Uma quase morte

memento mori

Memento Mori, avisa o título. “Lembre-se da morte”, é o que quer dizer. A expressão latina, uma das divisas da literatura barroca, ecoa nessa animação coproduzida entre Bolívia e Bélgica, mantendo algumas conexões com o momento histórico em que a arte primou por lidar com fenômenos contraditórios.

Quem esperaria flertar com a própria extinção por meio da dança? Intercalar situações monocromáticas com banhos lisérgicos da cor? Sim, estamos diante de uma caixa de surpresas. Poderia predominar o tom sombrio, de escritores românticos ou expressionistas, que de fato existe aqui. Mas nos vemos diante de uma forma de expressão mais mística do que necessariamente fantasmagórica.

A menina (que guarda em si uma imagem infantil de certa forma localizada entre o século XIX e a primeira metade do XX, imagem que tem como maior exemplo, talvez, a Alice de Lewis Carroll) que executa a passagem “transcendental’ em que pode-se, em um momento acreditar estar num sonho, em outro vendo um funeral é recepcionada por uma entidade mágica, com uma aparência exótica, “étnica”, algo africana. Uma dança, em que se libertam corpos e almas.

Coreografia de movimentos que se interrompem e sobrepõem, num fluxo capaz de evocar sim algo muito caro ao imaginário cultural latino-americano: os rituais xamânicos do(s) mundo(s) possivelmente existente(s) no limiar entre matéria e abstração.

Bad trip? Vez por outra é evocada, mas não permanece. Experiência de quase morte, que eventualmente se conclui? Hipótese a se considerar, mas também reducionista. Algo que chama a morte pra exercitar a ideia de ressurreição. Lembrar da morte para viver algo de onírico. Afinal, Memento Mori.

Rafael Marcelino

Memento Mori está na Mostra Latino-americana 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

De Sganzerla a Tarantino, uma geleia geral

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Faroeste – Um Autêntico Western, exibido Mostra Brasil 7 no CineSesc, foi premiado no Festival Anima Mundi este ano como Melhor Curta Brasileiro pelo júri popular no Rio de Janeiro. A animação de Wesley Rodrigues realmente merece elogios.

No sertão árido um urubu ao nascer, sem pai nem mãe, toma gosto pelo crime e violência desde pequeno e se torna o grande terror da região. Se trocássemos a palavra urubu por criança teríamos o personagem mais icônico do cinema brasileiro desde a Retomada: Zé Pequeno. O contra-plongéé de Cidade de Deus de Dadinho com a arma rindo de maneira tresloucada aparece aqui com o pequeno urubu. Não só este “bandido” parece ser homenageado no curta goiano: o urubu marginal/cangaceiro aparece rodando em alta velocidade num carro conversível em algumas cenas, atirando contra tudo e contra todos como o Bandido da Luz Vermelha, outro personagem clássico dos anti-heróis brasileiros.

Assim como o longa de Sganzerla era uma pot-pourri, ou geleia geral, de referências pops e cinematográficas, o curta Faroeste – Um Autêntico Western também o é. A violência vingada por mais violência e o espaço sem lei são temas recorrentes não só no Western tradicional, como também no cangaço brasileiro que cinematograficamente bebeu muito no gênero americano (o Nordestern como classificou Salvyano Cavalcanti de Paiva).

Soma-se a essas referências o elemento oriental, não apenas esteticamente, mas também na figura do matador profissional de aluguel, um samurai raposa que irá vingar a morte de uma coelhinha pelo bandido urubu. A vingança como aproximadora da cultura ocidental e oriental por excluídos é recorrente na cinematografia pop e tem seu expoente máximo com Kill Bill de Tarantino – a trilha sonora, aliás, voltada mais para o gênero western contemporâneo, parece sofrer influencia do diretor.

Esteticamente, Wesley Rodrigues mescla de maneira muito feliz elementos da grafic novel com cores mais vibrantes e formas mais geométricas para o universo cruel do urubu, além do anime japonês de cores mais pastéis e elementos mais arredondados para as vítimas do bandido e seu espaço de convivência. Ambas as referências trabalham muito com a velocidade, imprimindo um ritmo veloz ao curta, e de planos em detalhe ou super closes que ajudam a criar a tensão entre os personagens.

Alguns dos pontos mais interessantes do curta são traço e técnicas de animação 2D, a opção por deixar marcado o traço do desenho, a textura de técnicas utilizadas como o uso de giz de cera e tinta. Isso faz com que o espectador veja um trabalho autoral e não apenas uma história bem contada.

Com certeza Faroeste – Um Autêntico Western terá uma carreira vitoriosa em todos os festivais que participar.

Malu Andrade

Faroeste – Um Autêntico Western está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Uma pérola multicolorida

O sertão nordestino faz, de alguma forma, parte de nós. Do morador que ali vive sob o sol ardente ao mais urbanoide dos brasileiros, nos sentimos um pouco parte daquela realidade. Talvez pelas diversas apropriações já feitas, seja pelas pinceladas dos Retirantes, com os Miguilins das letras, com as imagens de um sertão que vira mar e um mar que vira sertão, ou com as melodias das asas brancas.

Dia Estrelado, pérola de estreia de Nara Normande, reúne essas e outras referências em um corpo único e original. Não por seu enredo, mas pela tradução estética do tema em uma belíssima animação stop motion. O roteiro é simples: uma família em busca da sobrevivência em um lugar pobre e árido. Tão seco que uma gota d’água vira pedra. Contrastam com essa “não-vida” as cores fortes e a textura do expressionismo de Van Gogh. O céu do cenário foi inspirado na obra Noite Estrelada e reproduz as grossas e largas pinceladas do artista.

Feita com massa de modelar, bonecos de arame articulados e muita paciência — quatro anos de trabalho –, a animação dialoga com todas as artes, e leva para o cinema esse drama sem um tom piegas. A realizadora pernambucana acerta a mão na poesia e no realismo, presente no piscar de olhos dos personagens, nos detalhes dos cabelos e na única flor que ainda tenta sobreviver. Uma metáfora do sertanejo, “antes de tudo, um forte”.

A perfeição técnica dos movimentos e da fotografia, trabalhada em conjunto com as mudanças de tonalidades da massinha, produz um efeito naturalista. No entanto, a diretora também deixa espaço para o humor e o lúdico, preenchendo essas vidas secas com uma graciosidade e uma paleta de cores infinitas.

Camila Fink

Dia Estrelado está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme