DÁ-ME LICENÇAYabá, de Rodrigo Sena

por Gabriella Gonçalves

“Quem é que já viu a Rainha do Mar?

Quem é que já viu a Rainha do Mar?

Pescador e marinheiro

Que escuta a sereia cantar

é com o povo que é praiero

Que dona Yemanjá quer se casar”

– “Yemanjá Rainha do Mar”, de Paulo César Pinheiro e Pedro Amorim, cantada por Maria Bethânia

Yemanjá é conhecida como a mãe das cabeças. Nada mais certo do que ser considerada a mais conhecida das Yabás. Dentro de algumas religiões afrodescendentes, Yabás são orixás de vibração feminina, ou referentes apenas a Yemanjá e Oxum, que trazem estabilidade emocional.

Em cerca de treze minutos, Rodrigo Sena traz a saudação a Yemanjá. Transmitida a fé em Neide (Jari Nass), uma mulher séria, forte, centrada, que se vê em uma encruzilhada para conseguir salvar seu negócio de pesca local, com as vendas em queda por conta do derramamento de óleo. Vemos ela se apoiar na religião para conseguir se manter de pé. Sempre cuidando do seu altar, ela faz rituais que ajudam a entender seu relacionamento com o sagrado, como quando prepara uma oferenda para Exu. Traz em contraste o pescador que trabalha com ela, sua relação com a pescaria, seu pessimismo, seu hábito de falar mais do que Neide – um contraste de uma pessoa sem crença sobre a vida.

Conseguimos ver pela ambientação a calmaria do lugar, chegando até a angústia, entretanto logo somos tirados de tal estado por uma movimentação rápida da personagem, ao encontrar quase um milagre dentro de um peixe. E assim seguimos com ela até a oferta a Exu, que já havia sido preparada, esperando para ser dada. A paleta de cores ajuda a ambientar a predominância de Yemanjá. O filme segue o tempo do mar: às vezes calmo, às vezes revolto. Mas uma revolta pode trazer notícias boas?

O filme é um presente à cultura brasileira, pois é necessário entender o passado para construir o presente e mudar o futuro. Leva a uma reflexão sobre a saúde do mar, sobre a religião, sobre o que constitui o Brasil. Traz na mulher negra nordestina a força, a resistência, a continuidade.

Yabá é uma obra necessária, que aporta mais conhecimento sobre o candomblé e a umbanda, contribuindo para a desmistificação de tais religiões. Em suas obras, Rodrigo Sena costuma abordar a religião afrodescendente e as nativas. E o faz de um jeito natural, iluminando todo um universo ao redor do divino. Um filme para quem quer ter fé, pra quem quer saudar sua mãe Yemanjá, para quem sabe que pode.

NÃO HÁ MAIS QUEM GRITE GOL!Estrelas do Deserto (Chile), de Katherina Harder

por Gustavo Furtuoso

Não há gramado verde ou traves de futebol. Mas quando a bola marca um gol, as crianças que ainda restam vibram todas juntas

Na paisagem seca do deserto do Atacama, ao norte do Chile, filhos de moradores de um vilarejo são o último suspiro de vida numa terra prestes a ser esquecida, abandonada. O jovem Antay, por volta dos dez anos de idade, vive a angústia de perder seus amigos e companheiros de time, um a um, resultado da recusa de seus pais a continuarem vivendo numa região afetada pela seca.

O uso do futebol como metáfora para o engajamento social e político no vilarejo é rico pois, para além de ser um tema comum e popular em toda América Latina, é um esporte essencialmente coletivo, que exige uma coesão e sintonia entre seus jogadores. Sintonia essa que passa a deixar de existir entre os pais dessas crianças diante do abandono e da falta de recursos destinados a uma melhora na infraestrutura e, principalmente, no abastecimento de água da região. O descaso das autoridades com aquelas famílias acaba por provocar sua desmobilização, e o desmonte de uma resistência que lutava por sua permanência no local ao qual pertenciam.

Por mais que seja o dilema mais pungente no filme, todas as discussões políticas acontecem em segundo plano. São apenas cenário da vida de um garoto que passa a temer a solidão e a vivenciar o sentimento de perda, de desencontro. A situação toda é reflexo para um destino injusto das gerações mais jovens, que apenas têm que lidar com as consequências das decisões tomadas por adultos que vieram antes. Embora as crianças consigam se articular para comprar uma nova bola, por exemplo, são esforços que só podem remediar o problema do time, não solucioná-lo.

Quando uma terra é abandonada, as pessoas também desaparecem. Seus antepassados, suas tradições, suas referências. A memória se torna difusa, rarefeita. Como a imagem dos amigos de Antay que, numa partida simbólica, simplesmente desaparecem em pleno ar, diante de seus olhos. Tornam-se lembrança, miragem, saudade.

Sem futebol, resta a poeira e o calor do deserto.

O RISCO DE MORRER NÃO É MAIOR DO QUE SER QUEM SE ÉWarsha, de Dania Bdeir

por Lohan Lage

Warsha, da diretora Dania Bdeir, desfia-se em 15 minutos de louvor à liberdade. Mais do que isso, é um filme sobre como acessar a liberdade. Ser livre requer estratégia. Requer coragem. Não se é livre espontaneamente, embora essa ideia seja mais condizente com o conceito. Nesta produção franco-libanesa, o personagem Mohammad (Khansa) ilustra brilhantemente essa tese.

Mohammad é um operário envolvido em uma grandiosa obra urbana. Nesta construção, há uma temida grua, “A Besta”, que já vitimou mais de um par de operadores devido às más condições de segurança e, claro, ao perigo natural que um trabalho como esse oferece. Não há quem comande a Besta, e a obra precisa continuar. Eis que Mohammad se candidata a esta empreitada quase suicida, apesar da pouca experiência com o maquinário. E lá do alto do arranha-céu, o libanês encara a fera num misto de desejo ardente e medo. O olhar arregalado do homem reluz a adrenalina. É Teseu versus o Minotauro. Davi contra Golias. É um homem vislumbrando a possibilidade de, literalmente, mergulhar céu adentro e alcançar a glória eterna. Eterna enquanto durar, parafraseando Vinicius de Moraes.

E o que é um gigante metálico enfiado entre as nuvens perante uma sociedade tão baixa, que ao rés do chão apequena-se em mesquinharias, preconceitos, aprisionamentos, hostilidades. É no chão que alguém, do alto, nos manipula. É no chão que plantamos nossas esperanças e colhemos medo, violência. No chão duro de uma metrópole, no asfalto donde a flor drummondiana sequer ousa dar as caras, ou não seria as pétalas, de tanto que é o sufoco antes mesmo de brotar. Mohammad assume o risco de morrer para viver. Porque viver é ser quem de fato se é. Mohammad abre mão do risco de não viver. O risco de morrer brilha em seu olhar. Está tudo ali, naquele olhar de Mohammad. Naquele cigarro tragado, nos trejeitos que emulam a liberdade.

Veio à mente uma canção de Caetano Veloso, de seu álbum clássico Transa, em que ele diz: “eu já vivo aqui cansado de viver aqui na terra, minha mãe eu vou pra lua, eu mais minha mulher; minha mãe eu vou pra lua e seja o que Deus quiser”. Na canção Triste Bahia, Caetano transcreve o pensamento de Mohammad. De fato, ele leva consigo sua mulher – sua pessoa idolatrada, sua referência artística, de autenticidade. E lá do alto Mohammad pode se jogar sem se espatifar no chão. A fotografia belíssima potencializa o éon daqueles poucos minutos, com um dos mais poéticos pores-do-sol que já assisti na tela. A sensibilidade da direção é ímpar ao saber intercalar o auge do ser liberto com seu retorno à rotina de clausura da alma.

Pra fechar, outra canção da transa caetânica: “I’m alive, and I know that one day I must die; I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo”. A poesia na tela que transborda o estar vivo enquanto se pode. O estar nas alturas, no sobreviver vivendo. Com a bênção dos céus.

O PESO DE (AINDA) ESTAR AQUI – Mostra Internacional 5: Ainda Estou Aqui

por Gustavo Guilherme da Conceição

“[…] Estou bloqueado entre dois tempos, o tempo da referência e o tempo da alocução; você partiu (disso me queixo), você está aí (por isso me dirijo a você). Sei então o que é o presente, esse tempo difícil: um simples pedaço de angústia.”

(Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso)

Uma criança a caminho de uma praia pede ao pai um caranguejo de pelúcia como presente. Um barco navega em stop motion sobre um mar de cogumelos. Em uma noite de solidão, dois desconhecidos se percebem, trocam palavras, medos e outros afetos. Um projetista se lamenta de seu trabalho em um cinema pornô de Roma. Uma mulher negra trabalha, entre apagões e tarefas intermináveis, até sentir as consequências de seus gestos em seu próprio corpo.

Tais cenas são parte dos curtas-metragens da Mostra Internacional 5: Ainda Estamos Aqui, que, em sua configuração, reúne obras da Itália, França, Reino Unido e Quênia, em cinco filmes cujas imagens parece transitar entre o visto e o não visto, ou, talvez, entre o que se anseia mostrar e o que se prefere esconder, em jogos de cena que tensionam as linhas da causalidade narrativa, sensorial e fílmica.

Perdido (França), de Gaetan Vassart e Sabrina Kouroughli, vai da calmaria de uma tarde em família na praia – uma câmera estável que a tudo observa com atenção – a um frenesi causado pela busca não só do que será perdido, como já sugere o próprio título, mas também daquela primeira imagem de harmonia, de unidade familiar; agora, a câmera na mão estremece e desestabiliza o quadro, a cena, o filme. A forma fílmica é irremediavelmente alterada pela perda, pelo imprevisto, pela ausência não calculada.

Mas o homem que encara o mar ao final de Perdido provavelmente não é capaz de enxergar O Barco (Reino Unido), de David Robinson e Bryan Michael Mills, que navega no lirismo estético das ondas de stop motion em uma mise en scène que transita entre calmaria e caos, submergindo e depois retornando à superfície para seguir seu destino, até desaparecer no horizonte.

Talvez tal ressurgimento aponte para aquilo que a própria sessão, em seu título, não nos deixa esquecer: “Ainda estamos aqui”. Talvez o tema comum, por fim, não seja exatamente a ausência, a falta, mas o impacto irreparável das presenças no mundo — rastros, sombras, memórias, movimentos, sensações, sentimentos.

Dessa forma, portanto, é provável que o encontro que se dá em Bom dia Meia-noite (França), de Elisabeth Silveiro, movido por um diálogo que surge dotado de sintomas de desejo e afeição, mas também de medo e receio com o mundo, com a memória e com as interações, revele nos mínimos gestos o mais profundo desejo daqueles corpos desconhecidos. A solidão, por si só, não seria também uma presença?

Não por acaso, Ambasciatori (Itália), de Francesco Romano, se permite transitar livremente ao redor de encontros, e também de desencontros, entre corpos igualmente desconhecidos que buscam saciar suas pulsões motivadas pelo desejo carnal, numa espécie de santuário da pornografia. Esse lugar, cuja função se desdobra sobre o próprio filme (e na tela do cine pornô dentro da tela de cinema), condiciona a coexistência de todas as personagens a uma atmosfera de obscenidade, não no sentido moralista, mas imagético da palavra: tudo está posto, desvelado, visível, ao ponto em que até mesmo a insinuação de determinados gestos surge sem ar de mistério — a punheta filmada em determinado enquadramento, distante mas ainda guardando algum pudor, tem aqui o mesmo impacto narrativo de um pênis sendo acariciado em close.

Mas há em Ambasciatori um contraponto, presente em cena desde o primeiro plano: um corpo que trabalha. O projecionista do cine pornô é a única personagem que parece, até certo ponto, alheia àquela atmosfera. Apesar de também estar exposto às imagens explícitas dos filmes que exibe, elas implicam nele uma outra reação, a lembrança de uma presença exterior àquele contexto, um afeto fisicamente ausente.

Jua Kali (Quênia), de Joash Omondi, traduz essa lógica para uma espécie de crônica do cotidiano, onde a protagonista é um corpo negro, feminino, rodeado por outros corpos diversos que, aparentemente, não sofrem em si mesmos as consequências de seus gestos, tampouco parecem perceber as implicações de seus atos como motivo direto do movimento frenético daquele corpo, que só entra em cena enquanto corpo que trabalha. Se a câmera frenética investiga, incerta, a perda de Perdido, aqui a estrutura fílmica vai, entre um apagão elétrico e outro (leitmotiv que distancia o corpo-trabalhador dos demais corpos em cena), se condicionado ao ritmo de trabalho, como se trabalhasse junto, ainda que apenas observando — a imagem em movimento, o próprio cinema, é trabalho.

Por fim, quando a inquietação de Jua Kali é interrompida pelo que poderia ser, em outra história, a falha mecânica de um robô, o discurso parece querer retomar certa normalidade, como a da família na praia em Perdido. Mas um retorno incólume à superfície já não é mais possível, pois a norma(lidade) foi tensionada pelas presenças — conhecidas, desconhecidas, ignoradas, perdidas, reimaginadas, concretas, indecifráveis, reais, imaginárias — que aqui, finalmente, constituem o peso de ainda estarem aqui.

O AMOR NÃO É O BASTANTECorpo Celeste, de Renata Paschoal e André Sobral

por Hannah Sloboda

Corpo Celeste traz em seus 15 minutos todo o potente rebuliço sentimental do reencontro de uma relação amorosa que foi abruptamente interrompida. Com seu viés de cinema de guerrilha, o curta é direto no argumento, que toma dois terços de duração do filme. O que dizer, sentir e esperar da pessoa amada em um encontro furtivo de dez minutos com dez anos de separação? André Sobral e Renata Paschoal exploram o reencontro distanciado de um casal onde amar já não é mais o bastante para se estar junto.

A câmera de Letícia (Maria Ribeiro) é tida como uma personagem de várias faces, ansiando por quem será o próximo espectador. A protagonista explora a sensualidade através da sonoplastia com suas falas sussurradas, e paralelamente consumida em imagem por meio dos planos fechados. Porém, por trás da personagem sexual de Letícia há uma mulher comum e calejada pela vida. Isso fica claro por meio da montagem de choque que mescla imagens vibrantes da camgirl em seu show com inserts da vida cotidiana desbotada. Durante a contagem regressiva de dez segundos, a montagem tangibiliza o basta, a saturação acumulada de Letícia.

Porém, o surgimento de um novo e misterioso espectador quebra o modus operandi da protagonista. Sem revelar a sua imagem, o observador se comunica na esperança de ter a tão almejada identificação. Fernando (Fernando Alves Pinto) quebra a quarta parede e traz consigo os lamentos do abandono e do trauma do tempo. Letícia, tal qual a camgirl de Wim Wenders (Paris,Texas, 1984) finge a frieza e distância como escudo emocional da calejada vida.

O ressurgimento do passado na ânsia de um futuro, numa relação onde amar não é mais o suficiente. Corpo Celeste é uma pílula emocional para os amantes com relações frustradas pelo tempo.

UM SONHO INEXPERIENTESomos Pequenas (México), de Fernanda Galindo

por Felipe Thomaz Fabris

À primeira vista, Somos Pequenas parece contar a história de uma cantora evangélica mexicana que mora em uma pequena vila e quer participar de uma competição de bandas, mas quer cantar rap e não músicas religiosas. A sinopse parece indicar um curta muito original, e com um plano de fundo que não costumamos ver: uma pequena vila no interior do México.

O curta começa com planos gerais de paisagens lindas e desertas no México. Chegamos a uma imagem aérea de uma cidadezinha e adentramos uma igreja, onde vemos uma jovem cantando. Ela estabelece olhares com uma outra jovem sentada, agora com planos próximos dos rostos delas. Saímos da igreja e o pastor entrega um papel para a cantora, uma divulgação do concurso de bandas. A cantora o apresenta para sua amiga e diz que gostaria de participar. Até então, todos os planos são lindos e com personagens que parecem interessantes: uma cantora com um relacionamento próximo com o pastor, uma competição de bandas, uma amiga que poderia ajudá-la a ganhar. Porém, o filme parece querer abordar todos os temas que a diretora tinha em mente e acaba fugindo de sua trama central.

Em todas as aulas no meu curso de audiovisual, meus professores sempre comentam que em nossos exercícios, quase sempre a realização de curtas, devemos nos manter focados em uma linha narrativa, sem mudança do foco e sem muita alteração nos personagens, justamente devido o tempo limitado que temos. Esse é o maior erro que Somos pequenas parece cometer. O pastor que nos foi apresentado logo de início nunca mais aparece; as amigas não discutem a competição de bandas; a diretora joga que a amiga da protagonista possui um relacionamento abusivo e por isso não pode ajudar nossa protagonista; a cantora tem um interesse súbito em rap – e que não parece afetar em nada sua vida na igreja; as duas amigas fazem uma apresentação para um casal de gringos, e isso nunca mais é retomado.

Ou seja, o fato de a cantora gospel cantar rap em frente de toda sua vila religiosa parece não ser um problema, mesmo que nós só tenhamos visto ela cantando músicas religiosas, e que tenha sido o pastor que recomendou que ela participasse da competição de música. A amiga da protagonista, que vive um relacionamento tóxico há anos, mal pode sair de casa, somente aos domingos para cantar para turistas gringos – mas, quando ela quer cantar com a amiga na competição, o marido não deixa. Ela, que vinha aturando o marido há anos e já disse que não poderia participar da competição, se vê numa maré de tristeza tremenda, e enxerga como única possibilidade de cantar no concurso o assassinato do próprio marido com veneno. Mesmo cometendo o assassinato, ela acaba não indo cantar com sua amiga. E após a vila saber desse assassinato, ninguém parece suspeitar da esposa, e a vida continua normalmente.

A diretora possuía um conceito em mente, um conceito bem adolescente de que uma jovem religiosa que sonha cantar rap em frente a toda sua cidade evangélica, e sua amiga em um relacionamento tóxico e proibida de cantar, iriam superar as adversidades para cantar juntas. Esse conceito não só não é explorado como também é deixado para trás. Tudo é apressado para que se chegue numa solução em 15 minutos, mesmo que para isso se tenha que abandonar personagens, não desenvolver as protagonistas e deixar diversos furos de roteiro para trás.