do seu findar. Ele contrasta com o lugar nenhum de que mãe e filha dispõem como opções de vida digna. Diante da inocência da criança, que visualizamos perguntando o que de fato não aparece, tal como o imaginário social de “Mãe, já chegamos?”, também ensaiamos enquanto espectadores a expectativa de “quando a gente chegar lá”. As perguntas da criança não adentram a realidade, mas a tangenciam, como o “vamos carregar essa mala até quando?” do início do curta. A angústia desse impasse cunhado na imprecisão dramática é jogada na cara de quem assiste. Não há lugar para chegar.

Esse tipo de estruturação dramática, junto a um título que conversa holisticamente com o diálogo, uma captação de som direto estereofônico extremamente bem composta e junto às pequenas nuances de observação dos tempos de fala dos “personagens”, entregam com facilidade um lugar para esse curta-metragem, um lugar pensado nos mesmos moldes de “Era o Hotel Cambridge”, em que documentário e ficção se misturam, podendo ser chamado de docudrama ou ficção-documentário, um gênero que, quando bem executado, vem se mostrando muito eficaz em mobilizar atenções e chamar a atenção para uma realidade através do senso político de uma ficção passível, ou possível, de realidade.

Esse novo modelo em voga tem sido muito bem aceito pelo público, porém devemos entender que é de difícil execução, os atores precisam ser bons a ponto de parecerem não-atores para uma maior eficácia dramatúrgica, e o roteiro precisa estar impecável. Não são coisas fáceis de obter. Há passagens como a do atendimento no dormitório público, em que a intenção de burocratizar o atendimento pessoal se tornou rígida ao ponto de se tornar uma crítica brega, fragilizada pela falta de tom e deslocada da unidade da obra. Ora, até uma atendente diante de sua incapacidade pessoal pode lamentar sua própria impotência ou demonstrar alguma compaixão; ela também poderia ser usada pra aumentar a dramaticidade de um fenômeno que também está acima dela.

A teoria de a atendente ser mal aproveitada é melhor que a teoria de ela ser uma “vilã” que teria poderes de resolver o pernoite da mãe e da filha, e não o faz porque não quer ou porque se tornou insensível e tudo mais. Entendo que a segunda ideia destruiria a obra do curta num ato. Prefiro acreditar na primeira teoria, que inclusive é mais usual.

A atriz mirim dá a impressão de ter se apegado um pouco à suas falas, além de ela ter como proposta em roteiro pouca participação em um núcleo de apenas duas pessoas. Isso é um desequilíbrio muito acintoso. A menina parece apenas um fardo da mãe, quando deveria ou poderia contribuir para intensificar o lugar nenhum das duas com sua subjetividade infantil.

Dessa forma, o filme — dirigido por Rachel Daniel — tem seus méritos mais na proposta inicial e na relevância da problemática conjunta de ser mãe solteira, pobre e em situação de rua, do que na execução em si. Sempre que a trama se afasta da falta de lugar ou se centra em demasia na força de atuação das atrizes, o curta chama para si o peso de uma responsabilidade grande demais para conseguir, através dessa fórmula, estabilidade dramatúrgica que possa ter potência de influência marcante. É bom dizer: é preciso ser marcante para ser um ficção-documentário que atinja seu objetivo social.

(Rogério Henrique Gonçalves)

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