MIRANTES ABANDONADOS, REABITADOS, REVISITADOSHospedeiros Naturais (Reino Unido), de Nick Jordan

por Luis Gustavo Cardoso

O mirante abandonado, construído em torno da enorme árvore de pinho, é o objeto que abre o curta Hospedeiros naturais, filmado com câmera de visão noturna, em infravermelho, do diretor inglês Nick Jordan. São dois minutos em escala de cinza, um dia eterno em que predominam duas linguagens: aquela da imagem, textura áspera, objeto que se dá a ver, sombra que se infiltra na luz; e aquela dos sons, vento que passa nas folhas, rumor da floresta, a voz da mulher na rádio a fazer um índice de eventos catastróficos, pandêmicos, humanos: uma breve história da destruição. A voz e nosso trajeto são acompanhados pelo som de cordas que, quem sabe, oferecem um tema ao nosso próprio cortejo.

Mirante é a estrutura de madeira a partir da qual se pode ver o deserto do real, campos de caça, uma casa abandonada, vestígios da passagem do tempo. Mirante é também o olhar que mira as formas concretas, ingressa na paisagem dos escombros, examina as ruínas, recolhe objetos abandonados que souberam, por si mesmos, integrar-se à natureza. Galões de gasolina vazios, pôsteres da caçada, roteiros rasgados, placas que relatam a presença de animais ausentes. Blocos de concreto pendem de uma corda como dois tabletes de açúcar que esperam servir o chá ao dono da casa que jamais voltará. E o vento, as folhas, a luz de um dia eterno, e as colônias de fungos que crescem em todos os cantos com suas formas puras.

Entra-se na casa onde os colchões, camas, poltronas, cadeiras, lugares do repouso, sofrem o desgaste da ausência e do tempo. Onde ainda a ausência e o tempo são as sentinelas a cobrar passagem pelas portas, escadas e janelas, lugares da passagem. Apenas os morcegos desafiam a sua vigília e a nossa mirada: seu voo rápido, desordenado, orientado apenas pela surpresa, profetiza as pandemias que virão. Mas os morcegos não suportam a claridade invasora, o dia eterno a reinar na casa abandonada. No teto da sala, o seu corpo pequeno repousa e prepara o antídoto para o maior dos agentes destruidores, para o olhar humano que observa, passivo, a sua própria destruição. O morcego é, assim, o anti-humano, a bomba alada que a natureza preparou para a menos controlável de suas invenções.

Volta-se pela casa e andar por seus corredores é ter, de um lado, os retratos da catástrofe que já se abateu sobre nós. Do outro lado, a voz que profetiza, do passado, o evento futuro de cujo presente agora somos testemunhas. Ao fundo sabemos que tocam cordas para um cortejo fúnebre, sabemos do rumor do vento nas folhas, das asas rápidas que o morcego não controla. Sabemos da luz que entra. De um lado as imagens e do outro a voz, ambas correndo paralelas pelo corredor. Uma casa abandonada, assim como um planeta abandonado, tem muitas entradas. Entrar nela é fácil, difícil é sair. E assim como os morcegos, procuramos uma saída de emergência. E vamos pelos corredores. Sentimos que em algum momento a ficha vai cair: as imagens e a voz, que correm paralelas, quem sabe vão se encontrar dentro de nós. “Não é bizarro que esta criatura, a mais intelectual de todas, esteja destruindo a sua própria casa?”.

A voz que nos acompanha, do início ao fim, é da primatologista e antropóloga inglesa Jane Goodall, em entrevista sobre degradação ambiental e a pandemia. O seu depoimento dura dois minutos. O diretor Nick Jordan tomou-o, como a um mirante, e subiu por suas escadas.

PALAVRA E RESSIGNIFICAÇÃOO Fim do Sofrimento (A Proposta) (Grécia), de Jacqueline Lentzou

por Guilherme Guedes

Uma garota chora no transporte público enquanto ouve uma música. A imagem desfocada se torna cada vez mais nítida, mostrando a sua ansiedade. Ela desce na estação e sai correndo entre a multidão. A câmera inquieta a acompanha por trás. É assim que começa O Fim do Sofrimento (A Proposta): Sofia está em pânico. Mas o Universo, observando a mulher, decide intervir e dar-lhe uma resposta para suas aflições.

Há um desejo humano de tentar encontrar respostas para a existência, e muitas vezes essa busca é direcionada a um plano elevado. Alguns se voltam à religião, outros à filosofia ou à ciência, e ainda há aqueles que olham para o fantástico. O curta de Jacqueline Lentzou busca essa resposta com a ajuda da figura onisciente do Universo, não com o objetivo de revolucionar a existência, mas de tentar encontrar, num tom contemplativo, uma resposta para as angústias de Sofia.

O curta trata desse diálogo impossível entre a jovem e o Cosmos de uma forma abstrata, não propriamente através da imagem, mas do som. Em nenhum plano visual a personagem de Sofia conversa com o Universo: esse diálogo é reservado para a dimensão sonora, numa espécie de ligação interplanetária. É interessante notar também como o Cosmos, embora personificado, não possui um corpo ou voz própria. As falas do Universo para Sofia não são “ditas”, mas dadas através de legendas que traduzem os sons e ruídos que compõem a sua “voz”. Tal escolha da realizadora contribui para manter certo mistério da figura e da situação.

Imagens do espaço e da Terra são ressignificadas graças ao diálogo entre os dois personagens. O Universo conta sobre a origem de Sofia e de Marte, e o que vemos não são imagens do planeta vermelho, mas sim da própria Terra, que, graças ao novo sentido dado pelas palavras do Cosmos, se fazem entender como registros de outro corpo celeste. A fala é um dos principais elementos do curta, não só dando uma nova acepção ao que vemos, mas também criando imagens de grande lirismo e de difícil tradução audiovisual, como as descrições de Marte, no qual, segundo o Universo, a “água vem em diferentes cores e faz música”.

Aqui, ressignificação é a palavra-chave. Não somente as imagens ganham um novo sentido, como também as ideias passam por esse processo. Num primeiro olhar, pode-se entender a escolha do curta de trazer essa dimensão fantástica como um certo escapismo. No entanto, num olhar mais atento, não se trata de uma mera fuga da realidade para entretenimento. O que a narrativa busca é afastar-se de algo próximo – neste caso, a Terra e os problemas de Sofia – e olhá-los com maior clareza de um ponto mais afastado, buscando dar a personagem (e ao espectador) uma nova forma de encarar a realidade, um novo sentido para ela.

Através da palavra e da ressignificação das imagens e ideias, O Fim do Sofrimento (A Proposta) propõe um olhar contemplativo para o fantástico tentando encontrar nele respostas para angústias internas.

O REGISTRO FEMININO DAS ANCESTRALIDADES INDÍGENAS – Mostra Amotara 1

por Bernardo Bruno

Na Mostra Amotara 1, o registro cinematográfico se torna ferramenta de resistência das mulheres indígenas frente às reivindicações de causas como a inclusão social e política, a demarcação de terras e o fim da violência contra suas culturas e indivíduos. “No que você vai trabalhar com as comunidades quando crescer?”, pergunta o pai e diretor Yariato Juruna à sua filha em Mandayaki e Takino. Ela responde: “com isso (aponta para câmera)”. A câmera, o tripé e o microfone – ferramentas da contemporaneidade – são protagonistas fundamentais na preservação dos saberes e relações ancestrais. Cada gesto e ação em tela tem enorme valor e destaque – a tecelagem em Tecendo Nossos Caminhos, a produção com o cipó em Cipó Tupi, o idioma em Os espíritos só entendem nosso idioma  ou a relação de pais e filhos em Mandayaki e Takino e Pará Reté. Os cinco documentários foram dirigidos ou codirigidos por mulheres indígenas e foram selecionados do catálogo da Mostra Amotara – Olhares das Mulheres Indígenas, de 2021.

Apesar da urgência temática dos discursos, a forma dos cinco documentários não se deixa afetar completamente por essa indignação. Muito pelo contrário, as obras adotam o lírico, o contemplativo, o sublime ou até o lúdico e o infantil sem nenhuma pressa. Em Mandayaki e Takino, acompanhamos o cotidiano dos filhos de Yariato Juruna e Dadyma Juruna, casal de diretores do curta. A câmera de Yariato e Dadyma desce até a altura do olhar de Mandayaki, filha mais velha de três anos, e Takino, com apenas um ano de idade. Os diretores nos inserem no patamar infantil, e presenciamos cada brincadeira entre as duas crianças com a maior atenção possível. Se Mandayaki está brincando de peneirar alimentos com um ventilador quebrado ou ajudando sua mãe a moer um alimento com um pilão, a câmera se fixa praticamente no chão acompanhando cada gesto da criança, deixando os adultos em segundo plano. Quando vemos a sua mãe, a câmera registra de baixo para cima, nos situando no olhar daquelas crianças. O filme ludicamente nos transporta diretamente para a infância e lida com a questão geracional na passagem das práticas ancestrais para os mais novos.

Os filmes da Mostra Amotara nos transportam para dentro dos acontecimentos, sociedades e vivências. Nada é visto de fora para dentro, a essência de filmes que valorizam a diversidade e a importância da representatividade de povos com quase nenhuma voz no Brasil contemporâneo.

Se Mandayaki e Takino retrata o infantil no olhar da criança, Para Reté retrata a maternidade pelo olhar de duas mães: Elsa, mãe de Patrícia Ferreira Pará Yxapy, que também é mãe e diretora do filme. O filme expande o debate sobre ancestralidade, incorporando diversos elementos místicos nos diálogos e na forma. Para Reté revela-se o filme mais contemplativo do programa. Ferreira Pará Yxapy dilata o tempo dos planos, concedendo-lhes uma característica mística e poética, mesmo que ainda muito ancorada na realidade cotidiana. Numa das cenas, a cineasta explora a produção de artefatos tradicionais por Elsa, sua mãe; em outro momento, sua filha mexe no celular assistindo O Rei Leão. Logo depois, ela é vista andando de bicicleta vestida com uma camisa da seleção argentina, enquanto um reggaeton toca no fundo. O filme retrata esses contrastes geracionais e estéticos não com uma visão conservadora ou negativa, mas sim de aceitação, identificando tudo como parte do que é ser indígena em 2021. A cineasta lança assim um olhar contemplativo que encontra a beleza em todas as situações, das mais tradicionais às mais modernas.

De tantas ideias, fica a fala de Marta Tipuici em Tecendo Nossos Caminhos, de Cledson Kanunxi, Jackson Xinunxi e a própria Marta: “No início, o Nanã é frágil, vulnerável, desmancha nas mãos. Depois de colhido e penteado, é transformado em fio forte. Com muito trabalho, sua trama se torna rígida e resistente. Assim somos nós, povos indígenas. Tecer o nosso caminho é como tecer uma rede, fio por fio, para conseguirmos construir nossas vidas e nossa resistência.” O curta alterna cenas da vivência do povo Manoki, com foco nas interações de Marta Tipuici e sua avó tecendo uma rede. Enquanto se constrói a rede, fio a fio (ou plano a plano), se entrelaça um poderoso discurso político de resistência e valorização da tradição ancestral.

As obras desta seção mostram uma qualidade ensaística muito forte, sempre abordando temas políticos, fio a fio, através de um escopo micro do cotidiano de cada povo – entre o poético, o documental e o experimental – para compor um discurso macro, ou uma rede de discursos, que engloba causas nacionais. Que a Mostra Amotara contribua com a tecelagem de uma causa maior.

 

A LÍNGUA VIVA NO CINEMAOs Espíritos só entendem o nosso idioma, de Cileuza Jemjusi, Robert Tamuxi, Valdeilson Jolasi

por Luisa Rinaldi Petrucci

“Não falamos sobre isso porque dói”. Essa frase é dita pela narradora logo no começo de Os Espíritos só entendem o nosso idioma: nela é explicitada uma dor que a maioria de nós jamais terá a dimensão. A dor à qual a narradora se refere diz respeito ao etnocídio e suas consequências catastróficas, que incluem desde a morte física até a morte cultural e espiritual. O foco do filme, no entanto, repousa na dor da perda do contato com a língua materna. O próprio título revela a tristeza advinda do progressivo desaparecimento da língua, bem como o desejo de se restabelecer o contato com a linguagem tradicional, tida como ponte para o ancestral. O documentário, de tom ensaístico, nos convida a refletir sobre a luta, o território, o sagrado e os saberes indígenas.

O filme se inicia com um poderoso plano de abertura, no qual um grupo de meninos dança: devido ao longo tempo de exposição da câmera, a imagem torna-se borrada, quase como uma materialização dos próprios espíritos em questão, criando uma poética das imagens. Somos visualmente introduzidos ao contexto: desmatamento, lavouras, luta pelo direito à terra, cotidiano, natureza x cidade, passado colonial e tradições indígenas. No entanto, é a partir da narração que somos guiados pela reflexão: a própria língua sendo a conexão com a ancestralidade. Devido ao aspecto predominantemente oral das culturas indígenas, não há registros escritos do idioma, sendo necessário recorrer aos mais antigos para a sua perpetuação. O próprio contato com a língua é o resgate da ancestralidade.

Por sua vez, o cinema e sua linguagem são abordados no filme como uma forma de registro e resistência. Isso pode ser observado na cena em que se faz uso da metalinguagem, filmando-se o próprio ato de filmar. Dessa forma, os diretores se apropriam da linguagem do cinema como uma forma de registro de sua própria linguagem. Como a própria narradora explicita: “com novas tecnologias, um legado deixamos”. É o resgate da tradição e da ancestralidade, por meio da prática cinematográfica.

O grupo de cineastas que integram o Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky, de Mato Grosso, transformam o próprio fazer cinema em poesia. É a partir do próprio filme, e de sua possibilidade de construir narrativas, sonhos e de afetar realidades, que se tornou possível moldar a concretude das histórias e das experiências. Como é dito em uma cena: “Hoje não posso falar a minha língua, mas não vou desistir de fazer poesia nela”.

É a partir do cinema, um meio tecnológico, que ocorre o resgate e a afirmação do idioma. É essa apropriação de uma outra linguagem que ajudará na preservação da língua Manoki. É o próprio ato de filmar a fala “A língua Manoki viverá” no idioma original que contribuirá para sua perpetuação. A língua Manoki está viva no cinema.

 

HERANÇA ANCESTRALCipó Tupi, de Léo Mendez e Célia Tupinambá

por Victor Adriano Ramos

“Cê ouviu falar da Patioba?”. Essa é a pergunta que movimenta Cipó Tupi, nos fazendo entrar nesse universo que parece estar tão distante de uma realidade urbana, mas que se mostra muito mais familiar do que imaginávamos. O Patioba a que a pergunta se refere é uma espécie de palmeira de onde é possível extrair o cipó do título. As personagens que conduzem essa narrativa nos apresentam a raiz exposta, mostrando a forma correta de remoção do cipó, que podemos visualizar ocupando todo o campo da imagem.

O plano aberto nos ajuda a ter dimensão da imensidão das terras, os cipós parecem ganhar vida e se entranham um no outro, mas há um alerta: ao remover as raízes, elas acabam por matar a “mãe”. É preciso cuidado, existe uma sabedoria para a remoção sem causar desgaste à natureza. Esse conhecimento é passado de geração para geração. Mas na atual circunstância, com o avanço do desmatamento e a não demarcação das terras indígenas, aqueles que lutam para preservar a tradição e a memória de seu povo se veem minados. A mensagem é clara: é preciso demarcação já, para a preservação não só do espaço ocupado, mas das tradições milenares.

A herança ancestral não é manifestada apenas nos cuidados com a natureza. O curta explora a produção artesanal que conduz o dia-a-dia daquela população. São itens como bassouras e cestos produzidos a partir do cipó extraído sabiamente por essas famílias. A presença diária desses objetos está intrinsicamente ligada à memória daqueles que se beneficiam da prática. A personagem principal compartilha sua história de fuga: ainda jovem, ela pensava em abandonar a família, e para isso usaria um cesto produzido por ela mesma, no qual levaria os seus pertences. Ao rememorar esse fato, ela sorri, assim como todos os rostos que o olhar da câmera captura, revelando não só a familiaridade com a prática, mas o bem-estar provocado pelo hábito, herdado dos parentes distantes.

Naturalmente, algumas coisas eventualmente deixam de existir ou não são mais produzidas, e as habilidades do trançado do cipó encontram novas utilidades. Esse processo é natural, mas corre o risco de ser aniquilado pelas invasões, pelo desmatamento. A entrada de outros grupos revela uma outra lógica de se relacionar com a herança dos antepassados. “Nada se acaba, tudo serve pra gente” é a lógica que prevalece dentro da comunidade; “a pessoa não nasce sabendo, tem que aprender”. O que é ensinado dentro da aldeia é justamente a preservação não só da natureza, mas de toda a cultura, que se vê ameaçada pela falta de uma política que assegure os direitos das populações indígenas.

A partir da intervenção estética, a tela se enche dos vários termos que designam os objetos feitos a partir do cipó. Estes não são apenas itens; eles mantêm a função de materializar uma herança ancestral. Cipó Tupi funciona como um documento político, um registro histórico feito através da imagem. A enchente de palavras que domina a tela para pontuar os diferentes produtos e as imagens dos vários cestos e bassouras nos remete às histórias de um povo que tem a sua voz e sua imagem constantemente apagadas. Num grito em consonância com a imagem, exigimos: Demarcação já!

 

FILMES PARA TEMPOS DIFÍCEIS – Mostra Brasil 1 – Estamos Vivos!

por Gustavo Rego

A Mostra Brasil 1 – Estamos Vivos! apresentou filmes que retratam a angústia de viver em meio a uma crise sanitária, econômica e política num país da periferia do capitalismo, onde a crise global ganha contornos mais dramáticos.

Luna Quer Sair, em seus pouco mais de 2 minutos, apresenta de forma doce e divertida o desejo de romper o isolamento e explorar o mundo – o que a protagonista finalmente atinge por meio da arte e da literatura. Uma animação em stop-motion marca a entrada da fantasia na narrativa.

Nervo Errante apresenta uma perspectiva bem menos otimista. Com um estilo que o aproxima do fantástico, o curta apresenta uma designer em home office com problemas financeiros e à beira de uma crise de ansiedade. Parte do filme apresenta uma narrativa clara dos motivos que estão causando ansiedade na personagem. Outra parte é composta por uma montagem acelerada de imagens à primeira vista aleatórias, mas cuja dinâmica sugere o estado mental da protagonista. A combinação perfeita entre o narrativo e o sensorial fazem qualquer pessoa que já sofreu de transtorno de ansiedade sentir-se na pele da personagem. Para fechar, utilizando efeitos especiais surpreendentes, o filme apresenta uma potente metáfora da síndrome do burnout.

Mas ficar em casa é um privilégio em tempos de pandemia. Nesse sentido, é fundamental conhecer o documentário Pandelivery, que apresenta a vida dos entregadores de aplicativo neste contexto. Com uma montagem acelerada, glitches e uma trilha sonora pesada, o filme traz para a sua forma a sensação de urgência vivida pelos entregadores. Sem jamais poder parar, sequer por motivos de doença – pois acarretaria no bloqueio do aplicativo e acúmulo de dívidas –, os trabalhadores arriscam suas vidas no trânsito selvagem e veloz em troca de poucos reais por quilômetro rodado. O filme aproveita o carisma de Galo, líder dos Entregadores Antifascistas, uma dessas grandes lideranças da classe trabalhadora que surgem de tempos em tempos.

Retratando o mesmo problema, temos Gilson, documentário cujo estilo lembra muito o clássico Ilha das Flores. A livre associação que conduz a narrativa, à princípio, parece aleatória, mas contribui não apenas para causar efeito cômico como para compreender a relação entre a parte (o entregador Gilson) e o todo (o capitalismo brasileiro contemporâneo).

Porém, as angústias brasileiras não estão apenas relacionadas à pandemia. Utopia apresenta garimpeiros que enfrentam um trabalho duro e perigoso em busca de um sonho. Mas, como o título sugere, este sonho é inalcançável. Essa contradição entre sonho (belo) e realidade (dura) é expressa no contraste entre, de um lado, planos do desmatamento, do riacho sujo, das marretadas na parede; e, de outro, do rio por onde navega uma criança e das partes da floresta ainda viva. A síntese é retratada pela dança sublime de uma moça suja de terra.

Viver no Brasil não é fácil. De acordo com levantamento feito pela Organização Mundial da Saúde em 2020, o Brasil é o país com mais vítimas de transtornos de ansiedade no mundo e o quinto com mais casos de depressão. A pandemia certamente agravou este quadro. De acordo com pesquisa encomendada pelo Fórum Econômico Mundial em 2021, 53% dos brasileiros relataram piora em seu quadro de saúde mental no último ano. A falta de medidas efetivas de amparo econômico e contenção da disseminação da covid certamente contribuíram para isso.

Os filmes da Mostra Brasil 1 – Estamos Vivos! retratam essa realidade. Por que ver filmes sobre a dificuldade dos nossos tempos justamente quando se está vivendo essa angústia? Porque a arte tem seu papel terapêutico. Somente entrando em contato com as dores, sociais e individuais, é que será possível encontrar as curas. Em Luna Quer Sair, por exemplo, a angústia do isolamento encontra a cura na fantasia e na arte. Em Pandelivery, a cura para a injustiça social é a revolução, indiretamente sugerida por Galo. Mas mesmo que a narrativa do filme não apresente solução para a dor, como em Nervo Errante, o espectador se sentirá provocado a encontrá-la para além do filme.

Apesar dos tempos difíceis, estamos vivos!

QUASE VIVANervo Errante, de Bruno Badain

por Vera Sampaio

Atender ligação de chefe pode ser mais aterrorizante do que bater de frente com muito espírito por aí. Nervo Errante, de Bruno Badain, mostra o horror de um ataque de pânico motivado por um trabalho estressante e precarizado. A protagonista do filme é Valentina, uma ilustradora trabalhando home-office num quarto-e-sala minúsculo e mal iluminado, com milhares de objetos entulhados por todos os cantos, que acaba, de modo surrealista, perdendo a cabeça pela alta demanda de trabalho.

Para mostrar a ansiedade pela qual a protagonista passa ao longo da narrativa, o realizador articulou as cenas de Valentina trabalhando e se comunicando com o chefe com imagens de arquivo num ritmo frenético. É principalmente por meio da montagem que o filme consegue transmitir ao espectador a sensação de pânico pela qual Valentina está passando. De início, vemos imagens aceleradas que representam uma natureza selvagem que a invade, tomando seu corpo. São imagens e sons com grande potência de vida, como fungos, plantas, lesmas e formigas crescendo e se expandido. (Essas imagens dialogam também com o trabalho de Valentina, pois elementos como plantas e cogumelos são típicos de colagens e arte digital, logo é como se o seu trabalho realmente penetrasse na pele e ganhasse vida).

Em seguida, assistimos a filmagens de ratos e macacos presos em laboratório, frangos degolados e prontos pra serem distribuídos em escala. Essas cenas remetem à claustrofobia de uma vida aprisionada e a um trabalho extenuante no qual as pessoas submetidas a ele são desumanizadas e obrigadas a produzir como peças de uma indústria. Assim, essas cenas espelham a condição de Valentina e também a de muitos brasileiros nesses tempos de crises acumuladas e de extrema precarização do trabalho.

A forma de intercalar o som e o silêncio também confere a sensação de caos, nesse filme profundamente estético, que procura o tempo todo mexer com os sentidos do espectador. Os olhos esbugalhados de Valentina e os sons estridentes seguidos de momentos de silêncio nos permitem entrar na mente e no corpo da personagem e sentir sua agitação e exaustão. O toque de chamada do Skype, somado aos milhares de ruídos que se acumulam na tela e na mente de Valentina, nos incomoda, angustia e assombra. Até o avatar de Edney, chefe de Valentina, em close, na ligação, consegue ser realmente assustador. Valentina é desmembrada, seu corpo é torcido e retorcido, ao modo surrealista, inserindo o filme de vez no gênero fantástico.

O trabalho de Valentina gera ansiedade, o que a faz precisar de remédios. Pra conseguir esses remédios, ela precisa trabalhar. Quando o trabalho não paga os remédios, o que acontece? Ela perde a cabeça? Ou esta é decepada? Agora com a cabeça desmembrada do corpo, o zumbido da voz de Edney ecoa sem resposta pelas paredes do quarto escuro e cheio de coisas quase vivas: “Valentina?”.

A CORPORIFICAÇÃO DE UMA MEMÓRIA EXTERNAUtopia, de Rayane de Penha (AP)

por Heitor Montipó Lopes

Após lançar em 2017 um de seus primeiros trabalhos, o curta “Cartas sobre nosso lugar: mulheres do Vila Nova”, a diretora Rayane de Penha chega com uma nova obra, desta vez captando uma essência bem intimista e investigativa de um espírito próximo. Uma filha procura histórias e relatos vividos por seu pai, que morreu no garimpo, traçando um paralelo histórico e social frente à prática econômica e a situação financeira e emocional daqueles que precisam desse trabalho para sobreviver.

A construção narrativa do documentário se utiliza bastante de relatos falados, de indivíduos que trabalharam no garimpo, comentando a prática e trazendo questões que só quem viveu sabe. Mas o conteúdo não impacta por ele mesmo, deve ser acompanhado de uma forma, de uma articulação visual e linguística que potencialize aquilo que é mostrado. Rayane não só dá voz a rostos, mas os preenche de identidade e sentimento. Existe ali uma melancolia bem vigente, uma dor, um pesar que paira enquanto histórias são contadas, imagens acompanhadas de uma melodia lírica, intensificando os laços mais dramáticos. Mas a diretora equilibra sua encenação com sensibilidade e um estilo que abraça o espectador e aqueles sobre quem comenta, fazendo do luto uma mensagem de carinho e lembrança.

Tal aspecto cativante da obra se dá muito pela forma com que a cineasta filma tudo que é fora dos relatos pessoais. O modo de filmar um martelo batendo em uma pedra, a mão passando no rio, os toques do corpo na terra. Por mais banal que isso pareça, contribui para a formação de uma lógica cênica, do estabelecimento de um contato, de uma textura narrativa que trará o espectador para mais perto daquilo que é evidenciado. Não se trata somente de expor um drama, mas também de trazer signos, expressões, movimentos e gestos que consigam transmitir para a tela aquilo que não é dito.

É como se a procura de Rayane não se reduzisse somente a achar relatos ou resgatar as memórias de um homem, mas estender o espírito de corpos para a terra, traçar uma ligação entre o ser e o espaço – indissociáveis dentro dessa prática econômica. A materialização de uma aura terrena e humana se dá por uma aproximação de meios, aspectos e traços reconhecíveis, focando não só em um significado aparente, mas num efeito prolongado e conjunto.

O termo utopia, que dá nome ao curta, remete a algo distante e inalcançável. É como se a diretora, em seu processo, entendesse que realmente existem cenários e desejos que não vão se materializar. Ela se debruça naquilo que é tangível, no que está ao seu alcance, trazendo para sua obra uma fluidez sentimental, sensorial e natural do mundo para o mundo.