Um ensaio sobre a cegueira e a cegonha

estatua

por Bianca Elias –

A curadoria que pensa unir, na mesma sessão, um stop motion engraçadinho à ficção surreal e a um drama familiar deve ter seus nós muito bem amarrados para tal arranjo. Na Mostra Brasil 4, a intersecção dos curtas-metragens exibidos acontece de maneira singela e com alguma quebra de linearidade que avisa o desafio da seleção.

De maneira geral, a sessão passa por um lugar desconhecido, mas que vem ganhando espaço na realização brasileira. Um cinema de gênero, guiado pelo hibridismo entre o suspense e o terror, que aprimora seu conceito narrativo pela tensão atingida por meio da não evidência, do não mostrar. Filmes maturados na ausência de história direta e manifesta, que abrangem o mistério e a dualidade das ações nas sensações do espectador, ou que, em terreno diegético, desconhecem os personagens sobre seus próprios percursos. Ainda, o julgamento de suspense travado neste tipo de produção encontra abrigo no referencial internacional, deslocando ao mesmo tempo em que encontrando um eixo particular do cinema brasileiro.

Cloro, dirigido por Marcelo Grabowsky, estreia seu primeiro plano com um feixe de luz que aparenta vir do olhar da protagonista para o sol. No entanto a adolescente Clara, vivida por Ana Vitória Bastos, não procura um lugar ao sol; já o tem todo para si. A repercussão da vida ociosa na beira da piscina de uma mansão no Rio de Janeiro é gerada através de acessos de raiva, sonhos eróticos com o empregado negro e a nascente de um desejo da morte do pai. O curta se desenvolve pelo progresso das pistas que levam à imaginação do que se trata o final, mas os diálogos insistem em esconder o que é que de fato acontece na vida da família. Sabemos apenas das demonstrações inconscientes de Clara que, não podendo ter nada, pode ter tudo. Fundamentado em uma ficção de ordem familiar, Cloro carrega elementos tropicais tal como o sol, a manga e o corcovado, mas definitivamente não se funda na realidade brasileira, e muito menos na realidade da família brasileira.

Estátua, no mesmo limite, atinge seu percurso de começo meio e fim por uma mise en scène operadora da duplicidade do observador e do observado. Entre o voyeurismo encarnado pela câmera distante e a parcialidade da câmera próxima sincronizada com o som da respiração e o coração batendo forte, a diretora Gabriela Amaral Almeida situa um suspense dentro de uma locação com apenas dois personagens centrais – Isabel, uma babá grávida, e Joana, uma menina quieta e aparentemente aborrecida com tudo. Também em voga o abandono familiar, não há aqui esconderijo para possíveis entrelinhas de trama: são apenas duas as suspeitas pelo desconforto em cena, embora o desfecho seja um bocado inesperado. Alinhado com o fantasioso, Estátua opera um thriller despreocupado em contextualizar a vida lá fora e tampouco interessado em falar propriamente do sentimento infantil de desamparo e solidão paternal/maternal. O que de fato procura são dinâmicas para a exaltação do inseguro, com isso propondo a exploração dos ângulos, dos jogos corporais e das alterações graduais na relação entre a babá e a menina.

Permanecendo no campo da decupagem que vai ao encontro com a situação em tela, Vento Virado, de Leonardo Cata Preta, encarna a busca para a gênese por meio do movimento de contrastes. O caminhar no escuro e o encontro no claro montam uma busca por identidade e a posterior rejeição das raízes naturais de um homem que com seus 40 anos. Uma simbiose de gêneros que se encanta pelo mistério e a apropriação do lugar nenhum apresenta sua forma assinalada por contrastes de luz e de enquadramentos por vezes tortos, cegos e estáticos em fotografia. O estado de limbo dos cômodos escuros, a apropriação da mulher negra, da reza, e dos penduricalhos quase curandeiros insere um teor espiritual ao filme que fazem sentido apenas no âmbito “homem branco procurando suas origens”, já que o personagem está mais para galã americano. A questão da origem, do não mostrar e do não falar é cara na medida em que não há desenvolvimento da ligação entre o homem e esses elementos tão distantes à sua ordem natural. Evidente que o elo encontrado de cada um com cada qual é sempre pessoal e talvez a particularidade dos elementos seja de esfera absolutamente autoral, mas a injeção da matéria parece forçada a discutir uma ancestralidade que não necessariamente faz parte de todos nós.

A reminiscência de um cinema autoral, que vai do nonsense, passando pelo terror e a comédia, categoriza a produção mais recente de Lucas Sá, Nua por Dentro do Couro. Para além do que possivelmente fala da relação entre condôminos de um mesmo edifício, a escancarada tentativa de se criar um estilo abrasileirado da violência urbana e irônica é funcional quando não sabota nossas verdades nos diálogos, em hábitos e nos costumes de se relacionar. Antes de tudo, a sujeição ao padrão, digamos, comercial de cinema, impede uma submissão aos próprios códigos desse universo. Do cupcake à música pop, os padrões na realidade apenas mostram-se como padrões do imaginário real. Depois e mais uma vez, a opção de não revelar segredos que ninguém sabe, ajudam o filme a se inserir nesse modelo de realização pautado apenas pela instigação da descoberta.

Mas o que vem então, a ser Fuga Animada, de Augusto Roque, nesse mar de produções, algumas mais bem sucedidas que outras, de ligar o holofote para o mistério em desenvolvimento? A quebra do peso, talvez. Uma animação que move a criatura e o criador em uma disputa constante traz consigo a reflexão do que é real em vida e do que é real em tela. Justamente, nas produções na sessão Mostra Brasil 4, abdica-se de certa verossimilhança real em prol da ficção que não busca o estado efetivo e concreto das coisas, mas sim a consolidação de um movimento revigorante para o híbrido thriller/suspense brasileiro. O ensaio é sobre a cegueira de um cinema ainda em surgimento, nascendo, se descobrindo no escuro e trabalhando através das evidências e, sem culpa, referências externas a nós.

Clique aqui e confira a programação dos filmes da Mostra Brasil 4 no Festival de Curtas 2014

O arquipélago: um retrato pelo espelho

o arquipelago

por Rodrigo Faustini –

Neste ano me encontro numa participação diferente no Kinoforum – encarando as críticas pela segunda vez e, também, tendo feito um trabalho de curadoria para uma sessão do “Programação em Curso” do festival, para minha universidade. Assim, chego ao festival já tendo visto a maioria dos curtas, ainda que comprimidos – aliás, a compressão digital (das versões que tive acesso dos filmes) apena acentuou um macabro clima de mesmice no atual curta-metragem brasileiro; difícil manter a atenção a cada vez que surge na tela mais um retrato mal formulado de um adolescente de classe média, um flerte com o cinema de gênero (que nunca chega…) ou a megalópole de lamentações sobre o “urbano”.

Não foi por acaso, então, que preferi começar minha escrita aqui por uma mostra paralela, “O realizador e seu tempo” – escolha fortuita, pois nela se encontram idiossincrasias que se destacam no festival, alguns pontos fora da reta – filmes longos demais para os padrões de inscrição, ou que não se adequavam por um motivo ou outro em outras mostras. Como o nome pela sessão indica, haveriam concepções de tempo narrativo interessantes ali.

O recorte certamente influenciou a recepção das obras – num dos momentos mais interessantes, uma boa parte da platéia aplaudiu o filme O arquipélago, de Gustavo Beck, antes mesmo que seu título aparecesse na tela, supondo que o filme havia acabado (o título só chega pela metade do filme); o filme reivindicava ali seu próprio tempo.

Um curta (média?) que abre com um grande prólogo, um monólogo intimista com um ser com o qual temos muita pouca intimidade, uma imagem numa tela que parece declarar algo a si mesma, embora fale para a câmera. Era difícil entender suas palavras, seu conflito, e mesmo em seguida o filme fazia poucas concessões: apresentava momentos cotidianos de uma família, como a espera de ônibus de uma mãe com seu filho; ficamos a olhar o carinho de um pelo outro (e o cofrinho do garoto), num plano parado. Não me lembro se o ônibus chegava ou não, mas a espera era ansiosa.

Ao invés de deixar o filme a esmo, a quase independência de cada momento, retratado em longos planos, criava micronarrativas, ilhéus. E dentre os recentes ensaios sobre o urbano, O arquipélago se destaca por se focar na paisagem emocional e humana que nela habita, isolada: no que me soou como uma releitura muito interessante de Zoo (de Burt Haanstra, 1961), o filme encerra-se num zoológico, onde ficamos a observar animais que, sem consciência disso, atuam para a câmera e a plateia (e para os próprios personagens). O que fascina na observação dessas vidas, mundanas e restringidas pela própria maneira com a qual os vemos? Suas semelhanças com nós mesmos, talvez – quando a câmera é estática e o enquadramento frontal, seus retratos assemelham-se aos de um espelho.

O Arquipélago está na mostra O Realizador e seu Tempo. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Mwany: a poesia do outro

mwany

por Beatriz Couto –

Capulana, em Moçambique, é um tecido utilizado de muitas maneiras. Ao mesmo tempo que uma capulana pode ser roupa, ela é toalha, é cortina, é tapete. As estampas coloridas e geométricas são marcas culturais de seu povo, e a diversidade de funções é reflexo de suas mulheres. Mwany, de Nivaldo Vasconcelos, nos apresenta Sónia e, com ela, toda a poesia da cultura moçambicana.

A geometria das capulanas é vista antes mesmo dos tecidos serem apresentados. A fotografia do documentário, com seus ângulos frontais e trabalho com linhas das construções, transforma o simples prédio em um reflexo do que está por vir. O elemento vazado da fachada se torna estampa, as escadas são listras e a protagonista marca seu lugar como parte da composição.

Sónia André veio ao Brasil estudar música e, com sua filha de seis meses na época, se mudou para Maceió. Ela saiu de Moçambique, mas Moçambique nunca saiu de Sónia. Ela canta, estende suas capulanas e ensina o idioma kimwani à filha. Na narração, conhecemos sua história por suas próprias palavras, e isso é o que torna Mwany tão especial.

Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, em sua palestra no TED em 2009, conta como sua colega de quarto na faculdade nos Estados Unidos se surpreendeu por ela falar inglês – na Nigéria, o inglês é o idioma oficial. Em seguida, Adichie passa a explicar o “perigo da história única”: a formação de estereótipos baseados no ponto de vista ocidental do resto do mundo. Segundo ela, a África é vista como uma coisa só, com catástrofes, pobreza e ignorância.

Nivaldo Vasconcelos não conta a sua visão de Sónia, mas sim ela mesma que apresenta ao público o que é ser uma mulher moçambicana. E não se surpreenda com seu português fluente, ele também é seu idioma oficial. Sónia nos afasta de uma visão única sobre Moçambique enquanto cobre o rosto de mussiro, pasta branca que vai além da beleza estética. Para ela, é com o rosto pintado que reafirma suas origens e se diferencia dos brasileiros. Com as músicas em kimwani, o idioma de sua região, o público é transportado para o outro lado do oceano, com uma poesia única do cinema.
As mulheres moçambicanas são como as capulanas, explica Sónia. A improvisação, a diversidade, o colorido, a beleza. E enfim, com nostalgia, ela diz que voltará para Moçambique, por mais que goste do Brasil. Lá estão suas raízes, suas tradições. Lá ela é mwani.

Mwany está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Ignorância instintiva

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por Letícia Fudissaku –

Na Mostra Internacional 4, vemos cinco situações em que as personagens tem de lidar com elementos contrastantes em seu universo. Se em O Barulho e Reunião de Condomínio o conflito tem como base a moradia dos personagens, em Deserto e Cólera temos condições um tanto diferentes – mas que, ainda assim, aproximam-se em seu subtexto.

Em Deserto, acompanhamos a trajetória de uma soldado que perdeu seu rifle e recorre à ajuda de um beduíno. Se o espectador espera uma aproximação entre essas personagens, em contraponto à inimizade dos grupos a que pertencem – a exemplo de O Menino de Pijama Listrado ou filmes infantis como O Cão e a Raposa, muito se engana: no clímax da narrativa, a protagonista não hesita ao tomar uma atitude em benefício próprio, que leva também à morte do homem momentos depois.

Vale lembrar que a soldado possuía uma conduta exemplar, até cometer o deslize de perder sua arma às vésperas de sua “formatura”. Ainda assim, suas atitudes passam longe do bom senso: ela engana o beduíno para obter sua ajuda e descarta-o friamente assim que encontra seu rifle. Ele, mesmo ao perceber que foi enganado, diz que a ajudaria do mesmo jeito se ela tivesse dito a verdade. Logo, fica claro que os dois personagens não passam por mudança alguma de valores. Mais do que isso, evidencia-se a percepção da soldado de certo e errado, priorizando o dever e ignorando a humanidade os possíveis inimigos.

Já no sagaz e intenso Cólera, temos a mesma postura impiedosa e fria dos soldados aplicada aos membros de um vilarejo, que querem acabar com o “monstro” que passou a viver nos arredores. Em ambos os casos, a força se sobrepõe à empatia, transformando quem poderia ser visto como um semelhante numa mera presa. Mas, ao final, Cólera se mostra mais espirituoso: a aberração – que é na verdade um rapaz com um estágio avançado de cólera – é alvejada e cai na represa que fornece água ao vilarejo. Num brilhante uso do karma, é justamente a investida contra o doente que disseminará a doença entre eles.

Em seus poucos minutos, Cólera transmite seu recado de forma poderosa, condenando o pensamento extremista e violento daqueles que não praticam a empatia ao contato com aqueles que são, de alguma forma, diferentes. E, se em Cólera vemos os danos da ignorância coletiva, a trama de Deserto complementa a mensagem, evidenciando o comportamento egoísta de uma personagem aparentemente íntegra, quando afasta dos seus iguais.

Deserto e Cólera estão na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2014

Diversidade internacional

tres pedras para jean genet

por Ricardo Corsetti –

A seleção de filmes que abriram a 25ª edição do Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo foi, sem a menor dúvida, bastante variada, indo desde um clássico absoluto do formato até uma animação feita a partir das mais modernas técnicas de computação gráfica.

O primeiro filme exibido foi Labirinto Eletrônico: THX 1138, feito em 1973, pelo hoje renomado e badalado diretor norte-americano George Lucas. O filme em questão tem seus méritos enquanto exemplo de cinema não-narrativo e esteticamente interessante por fazer uso dos recursos de transparência e opacidade (conceitos estes que aprendemos em aulas de comunicação visual nas faculdades de cinema atuais). Mas o fato é que a ideia de um futuro sombrio dominado pela frieza tecnológica, por já ter sido exaustivamente discutida e explorada tanto pela literatura quanto pelo cinema contemporâneo, acaba soando um tanto datada. Além disso, outros cineastas também fascinados pelo tema, assim como Stanley Kubrick em Laranja Mecânica ou David Cronenberg em Videodrome, conseguiram abordá-lo com mais profundidade e melhor fluência narrativa.

Em seguida, tivemos o curta colombiano Leidi (2014), dirigido por Simon Mesa Soto. Vale destacar o fato de que este filme foi, recentemente, vencedor na categoria de melhor curta-metragem no Festival de Cannes. É inegável que o filme conta com um ótimo trabalho de direção, possui boa fotografia, etc. Porém, em termos de roteiro, é bastante raso, e não foge ao já lugar-comum do cinema de caráter social praticado na grande maioria dos países latino-americanos. A propósito: é óbvio que tal comentário não significa que eu não reconheça a importância e necessidade de se retratrar a realidade de exclusão social e má distribuição de renda que caracteriza a quase totalidade dos paíse latino-americanos. Eu apenas gostaria de ver uma maior diversidade temática e de gêneros sendo praticada aqui fora do eixo norte-americano e europeu de produção cinematográfica. De qualquer modo, conforme já mencionei, do ponto de vista técnico, Leidi tem lá seus méritos.

Tivemos também o belíssimo Three stones for Jean Genet (2014), dirigido por Frieder Schlaich. O curta foi rodado em película 16mm, com linda fotografia em preto e branco e imagem granulada. Trata-se de uma grande homenagem ao dramaturgo e poeta marginal por excelência Jean Genet. E conta com narração e presença da eterna musa indie Patti Smith. Para aqueles individuos que, assim como eu, já passaram dos 30 anos e são fãs ardorosos de ambas as lendas citadas (Jean Genet e Patti Smith), a nostalgia com certeza bate forte e é preciso se segurar para não cair em lágrimas de emoção. Obrigado, Frieder Schlaich, por essa obra-prima incontestável!

Na sequência, vimos We Are Not Amused (2013), dirigido pela britânica Vicki Bennet. Trata-se de um bem-humorado curta de animação (que aparece utilizar a técnica conhecida como rotoscopia), retratando a influência das mitológicas musas gregas do conhecimento, nas artes em geral. A ideia é muito boa e divertida, apenas acho que a diretora poderia ter extendido um pouquinho mais a duração do filme para desenvolver melhor o tema.

Por fim, tivemos o ótimo Meu Amigo Nietzsche (2012), dirigido por Faustón da Silva. Em termos técnicos, o curta é bastante simples e até mesmo convencional. No entanto, a ideia central da trama: um garoto humilde que encontra jogado no lixão um exemplar de Assim Falou Zaratustra e, a partir daí, tem sua visão de mundo completamente transformada pelo livro, é simplesmente genial! Isso sem contar para quem ainda não o assistiu o igualmente hilário desfecho da trama. Em resumo, Meu Amigo Nietzsche é um ótimo exemplo de como bastam apenas uma câmera no tripé e uma ideia na cabeça (somada a um elenco amador) para se fazer um bom e extremamente criativo curta-metragem.

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O muro do arrebatamento

salomao

por Ivan Ribeiro –

Vivemos em uma época em que grupos religiosos, sejam eles ligados a qualquer crença, têm sido arquitetos de ações diversas e mudanças relevantes para a sociedade, ao redor do mundo, de um modo geral. Entenda “relevantes para a sociedade” por diversos aspectos. Proporcionando ajuda humanitária a populações necessitadas e devastadas pela miséria ou proporcionando guerras intermináveis. Propagando o amor ao próximo, a compreensão e, no mínimo, a tolerância ou disseminando preconceitos e ódio. Discutindo, junto à sociedade civil, temas de interesse público como o aborto, por exemplo, ou procurando impor seus preceitos e regras através de alianças e “cartadas” políticas.

No Brasil, onde a constituição declara que o Estado é laico (neutro ou imparcial no campo religioso, não apoiando ou discriminando nenhuma religião e não permitindo que nenhuma delas interfira em decisões sociopolíticas), temos visto, incoerentemente, o crescimento da influência cristã, sobretudo dos evangélicos, sobre as práticas políticas e ações do governo. Isso fica evidente em determinadas situações como, por exemplo, na inauguração do Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), no bairro do Brás, na cidade de São Paulo, ocorrida oficialmente em 31 de julho de 2014, cerimônia à qual estiveram presentes diversos políticos brasileiros de alta cúpula, incluindo o prefeito da cidade, o governador do estado e a presidenta da nação. Presenças de importância estratégica no evento em ano de eleições.

Os líderes evangélicos e suas bancadas políticas no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, têm cada vez mais demonstrado seu poder e influência em assuntos vitais de interesse comum da sociedade deste país. A construção do já citado Templo de Salomão, além de ser obra de intesse dos fieis da IURD por se tratar de mais um local de orações e prática religiosa diária, foi também vista pela mídia e diversos segmentos da sociedade como uma demonstração física e visual deste poder.

E é sobre o surgimento desse “colosso arquitetônico” em plena região central da maior cidade do país que trata o preciso, sucinto e, ao mesmo tempo, assustadoramente poético, Salomão, curta-metragem dos diretores Miguel Antunes Ramos e Alexandre Wahrhaftig, também responsáveis pelo roteiro, produção, fotografia e edição do filme.

É por meio de imagens dos tapumes que cercam as obras do imenso templo que os diretores nos apresentam a monumentalidade do que está para surgir. Os tapumes são decorados com plácidas ilustrações do prédio que terá suas instalações erigidas no local. Gigantescas colunas, paredes imponentes de pedra impenetrável, paisagismo e arquitetura de deixar qualquer crente ou ateu sem fôlego e de pêlos eriçados, por onde, nas mesmas imagens, passeiam pessoas felizes, sorrindo, casais de mãos dadas com seus filhos, fieis tão pequenos perplexos diante da grandeza da obra de Deus (e dos homens), ofuscados não pelo sol que os acolhe, mas pelo matiz dourado do templo que acolhe e ofusca ainda mais.

Contrastando com os paineis que protegem a construção e a enchem de mistério e promessas de dádivas sem fim estão os transeuntes que passam pelo bairro, em frente aos tapumes. Pessoas comuns. Gente que vai de lá para cá atrás de seus afazeres diários, de seus empregos, preocupações cotidianas, vidas que seguem enquanto aguardam (ou não) a conclusão das obras atrás do muro. Gente que continua existindo e sobrevivendo independentemente do que é erguido no local.

Da construção do templo só ouvimos os sons de máquinas, tratores, escavadeiras, martelos, serras, ferramentas tão humanas que darão forma a obra tão divina. A brilhante direção de som do filme deixa no imaginário do espectador a relidade por trás daquelas tapadeiras que exibem o que foi idealizado por seus engenheiros e arquitetos. Mesclada ao som dos trabalhadores, começa a crescer, em off, a voz de um pastor que prega maravilhas. O pastor, possivelmente repleto da inspiração do Espírito Santo, se empolga cada vez mais, num ritmo e intensidade crescentes, exaltando-se e exaltando o poder (de sua fé) de Deus:

“Depois da tempestade vem a bonança”. “É preciso existir guerra para que haja vitória”.

Os tapumes já não existem mais. Andaimes imensos, intrínsecas teias enormes de barras de ferro, emaranhados de madeira, pregos e metal santos surgem na tela diante dos olhos extasiados ou indignados do espectador da sala de cinema.

O Templo de Salomão vai surgir, o templo está de pé, Aleluia!

Enquanto isso, as pessoas na rua apenas passam. E param. E seguem.

E Salomão, sem fazer qualquer crítica contrária nem apologia à construção do Templo ou à IURD e seus representantes, deixa para o espectador a responsabilidade da reflexão. O que é necessidade real e o que é dispensável? O que é fundamentalismo e o que é fé? O que é realidade e o que é utopia? O que está à vista o que se faz oculto? O que é caridade e o que é ostentação? O que é divino e o que é humano?

Mas uma certeza fica. Este deus tem uma nova casa na Torre de Babel que é esta cidade sulamericana com nome de santo. Paraíso para uns, inferno para outros tantos.

Hosana nas alturas!!!!!

Salomão está na mostra Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Dos vazios da Pauliceia

E

por Thiago Zygband –

São Paulo movimenta-se em tédio. Mitose da compulsão e da rotina, carros, monocromia, prédios, gentrificação e a expansão irracional de certa lógica perversa. Diz-se que a cidade não pára, a cidade só cresce. Serão os deuses testemunhas? Se parece inelutável o destino, ao menos fazemos cinema.

E, dos diretores Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos, é uma interessante perspectiva sobre tais fatos. O documentário vai ao cerne da autorreplicação e do aparente nonsense da metrópole bandeirante ao analisar uma de suas mais gritantes manifestações: os estacionamentos. Crescem em vertigem esses espaços silenciosos, mas que não surgem do nada – os depoimentos colhidos nos lembram que aqueles lugares também têm história e afetos: um era (saudoso) cinema-de-bairro, outro a casa do papai, um terceiro a da vovó, um quarto, um quinto…

O documentário assume ares de ficção científica. São estranhas, as máquinas. Abstratas, têm apelo estético e parecem existir por si próprias – de fato, não há imagem humana nítida no filme. O movimento está restrito aos guindastes, carros, catracas e, nos prédios das classes abastadas, até aos próprios estacionamentos-elevadores. “Privacidade, exclusividade, […] morar bem”, depõe uma moradora. Podemos ver suas mãos que saem de dentro de um enorme carro: o único pedaço de carne do curta.

O proprietário de estacionamento nos confessa: “Investimento pequeno, rentabilidade pequena também […] não é um grande negócio”. Nesse caso, sua serventia é apenas a ocupação do espaço; logo erguerá um prédio, grande negócio, por suposto. Assim rumamos aos céus. Eram sete pequenas casas, logo serão a concretização de uma maquete pomposa em regalias contemporâneas – elevador de automóveis, parque privativo, vigilância 24 horas e outras liberdades do espaço privado, sonhos em metros quadrados que o dinheiro pode comprar.

E são através das fotografias de satélites retiradas do Google que recordamos como eram as tais falecidas casas. Note-se: especulação imobiliária nas ruas, informação-mercadoria no mundo virtual. Também são privadas as imagens do espaço público da cidade, e por ela só se flana enquanto potencial consumidor dos anúncios que pululam no canto da tela. Logo se atualizarão as fotografias, e aquilo será somente o eterno-presente da Internet.

Em Pequena História da Fotografia, Walter Benjamin, sobre o trabalho do fotógrafo Atget na Paris do século XIX, indica que aquelas imagens privadas de corpos humanos, nas quais captou construções solitárias e indiferentes típicas da vida moderna, parecem esconder a evidência de um crime. Da mesma forma, a São Paulo esvaziada de E é como casa que não encontrou moradores, uma cidade que parece prescindir o mundo dos humanos. Onírica, surreal, espetáculo da ausência e do vazio, infinitamente cinza e melancólica. E tão estranhamente suspeita…

E está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A emergência do silêncio

vao livre

por Lucas Navarro –

Antes de tudo, claro, o impasse. A fala que tenta voltar après-coup ao gesto da irmã busca desfazer os lacres que encobrem o inefável que a sustenta. Esvaziada de significações compartilháveis, ela respira o fracasso da intenção comunicativa. Todo esforço está mobilizado para aprender a “dizer de outro jeito” aquilo que o maquinário da linguagem não consegue mais submeter em discurso assimilável (“podia ter dado certo no jornal”, lamenta a mãe) tendo que, para isso, adequar sua voz à violência da atmosfera. Aprender a dizer de outro jeito requer, porém, um trabalho rigoroso sobre corpos em cena para que, somente a partir dessa organização, a voz reconcilie o sentido original sobre o qual vacila, devolvendo a autenticidade da experiência narrada.

Dividido em datas que funcionam como uma espécie de antecâmara daquilo que ouvimos nos créditos, as cenas de Vão Livre mostram uma identificação progressiva da protagonista com a continuidade das lutas deixadas pela irmã. Contudo, essa luta é sempre prorrogada entre discussões e palpites sobre possíveis datas e possíveis pautas. Essa espera no interior dos tableaux é responsável por uma aparente passividade que, por sua vez, é antes efeito da intensificação da sensibilidade, de uma atenção excessiva, que aproxima a crítica do advento desejado. Uma variante dessa imagem está justamente na passividade produtiva da mulher que gera, em seu silêncio, o sentido da conversa. Se aquilo que conhecemos de sua irmã é pura ação, aquilo que vemos, do seu lado, é pura hesitação – detalhe que dá à personagem o peso de duas memórias conflitantes: a tranquilidade, tão cara à sua avó, e a coragem mobilizadora da irmã. Tradição e ímpeto, como soma de lembranças, são forças antagônicas que movem o filme de uma disposição não contaminada pela percepção entorpecedora do passado ao privilégio do instante como único possível de afirmar seu compromisso com o presente.

Concebido como projeto de conclusão de curso momentos antes à irrupção das manifestações de junho, a produção de Bruno Marra e Steffi Braucks atravessou o evento incorporando alguns elementos junto àqueles já existentes na ideia inicial. Isso para esclarecer que não incorro aqui afirmando a redução da obra como reação direta ao calor episódico do protesto, mas na tentativa de perceber a capacidade transitiva interiorizada no processo. Responde ao seu tempo histórico sem trai-lo ou ser seu escravo. Esse amálgama entre crítica e contexto fica ainda mais claro se notarmos as diferenças brutais entre esse filme e aqueles realizados in loco (Rio em Chamas, 20 Centavos, Junho), cuja força reside tão somente numa descrição irrefletida dos fatos acreditando, pela proximidade estabelecida, enxergá-los objetivamente. Quando revistos no momento atual suas imagens parecem esgotar um referente aflorado sob uma pressa vertiginosa pela qual experimentamos outrora o prazer de nos deixamos violentar as retinas. Vão Livre, por sua vez, evoca uma violência simbólica, e silenciosa, tão atual que poderia ter sido feito amanhã.

Se já acostumamos a ver na produção universitária uma conformidade estética (política, portanto) com tendências já consolidadas cujo preço se dá na abdicação da tradução ativa no curso da história, observo que, aqui, não é o caso. Vão Livre compõe solitariamente o panorama da mostra Cinema em Curso. Isso por que ele nos apresenta um conflito irredutível ao núcleo da família ou do indivíduo tomado como berço dos sentimentos e expressões, preferindo revelar um colapso que transborda os limites do espaço privado, dentro da qual era ainda possível reconhecer um princípio de causa. A emergência desse novo olhar está em perceber que a obra, antes de encerrar o assunto que a engendra, ascende, num movimento de luz, o impacto estético fundamentado naquilo que Rivette chamou de um “elo entre algo exterior e muito secreto, que um gesto imprevisto desvela sem explicar”.

Vão Livre está na mostra Cinema em Curso 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Caos familiar

cloro2

por Pither Lopes –

As obsessões nascidas das relações humanas é um terreno que sempre inspirou a produção cinematográfica. Na obra de arte, adentrar o ambiente conflituoso das emoções e investigar a capacidade destrutiva dos indivíduos pode ser desafio árduo e perigoso. No cinema, arte que carece compor mundos sensíveis, a investigação da complexidade dos nossos impulsos se transforma numa linha tênue entre o verossímil e o ridículo.

Cloro, curta-metragem do diretor Marcelo Grabowsky, tenta explorar o drama de uma família abastada a partir de suas incompletudes e frustrações. É na piscina de uma mansão, em um ambiente aparentemente familiar e feliz, que os sentimentos afloram e o conflito é estabelecido. Um pai corrupto e uma mãe ausente, protagonistas de um casamento fracassado, influenciam o turbilhão sentimental de uma garota prestes a completar 15 anos.

Grabowsky quer mostrar como as relações familiares podem ser destrutivas a partir de um contraponto entre as aparências e aquilo que as famílias realmente são quando olhadas mais de perto. Apesar de criar planos poderosos e fazer boas escolhas com a câmera, o diretor não consegue o mesmo quando escreve seus personagens. Com personalidades e dramas corriqueiros nas novelas brasileiras, o conflito de Grabowsky se torna inconsistente e por vezes excessivo.

O ambiente complexo das obsessões humanas sempre foi prato cheio para Ingmar Bergman. A família, substrato social preferido do cineasta sueco, era retratada com sutileza, diálogos certeiros e momentos de puro silêncio poético. Para não cair nos estereótipos de um folhetim das nove, que também se apropria constantemente dos dramas familiares, o curta Cloro talvez precisasse trabalhar mais as sutilezas de seu roteiro e podar os excessos para não cair em um ambiente tão melodramático.

Com um longa-metragem no currículo, o documentário Testemunha 4, o jovem diretor acerta ao utilizar a luz do sol para compor bem sua fotografia. A inexistência de uma trilha sonora também foi essencial para explorar e valorizar os sons do lugar paradisíaco em que se passa o filme. A interpretação afetada do elenco, principalmente quando mãe e filha duelam na piscina e são separadas pelo pai, é consequência dos clichês inseridos no drama de cada personagem.

O diretor franco-suíço Jean-Luc Godard disse certa vez que para se tornar um grande diretor basta pegar uma câmera. Talvez seja importante pensar em uma declaração de Martin Scorsese como resposta. Ao falar sobre o ofício da direção para os jovens diretores, ele disse: “Tudo se resume a uma pergunta que devemos fazer a nós mesmos: ‘Você tem algo a dizer?’”.

Cloro está na Mostra Brasil 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Lampejos de vida

quinze

por João Gabriel Villar da Cruz

Embora o cinema mais popular entre os cinéfilos brasileiros atualmente, especialmente entre os curtas-metragens, pareça ser aquele baseado no afeto, na identificação fácil e, em termos mais abrangentes, na “fofura”, uma das tendências mais interessantes que se mostram com força festivais afora vai justamente na contramão. Não por serem filmes menos fofos, mas por abdicarem da arquitetura dos mecanismos dessa fofura construída, pedida e, muitas vezes, padronizada – Gabriel dançando em contraluz ao som de Belle e Sebastian em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho não me deixa mentir. Ao invés de montar com precisão as peças de um mundo fértil para o cultivo de corações pueris, esse cinema se contenta em olhar para qualquer lugar e depositar no olhar sua potência. Um cinema de olhar, não um de construção.

Embora o de construção tenha sido, desde Griffith, o mais popular, devido justamente à sua fácil absorção, é no olhar que vários cineastas, desde os primeiros passos do cinema moderno, foram encontrar a verdadeira potência cinematográfica que estava se dissipando por entre discursos. Desde então, diretores como Godard e Rivette foram seguir esse caminho pelo resto de suas carreiras. Vale lembrar, aliás, que os primeiros filmes a serem feitos, pelos irmãos Lumière, eram puro olhar.

Quinze, de Maurílio Martins, começa com o rosto expressivo de uma mulher vestida casualmente. Pode-se ouvir o som baixo que parece vir de um rádio ou televisão, frisando a impressão de trivialidade da cena. Não difere muito do que estamos por ver. Logo o choque do sexo (homossexual ainda!) com a banalidade do cotidiano arranca risadas da plateia, abrindo mão da estilização, vemos a tela de cinema transformada num agradável espelho, e daí logo surge a graça. Diálogos corriqueiros se desenrolando em uma composição arejada (ótimo uso do Cinemascope) proporcionam o singelo deleite de estar vendo a vida se desenrolando calmamente, um plano de cada vez. Menos um filme sobre um rito de passagem e mais uma coleção de recortes de tempo e espaço tirados por trás da cortina, o backstage de um filme inexistente que mostraria o espetáculo em si, a festa de quinze anos.

No lugar da construção, a lapidação, sendo que esta acontece diante dos nossos olhos. Quando se espera ver o material final da lapidação – pela primeira vez aparece uma música não diegética e vemos a preparação do que parece ser um momento mágico enquanto duas mulheres começam a dançar no meio da rua, com direito até a chuva de pedaços de papel colorido que não existem –, somos negados essa possibilidade: o foco some e volta, a câmera se perde, o material da vida se funde num momento que, pela primeira vez, é nosso, foi tirado do terreno do cotidiano para se instalar em nossa visão de plateia de cinema, de beleza, de…. fofura. A lapidação está pronta? Esperemos que não, e enquanto as duas mulheres se afastam e o filme volta ao seu lugar, o papel salpicado pelo chão é tão real quanto a rua. O som volta a ser o da cena. O que fica são pequenas impressões de um mundo que estava lá antes do filme começar e continuará estando após o fim dos créditos. E filmar é o ato de transformar esse mundo fugidio em… Cinema?

É bom poder se aprofundar nesse tipo de filme e, mais do que isso, ter um bom exemplo para guiar o caminho. Melhor ainda é poder colocá-lo frente a outro que, ao olhar para o mundo, não o lapida, nos apresenta um olhar frontal para o mundo em estado bruto, onde, mais uma vez, os sons fora de quadro dão relevo à imagem. Vailamideus, de Ticiana Augusto Lima, aponta sua câmera estática para uma senhora em volta da qual a família se junta para tirar fotos. Em off, ouvimos os sons da festa. As raras ações da senhora às vezes parecem ser reações ao externo, às vezes parecem ser completamente alheias ao mundo. Em meio a tanta agitação da festa, ela é certamente um oásis, mas não há como saber de quê (Tranquilidade? Cansaço? Tristeza? Felicidade contida?). À sua volta, a vida acontece: Em um momento marcante, um menino corre de sunga e, agitado, posa para a foto. Para estar de sunga, devia estar bem ocupado em suas brincadeiras – tinha piscina na festa? O menino estava seco, a sunga era para lhe dar mais liberdade? – assim como todos lá, vindos de outra coisa que faziam para participar daquela pausa. Pausa para a foto. Chegam a pedir para o Tio Antônio deixar de comer para ir tirar foto. Jovens aparecem, sorriem e vão embora. Pode-se falar de pessoas e acontecimentos porque é isso que o filme nos dá: um plano único, estático, contínuo, um olhar direto, simples, mas também não menos significativo, pesado – por que não olhar para as crianças, as mesas, a mulher que fala ao microfone, o Tio Antônio comendo? Ao contrário de Quinze, onde existem movimentos de câmera, mesmo que raros, que possuem mais valor de estilo do que de olhar, aqui se deposita potência no estado bruto da vida, que só foi passar por um esforço de lapidação agora que este texto está sendo escrito – se desconsiderarmos, claro, a montagem do filme em si.

O único movimento do quadro é o corte, corte que nos leva de vez para dentro da senhora, deixando de lado qualquer presença do mundo externo na imagem. No som tem gente, tem comemoração, tem uma interpretação bem caseira de Onde você mora?, mas os sons logo se misturam numa massa que a rodeia, ela, Vovó Myrthes. Linda, cansada, velha, ora parada, ora mexendo a mão no ritmo da música ou aplaudindo com a ajuda da mulher ao seu lado. Deixando-nos sozinho com esse olhar perdido, o filme nos dá a temível oportunidade de pensar, de habitar o mesmo lugar que o olhar da senhora, alheio a tudo – até mesmo à mulher que ajuda a vovó a bater palmas –, onde habita a melancolia, a alegria, a família, a velhice que veio e a que virá. Será? Ou esse sou só eu viajando? Certamente. E o mérito do cinema do olhar é esse: dentro dele, pode-se viajar.

Quinze e Vailamideus estão na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2014