Dia branco: o mundo daqui, o mundo de lá

dia branco

João Gabriel Villar da Cruz –

Um filme pode ser de longa, média ou curta metragem e, nessa lógica, um curta nada mais é do que um filme mais curto – abaixo de quinze minutos –, e a sua única diferença em relação ao longa está na duração. Pensamento plausível e perfeitamente condizente com a nomenclatura. Por isso mesmo que devia haver outro nome: um curta não é só um longa curto. Curta-metragem que quer ser longa se perde em si próprio, um curta deve ser emancipado do imaginário de longas para poder respirar sozinho.

Não se trata de tom ou de ser ou não narrativo. Trata-se de uma consciência dos limites palpáveis – de tempo, de ambição – não como gesso mas como estímulo. Em vez de adaptar o que se quer dizer ao espaço do curta, simplesmente, dizer… um curta. Parece que – e isso não é a colocação de uma regra do bom curta, apenas uma constatação nascida da observação – um curta não quer dizer, simplesmente diz, é dito. Ao contrário do longa, onde a extensão dos acontecimentos que se desenvolvem e relatos que se entrelaçam tornam muito mais consciente o trabalho do autor – assim como a recepção do espectador –, um curta pode se permitir ser e acontecer. Talvez, tentando-se examinar o que mais se salta aos olhos dentro da produção de curta-metragem e colocando-a frente aos longas, possa-se encontrar nesse fator uma diferença essencial – mas não arbitrária – entre os dois formatos.

Em um dia frio e sem sol, três meninos estão em um pico, onde não tem sinal de 3G (“O bagulho que entra Facebook, Twitter, e-mail”). Demoramos para ver seus rostos, a princípio eles são apenas presenças, palavras soltas. O mundo ficou lá em baixo e dele aqui só existem as imagens armazenadas no celular – fotos de família e amigos, tiradas a esmo, que nos são apresentadas a princípio – e trivialidades sendo faladas. Ou ao menos assim parece: perdido entre as corriqueiras conversas dos meninos, está um amigo morto, cuja missa acontece lá em baixo, em uma igreja que mal se vê por entre a neblina, enquanto os três se isolam no espaço tão vazio quanto o dia parece ser lá em baixo.

Nesse meio delicado, a câmera, que correria o forte perigo de ser uma intrusa ali, resolve se esconder atrás da própria paz do dia: sua presença ali é tão natural quanto a da neblina, uma câmera tão tranquila quanto o dia – branco, sereno, calmo, melancólico –, que mapeia a ação com uma leveza quase imperceptível, e também escorrega dessa de volta para o céu e a nebulosa vista com a mesma naturalidade.

De intruso mesmo, só o grupo de turistas que aparece ao longe registrando, com um tablet, a presença naquele lugar – que não é deles –, mas que também some sem deixar marca que não seja um leve desvio no assunto dos meninos, assunto que vagava com tanta errância e calma quanto a própria câmera. Talvez até demais: O assunto desvia da morte sempre de raspão, e sempre marcado por uma forte indisposição e tristeza. O silêncio parece sempre preferível, quando suportável. Um dia marcado pelo peso de que eram pra ser quatro ali, sempre foram quatro, e agora a única evidência palpável do quarto que não voltou é uma fita amarrada na árvore – é sempre alguém diferente, entre os quatro, que escolhe onde ela vai ficar –, que permanece lá, ainda demarcando a corrida que os meninos ainda competem.

Ora o silêncio pesa, ora a palavra se perde. A verdade é que são todos tão opacos quanto o próprio dia, parabéns aqui aos atores, que se deixam existir na frente da câmera – façanha muito mais difícil do que se pensa – ao mesmo tempo que permitem que seus personagens se retraiam. Para atrás da neblina. Para dentro das fotos. Para dentro do conforto da fraterna crueldade do outro, emulação de uma convivência que persiste em se fingir banal como sempre, como o céu.

Dia Branco está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Um ensaio sobre a cegueira e a cegonha

estatua

por Bianca Elias –

A curadoria que pensa unir, na mesma sessão, um stop motion engraçadinho à ficção surreal e a um drama familiar deve ter seus nós muito bem amarrados para tal arranjo. Na Mostra Brasil 4, a intersecção dos curtas-metragens exibidos acontece de maneira singela e com alguma quebra de linearidade que avisa o desafio da seleção.

De maneira geral, a sessão passa por um lugar desconhecido, mas que vem ganhando espaço na realização brasileira. Um cinema de gênero, guiado pelo hibridismo entre o suspense e o terror, que aprimora seu conceito narrativo pela tensão atingida por meio da não evidência, do não mostrar. Filmes maturados na ausência de história direta e manifesta, que abrangem o mistério e a dualidade das ações nas sensações do espectador, ou que, em terreno diegético, desconhecem os personagens sobre seus próprios percursos. Ainda, o julgamento de suspense travado neste tipo de produção encontra abrigo no referencial internacional, deslocando ao mesmo tempo em que encontrando um eixo particular do cinema brasileiro.

Cloro, dirigido por Marcelo Grabowsky, estreia seu primeiro plano com um feixe de luz que aparenta vir do olhar da protagonista para o sol. No entanto a adolescente Clara, vivida por Ana Vitória Bastos, não procura um lugar ao sol; já o tem todo para si. A repercussão da vida ociosa na beira da piscina de uma mansão no Rio de Janeiro é gerada através de acessos de raiva, sonhos eróticos com o empregado negro e a nascente de um desejo da morte do pai. O curta se desenvolve pelo progresso das pistas que levam à imaginação do que se trata o final, mas os diálogos insistem em esconder o que é que de fato acontece na vida da família. Sabemos apenas das demonstrações inconscientes de Clara que, não podendo ter nada, pode ter tudo. Fundamentado em uma ficção de ordem familiar, Cloro carrega elementos tropicais tal como o sol, a manga e o corcovado, mas definitivamente não se funda na realidade brasileira, e muito menos na realidade da família brasileira.

Estátua, no mesmo limite, atinge seu percurso de começo meio e fim por uma mise en scène operadora da duplicidade do observador e do observado. Entre o voyeurismo encarnado pela câmera distante e a parcialidade da câmera próxima sincronizada com o som da respiração e o coração batendo forte, a diretora Gabriela Amaral Almeida situa um suspense dentro de uma locação com apenas dois personagens centrais – Isabel, uma babá grávida, e Joana, uma menina quieta e aparentemente aborrecida com tudo. Também em voga o abandono familiar, não há aqui esconderijo para possíveis entrelinhas de trama: são apenas duas as suspeitas pelo desconforto em cena, embora o desfecho seja um bocado inesperado. Alinhado com o fantasioso, Estátua opera um thriller despreocupado em contextualizar a vida lá fora e tampouco interessado em falar propriamente do sentimento infantil de desamparo e solidão paternal/maternal. O que de fato procura são dinâmicas para a exaltação do inseguro, com isso propondo a exploração dos ângulos, dos jogos corporais e das alterações graduais na relação entre a babá e a menina.

Permanecendo no campo da decupagem que vai ao encontro com a situação em tela, Vento Virado, de Leonardo Cata Preta, encarna a busca para a gênese por meio do movimento de contrastes. O caminhar no escuro e o encontro no claro montam uma busca por identidade e a posterior rejeição das raízes naturais de um homem que com seus 40 anos. Uma simbiose de gêneros que se encanta pelo mistério e a apropriação do lugar nenhum apresenta sua forma assinalada por contrastes de luz e de enquadramentos por vezes tortos, cegos e estáticos em fotografia. O estado de limbo dos cômodos escuros, a apropriação da mulher negra, da reza, e dos penduricalhos quase curandeiros insere um teor espiritual ao filme que fazem sentido apenas no âmbito “homem branco procurando suas origens”, já que o personagem está mais para galã americano. A questão da origem, do não mostrar e do não falar é cara na medida em que não há desenvolvimento da ligação entre o homem e esses elementos tão distantes à sua ordem natural. Evidente que o elo encontrado de cada um com cada qual é sempre pessoal e talvez a particularidade dos elementos seja de esfera absolutamente autoral, mas a injeção da matéria parece forçada a discutir uma ancestralidade que não necessariamente faz parte de todos nós.

A reminiscência de um cinema autoral, que vai do nonsense, passando pelo terror e a comédia, categoriza a produção mais recente de Lucas Sá, Nua por Dentro do Couro. Para além do que possivelmente fala da relação entre condôminos de um mesmo edifício, a escancarada tentativa de se criar um estilo abrasileirado da violência urbana e irônica é funcional quando não sabota nossas verdades nos diálogos, em hábitos e nos costumes de se relacionar. Antes de tudo, a sujeição ao padrão, digamos, comercial de cinema, impede uma submissão aos próprios códigos desse universo. Do cupcake à música pop, os padrões na realidade apenas mostram-se como padrões do imaginário real. Depois e mais uma vez, a opção de não revelar segredos que ninguém sabe, ajudam o filme a se inserir nesse modelo de realização pautado apenas pela instigação da descoberta.

Mas o que vem então, a ser Fuga Animada, de Augusto Roque, nesse mar de produções, algumas mais bem sucedidas que outras, de ligar o holofote para o mistério em desenvolvimento? A quebra do peso, talvez. Uma animação que move a criatura e o criador em uma disputa constante traz consigo a reflexão do que é real em vida e do que é real em tela. Justamente, nas produções na sessão Mostra Brasil 4, abdica-se de certa verossimilhança real em prol da ficção que não busca o estado efetivo e concreto das coisas, mas sim a consolidação de um movimento revigorante para o híbrido thriller/suspense brasileiro. O ensaio é sobre a cegueira de um cinema ainda em surgimento, nascendo, se descobrindo no escuro e trabalhando através das evidências e, sem culpa, referências externas a nós.

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Mwany: a poesia do outro

mwany

por Beatriz Couto –

Capulana, em Moçambique, é um tecido utilizado de muitas maneiras. Ao mesmo tempo que uma capulana pode ser roupa, ela é toalha, é cortina, é tapete. As estampas coloridas e geométricas são marcas culturais de seu povo, e a diversidade de funções é reflexo de suas mulheres. Mwany, de Nivaldo Vasconcelos, nos apresenta Sónia e, com ela, toda a poesia da cultura moçambicana.

A geometria das capulanas é vista antes mesmo dos tecidos serem apresentados. A fotografia do documentário, com seus ângulos frontais e trabalho com linhas das construções, transforma o simples prédio em um reflexo do que está por vir. O elemento vazado da fachada se torna estampa, as escadas são listras e a protagonista marca seu lugar como parte da composição.

Sónia André veio ao Brasil estudar música e, com sua filha de seis meses na época, se mudou para Maceió. Ela saiu de Moçambique, mas Moçambique nunca saiu de Sónia. Ela canta, estende suas capulanas e ensina o idioma kimwani à filha. Na narração, conhecemos sua história por suas próprias palavras, e isso é o que torna Mwany tão especial.

Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, em sua palestra no TED em 2009, conta como sua colega de quarto na faculdade nos Estados Unidos se surpreendeu por ela falar inglês – na Nigéria, o inglês é o idioma oficial. Em seguida, Adichie passa a explicar o “perigo da história única”: a formação de estereótipos baseados no ponto de vista ocidental do resto do mundo. Segundo ela, a África é vista como uma coisa só, com catástrofes, pobreza e ignorância.

Nivaldo Vasconcelos não conta a sua visão de Sónia, mas sim ela mesma que apresenta ao público o que é ser uma mulher moçambicana. E não se surpreenda com seu português fluente, ele também é seu idioma oficial. Sónia nos afasta de uma visão única sobre Moçambique enquanto cobre o rosto de mussiro, pasta branca que vai além da beleza estética. Para ela, é com o rosto pintado que reafirma suas origens e se diferencia dos brasileiros. Com as músicas em kimwani, o idioma de sua região, o público é transportado para o outro lado do oceano, com uma poesia única do cinema.
As mulheres moçambicanas são como as capulanas, explica Sónia. A improvisação, a diversidade, o colorido, a beleza. E enfim, com nostalgia, ela diz que voltará para Moçambique, por mais que goste do Brasil. Lá estão suas raízes, suas tradições. Lá ela é mwani.

Mwany está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Caos familiar

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por Pither Lopes –

As obsessões nascidas das relações humanas é um terreno que sempre inspirou a produção cinematográfica. Na obra de arte, adentrar o ambiente conflituoso das emoções e investigar a capacidade destrutiva dos indivíduos pode ser desafio árduo e perigoso. No cinema, arte que carece compor mundos sensíveis, a investigação da complexidade dos nossos impulsos se transforma numa linha tênue entre o verossímil e o ridículo.

Cloro, curta-metragem do diretor Marcelo Grabowsky, tenta explorar o drama de uma família abastada a partir de suas incompletudes e frustrações. É na piscina de uma mansão, em um ambiente aparentemente familiar e feliz, que os sentimentos afloram e o conflito é estabelecido. Um pai corrupto e uma mãe ausente, protagonistas de um casamento fracassado, influenciam o turbilhão sentimental de uma garota prestes a completar 15 anos.

Grabowsky quer mostrar como as relações familiares podem ser destrutivas a partir de um contraponto entre as aparências e aquilo que as famílias realmente são quando olhadas mais de perto. Apesar de criar planos poderosos e fazer boas escolhas com a câmera, o diretor não consegue o mesmo quando escreve seus personagens. Com personalidades e dramas corriqueiros nas novelas brasileiras, o conflito de Grabowsky se torna inconsistente e por vezes excessivo.

O ambiente complexo das obsessões humanas sempre foi prato cheio para Ingmar Bergman. A família, substrato social preferido do cineasta sueco, era retratada com sutileza, diálogos certeiros e momentos de puro silêncio poético. Para não cair nos estereótipos de um folhetim das nove, que também se apropria constantemente dos dramas familiares, o curta Cloro talvez precisasse trabalhar mais as sutilezas de seu roteiro e podar os excessos para não cair em um ambiente tão melodramático.

Com um longa-metragem no currículo, o documentário Testemunha 4, o jovem diretor acerta ao utilizar a luz do sol para compor bem sua fotografia. A inexistência de uma trilha sonora também foi essencial para explorar e valorizar os sons do lugar paradisíaco em que se passa o filme. A interpretação afetada do elenco, principalmente quando mãe e filha duelam na piscina e são separadas pelo pai, é consequência dos clichês inseridos no drama de cada personagem.

O diretor franco-suíço Jean-Luc Godard disse certa vez que para se tornar um grande diretor basta pegar uma câmera. Talvez seja importante pensar em uma declaração de Martin Scorsese como resposta. Ao falar sobre o ofício da direção para os jovens diretores, ele disse: “Tudo se resume a uma pergunta que devemos fazer a nós mesmos: ‘Você tem algo a dizer?’”.

Cloro está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Lampejos de vida

quinze

por João Gabriel Villar da Cruz

Embora o cinema mais popular entre os cinéfilos brasileiros atualmente, especialmente entre os curtas-metragens, pareça ser aquele baseado no afeto, na identificação fácil e, em termos mais abrangentes, na “fofura”, uma das tendências mais interessantes que se mostram com força festivais afora vai justamente na contramão. Não por serem filmes menos fofos, mas por abdicarem da arquitetura dos mecanismos dessa fofura construída, pedida e, muitas vezes, padronizada – Gabriel dançando em contraluz ao som de Belle e Sebastian em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho não me deixa mentir. Ao invés de montar com precisão as peças de um mundo fértil para o cultivo de corações pueris, esse cinema se contenta em olhar para qualquer lugar e depositar no olhar sua potência. Um cinema de olhar, não um de construção.

Embora o de construção tenha sido, desde Griffith, o mais popular, devido justamente à sua fácil absorção, é no olhar que vários cineastas, desde os primeiros passos do cinema moderno, foram encontrar a verdadeira potência cinematográfica que estava se dissipando por entre discursos. Desde então, diretores como Godard e Rivette foram seguir esse caminho pelo resto de suas carreiras. Vale lembrar, aliás, que os primeiros filmes a serem feitos, pelos irmãos Lumière, eram puro olhar.

Quinze, de Maurílio Martins, começa com o rosto expressivo de uma mulher vestida casualmente. Pode-se ouvir o som baixo que parece vir de um rádio ou televisão, frisando a impressão de trivialidade da cena. Não difere muito do que estamos por ver. Logo o choque do sexo (homossexual ainda!) com a banalidade do cotidiano arranca risadas da plateia, abrindo mão da estilização, vemos a tela de cinema transformada num agradável espelho, e daí logo surge a graça. Diálogos corriqueiros se desenrolando em uma composição arejada (ótimo uso do Cinemascope) proporcionam o singelo deleite de estar vendo a vida se desenrolando calmamente, um plano de cada vez. Menos um filme sobre um rito de passagem e mais uma coleção de recortes de tempo e espaço tirados por trás da cortina, o backstage de um filme inexistente que mostraria o espetáculo em si, a festa de quinze anos.

No lugar da construção, a lapidação, sendo que esta acontece diante dos nossos olhos. Quando se espera ver o material final da lapidação – pela primeira vez aparece uma música não diegética e vemos a preparação do que parece ser um momento mágico enquanto duas mulheres começam a dançar no meio da rua, com direito até a chuva de pedaços de papel colorido que não existem –, somos negados essa possibilidade: o foco some e volta, a câmera se perde, o material da vida se funde num momento que, pela primeira vez, é nosso, foi tirado do terreno do cotidiano para se instalar em nossa visão de plateia de cinema, de beleza, de…. fofura. A lapidação está pronta? Esperemos que não, e enquanto as duas mulheres se afastam e o filme volta ao seu lugar, o papel salpicado pelo chão é tão real quanto a rua. O som volta a ser o da cena. O que fica são pequenas impressões de um mundo que estava lá antes do filme começar e continuará estando após o fim dos créditos. E filmar é o ato de transformar esse mundo fugidio em… Cinema?

É bom poder se aprofundar nesse tipo de filme e, mais do que isso, ter um bom exemplo para guiar o caminho. Melhor ainda é poder colocá-lo frente a outro que, ao olhar para o mundo, não o lapida, nos apresenta um olhar frontal para o mundo em estado bruto, onde, mais uma vez, os sons fora de quadro dão relevo à imagem. Vailamideus, de Ticiana Augusto Lima, aponta sua câmera estática para uma senhora em volta da qual a família se junta para tirar fotos. Em off, ouvimos os sons da festa. As raras ações da senhora às vezes parecem ser reações ao externo, às vezes parecem ser completamente alheias ao mundo. Em meio a tanta agitação da festa, ela é certamente um oásis, mas não há como saber de quê (Tranquilidade? Cansaço? Tristeza? Felicidade contida?). À sua volta, a vida acontece: Em um momento marcante, um menino corre de sunga e, agitado, posa para a foto. Para estar de sunga, devia estar bem ocupado em suas brincadeiras – tinha piscina na festa? O menino estava seco, a sunga era para lhe dar mais liberdade? – assim como todos lá, vindos de outra coisa que faziam para participar daquela pausa. Pausa para a foto. Chegam a pedir para o Tio Antônio deixar de comer para ir tirar foto. Jovens aparecem, sorriem e vão embora. Pode-se falar de pessoas e acontecimentos porque é isso que o filme nos dá: um plano único, estático, contínuo, um olhar direto, simples, mas também não menos significativo, pesado – por que não olhar para as crianças, as mesas, a mulher que fala ao microfone, o Tio Antônio comendo? Ao contrário de Quinze, onde existem movimentos de câmera, mesmo que raros, que possuem mais valor de estilo do que de olhar, aqui se deposita potência no estado bruto da vida, que só foi passar por um esforço de lapidação agora que este texto está sendo escrito – se desconsiderarmos, claro, a montagem do filme em si.

O único movimento do quadro é o corte, corte que nos leva de vez para dentro da senhora, deixando de lado qualquer presença do mundo externo na imagem. No som tem gente, tem comemoração, tem uma interpretação bem caseira de Onde você mora?, mas os sons logo se misturam numa massa que a rodeia, ela, Vovó Myrthes. Linda, cansada, velha, ora parada, ora mexendo a mão no ritmo da música ou aplaudindo com a ajuda da mulher ao seu lado. Deixando-nos sozinho com esse olhar perdido, o filme nos dá a temível oportunidade de pensar, de habitar o mesmo lugar que o olhar da senhora, alheio a tudo – até mesmo à mulher que ajuda a vovó a bater palmas –, onde habita a melancolia, a alegria, a família, a velhice que veio e a que virá. Será? Ou esse sou só eu viajando? Certamente. E o mérito do cinema do olhar é esse: dentro dele, pode-se viajar.

Quinze e Vailamideus estão na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2014

Criador e criatura

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por Valéria Tedesco

Cento e oitenta segundos. Esse é o tempo que Augusto Roque utiliza para apresentar, desenvolver e criar o percurso de personagem do protagonista de seu filme, Fuga Animada. Um pequeno boneco fugitivo que trava, através de diferentes técnicas de animação, uma briga por espaço com os traços que o criaram.

A proposta apresentada pelo curta cria uma discussão em trono da relação entre criador e criatura. A mão que desenha, define a forma, também é a mão que dita os espaços. Utilizando as bordas da folha como o limite para o universo fantasia daquele desenho, delimita o controle sobre sua obra. O criador nesse momento, mantem o papel de detentor dos direitos sobre aquilo que idealizou.

Por outro lado, a obra como criatura, procura pertencer a outros espaços. Nesse momento começa a perseguição e a tentativa de definir quem pode, e quem consegue manter a voz ativa no processo. Quem criou ou a obra que, depois de feita, pode tomar caminhos diferentes daqueles que foram inicialmente propostos. O que entra em jogo não é apenas o desenho em si, mas sua representação e reflexão em outras plataformas.

Por fim, ambos voltam a frequentar o mesmo espaço e, entrando pelo mesmo lugar que saiu, o desenho utiliza a mão, o braço e o corpo de seu criador para reorganizar e juntar novamente os dois mundos. A obra continua sendo de quem a criou, mas quem a criou definitivamente não continua sendo o mesmo.

Fuga Animada está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Paraíso de água

cloro

por Andréia Figueiredo

Uma luz cegante! É assim que começa um dos estreantes do 25º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, Cloro, do diretor Marcelo Grabowsky. A luz, logo descobrimos que se trata do sol e que agora, pensando, certamente é um dos personagens principais dessa história, já que grande parte do roteiro é gravado sob a forte e constante luz solar, que cega o espectador logo no início.

Um fato interessante é que o enredo se passa em uma casa de luxo e em seu quintal, onde há uma piscina. Podemos ver a casa mas não podemos entrar, essa é a sensação que tive, já que nem mesmo a câmera chega à penetrar na residência, dando a entender que há mais coisas que acontecem ali dentro do que sabemos. A piscina é outro personagem, já que os conflitos ocorrem não somente ao seu redor, mas dentro dela também.

O filme gira em torno de uma garota que acabara de completar seus 15 anos e vive em sua luxuosa casa, cercada de regalias e empregados. Só que por trás de todo esse belo cenário, há uma família em crise e dois filhos afetados pelo relacionamento dos pais. Uma das mais belas cenas é quando a Clara, a irmã mais velha, põe-se a descobrir o que há de errado com o caçula, que não diz nada, apenas faz um leve gesto com a cabeça indicando a discussão dos pais. Palavras não são necessárias.

Fica evidente que Clara, a personagem principal, está passando por uma fase de mudanças, de questionamentos e desejos. É possível perceber a ausência e a falta de interesse dos pais de Clara por ela, tendo como base para isso o descaso da mãe, que toma seu banho de sol, quando a filha chega da escola. Além disso, nos é mostrado os fortes desejos que a personagem sente pelo novo empregado da casa, fantasiando com ele momentos íntimos em seus momentos de ócio.

Cloro definitivamente é um filme que tenho que parar e refletir mais um pouco a seu respeito para, em seguida, assisti-lo novamente. Isso porque é um curta metragem que nos prende do começo ao fim, enquanto nosso cérebro tenta entender qual é o próximo passo. O desfecho continua uma grande incógnita para mim, pois é difícil imaginar qual é a cena que se sucede à final. A minha dica é que vocês assistam ao curta, pensem e reflitam. Só sei que eu farei o mesmo nos próximos dias.

Cloro está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Vem aí o Crítica Curta 2014

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Estamos a uma semana do começo do 25º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. E como acontece em todos os anos desde 2005, a oficina Crítica Curta convida alunos de audiovisual a produzir reflexão em texto sobre os filmes exibidos no festival. A orientação e coordenação do projeto neste ano fica novamente a cargo do crítico de cinema e pesquisador Heitor Augusto.

Assim como no ano passado, este blog volta a ser o espaço de publicação dos artigos, apostando que a publicação no ambiente virtual permite mas possibilidades de circulação dos textos e diálogos com os leitores – realizadores e público em geral. Os participantes da oficina terão a responsabilidade de assistir diversas sessões que compõem o cardápio do festival. Suas reflexões estarão concentradas nos curtas das mostras Brasil, Panorama Paulista, Cinema em Curso e Latino-americana.

O blog Crítica Curta terá posts diários, escritos pelos “calouros” (que participam da oficina pela primeira vez) e “veteranos” (que já compuseram o projeto no ano passado e são convidados a retornarem). Você pode acompanhar as atualizações pelas redes sociais, seguindo o Twitter da Kinoforum [clique aqui] e curtindo a página do Facebook [clique aqui]. No topo de cada post no blog você encontrará um botão para compartilhar os textos.

A navegação é simples: na parte superior da home page estão os posts mais recentes. Do lado direito da metade inferior da home você poderá procurar por textos usando tags (nome do filme, nome do diretor, nome do autor, tema do curta etc). À direita de cada página há a nuvem de tags, que aponta os tópicos mais comentados nos textos.

Abaixo está a lista dos calouros que participam da oficina neste ano:

Amanda Martinez (FAAP)
Andreia Saracchi Figueiredo (Cásper Líbero)
Arthur Ivo (Unicamp)
Beatriz Couto (FAAP)
Beatriz Modenese (Cásper Líbero)
Bianca Elias Mafra (Senac)
Camila Fávaro (FAAP)
João Gabriel Vilar Cruz (Senac)
Lucas Navarro (FAAP)
Mylena Santos Dantas (Cásper Líbero)
Pither de Almeida Lopes (Anhembi)
Plínio Chaparin (ECA-USP)
Samuel Baptista Mariani (Unicamp)
Thiago Zygband (Unicamp)
Valeria Tedesco (Senac)

Sejam bem-vindos!

A identidade no outro

menino peixe

Em Menino Peixe a diretora Eva Randolph retoma alguns pontos já trabalhados em seu curta Dez Elefantes (2008): família comandada pela figura matriarcal, relação de cumplicidade e embate entre irmãos.

No novo curta as figuras femininas são centrais, nos papéis da mãe grávida e da filha pequena. O homem está sempre por vir, seja o bebê que a mãe espera e o pai trabalhador em uma plataforma em algum lugar do oceano. A aguá, aliás, possui importância capital na narrativa como aquela que acolhe as figuras masculinas e as mantém longe do convívio familiar – o filho dentro da barriga, o homem no trabalho rodeado pelo mar.

No início do curta, a mãe conta para a filha que no princípio todos éramos peixe, até que se tornaram como são hoje em dia, o bebê em seu ventre é um peixe que nada em seu líquido. É o bastante para que a menina comece a divagar sobre a identidade do novo membro da família, o rosto daquele que vem dividir com ela as atenções da figura protetora e que pela proximidade do parto recebe cada vez mais atenção.

Novamente o mar aparece como figura preponderante. Em seus sonhos a menina se imagina na praia à noite, no breu, com o mar revolto, e seu irmão, da mesma idade que ela, se revela um menino-peixe, cheio de escamas. A relação a princípio é tão tensa quanto o mar, não se entendem, brigam. A diretora, como em seu primeiro curta, se vale de maneira muito feliz do artifício do esconde-esconde, brincadeira favorita infantil, para revelar o jogo de achar no outro sua identidade, de encontrar eco. A brincadeira no escuro, no espaço violento de ondas quebrando vai se tornando mais intensa ao longo da narrativa, conforme o parto vai se aproximando cada vez mais, assim como o ciúmes da menina em relação à mãe.

Eva consegue de maneira satisfatória criar um paralelo simbólico entre vida e a água, através do mar, bravio, misterioso, forte, imenso, como potência de criação e nascimento e através das cenas nas quais a filha aparece nadando na água represada e calma das piscinas, recurso artificial que não possui a mesma força do oceano, um simulacro apenas, como desejo da menina em retornar ao útero materno.

A cena final amarra de maneira muito interessante este jogo de procurar a si mesmo, a construção de identidade no outro. Após a ida da mãe abruptamente para o hospital e a chegada atrasada do pai para o parto corta para a mãe dormindo calmamente numa cama na praia onde os irmãos se encontram à noite, o mar furioso, mas a figura materna está lá calma e adormecida, os dois sempre no breu, sempre apenas contornos. Possuem lanternas, o garoto aponta sua lanterna para o rosto da irmã, ela se ilumina e aparece finalmente na escuridão. Ela sorri.

Malu Andrade

Menino Peixe está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Essa tela (não) é pequena demais para nós dois

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Malária é um filme que narra o encontro da Morte com um homem que quer impedi-la de fazer seu trabalho. Situado numa mesa de bar, com a tensão ao redor de uma pistola que ameaça a vida dos dois, segue a linha de um tradicional western. O que há de inovador é a linguagem que Edson Oda adota para contar essa história, unindo a HQ ao cinema de uma maneira muito divertida e inteligente, chegando ao sentido intencionado para sua história e fazendo referências a estilos já consolidados. São dignas de destaque a construção sonora, cujos efeitos e músicas preenchem perfeitamente os espaços do quadrinho, e as vozes dos personagens, que são interpretadas com maestria por Antonio Moreno e Rodrigo Araújo, dando vida aos desenhos.

Dentro de um plano-sequência de quase cinco minutos existe uma decupagem detalhada. A história é desenhada em quadrinhos, que têm variação entre planos gerais, médios e closes, e são manuseados por uma mão que cumpre a função de montador do filme. Os momentos de quebra da quarta parede – num filme que possui cinco delas – em que elementos externos ao desenho interagem com a história são bem divertidos.

Além dos objetos que fazem intervenções pontuais, como o livro, o sangue, o rolo fotográfico de lembranças e o fogo, toda a direção de arte do espaço, com detalhes como a mesa de madeira, a vela e a faca que abre os balões de fala, contribui com a tensão e o clima de perigo e ameaça da história, casando perfeitamente com o gênero.

Diante do recurso utilizado por Oda, é interessante pensar sobre a influência da arte na própria arte. As histórias em quadrinho foram uma grande influência para os filmes exploitation dos anos 80, com a decupagem rápida e as cenas de ação sangrentas, adaptando o que os quadrinistas faziam através de variações no tamanho da margem e no “zoom” da imagem. E agora, em 2013, o quadrinho é colocado dentro do cinema e isso é considerado original e criativo, o que demonstra que na arte “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E o que temos aqui é uma transformação surpreendente e inteligente.

Marina Moretti

Malária está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013