De Castigo: sobre se relacionar

de castigo

por Valéria Tedesco –

A sessão estava lotada para a exibição dos filmes do Panorama Paulista 1. Entre curiosos, admiradores, familiares e amigos, a jovem diretora Helena Ungaretti fez mais uma apresentação de seu curta-metragem De Castigo. Interessante observar como os espectadores fizeram parte da composição do clima apresentado pelo filme.

Lilian Blanc vive o papel de Guta, uma tia avó que vive sob o olhar vigilante da família, mas para sua sorte, essa família é apresentada na narrativa através de seu sobrinho Felipe, um tímido e tranquilo adolescente que vai passar um tempo em sua casa por estar, a princípio, de castigo.

Guta é apresentada em um cotidiano que escapa as convenções de uma senhora na terceira idade que mora sozinha. Ela bebe, fuma e vai muito bem, obrigada. Felipe, por outro lado, é um garoto quieto que claramente gostaria de estar em qualquer outro lugar. De maneiras distintas, cada um vive em seu universo particular.

A relação dos dois personagens começa de fato a se consolidar quando tia Guta, ao tomar banho, leva um tombo e chama Felipe para ajudá-la a levantar. A situação constrangedora se transforma em um importante marco para os dois que, a partir desse momento de intimidade e respeito, passam a mais do que simplesmente se dar bem, mas a tentar entender as motivações e limitações da vida do outro.

A estética bem construída é um grande elemento para que a narrativa mantenha seu ritmo e continuidade. O universo de Guta e Felipe prende a atenção com a bela composição da fotografia, juntamente com a direção de arte e cria ambientes que destacam as personalidades bem definidas para o espaço daquela historia e daquelas pessoas. Os objetos cuidadosamente posicionados e os móveis clássicos que compõem a casa de Guta criam uma duplicidade que também refletem na personagem.

De uma maneira leve, a história é um debate sobre personagens, e sobre personalidades. Tia e sobrinho são dois desajustados que levam a vida em seu próprio ritmo, e no final das contas encontram um no outro a maneira de manter sua identidades e encontrar novos caminhos.

De Castigo está na mostra Panorama Paulista 1 e na Infanto-juvenil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A Era de Ouro: o palco e a verdade

a era de ouro

por Bianca Elias –

A vida em torno de festas robotizadas pelas roupas pretas e o eletrônico tem grau de normalidade que vai dos paulistanos aos cearenses. Não cabe falar de uma pureza de raiz do paulistano que cresceu no coração do progresso econômico, pois quando não motorizada, a identidade mais miscigenada é a sua. Falamos aqui, ou falam Miguel Antunes Ramos e Leonardo Mouramateus, dos efeitos da cidade que perde suas convicções naturais e se transforma em impérios modulares de coqueiros e arranha céus de vidro; homens que se auto enclausuram com a identidade mantida no sotaque e mais nada.

A Era de Ouro aparenta um resultado final (ao menos até agora) de ensaios sobre a vida dentro dos muros invisíveis e sobre quatro rodas. Os realizadores em codireção sintetizam o que é brincar de atuar para a conquista do sucesso profissional e, hoje não desvinculado, pessoal. São tomadas diretrizes de duração de planos, escolhas de cores e palavras corporativas para a imersão no espectro burguês que não se discernem da presença preponderante desses elementos ermos na vida real: um incômodo invasivo toma conta do espectador que, mesmo não indo na contramão da ideologia mercadológica que se retrata, identifica um constrangimento ainda que não saiba qual é. O contato entre Simone e David, que se viram pela última vez no Ceará, acontece pela vitrine do viver em São Paulo e, por conta das tentativas vindas dele, de se resgatar o elo antes vivo e poético entre os dois. Um passado teatral que os conecta respinga apenas na teatralidade de Simone na vida real.

E e Salomão, ambos no festival deste ano e codirigidos por Miguel, em mesmo nível, mas em teor documental, resgatam pelo sarcasmo de suas imagens e silêncio a representação dos estacionamentos e do templo da Igreja Universal do Reino de Deus da mesma maneira em que se perpetua um papel para os personagens da ficção: ao alcance da aprovação em sociedade cria-se um discurso convincente sobre si mesmo e para si mesmo. O Completo Estranho (também em mostra) de Leonardo Mouramateus se situa dentro do mesmo universo em Fortaleza e cria o cenário para falar da sobrevivência conquistada através das máscaras, onde perucas e danças ensaiadas fazem parte de uma encenação pensada para ser verdadeira.

Relações esfriadas pela vida e outras esquentadas pela ideia de ser arte consagram-se e, sem força, acordam no dia seguinte sem esperança para ser. Numa descaracterização dos personagens, que vem sem informações adicionais que não seus nomes e vícios de entonação, poderíamos pensar no filme sendo realizado diegeticamente em qualquer lugar do Brasil, quiça do mundo.

Os dois diretores traçam caminhos que passam pelo entendimento da fraqueza relacional e/ou o fortalecimento inevitável das barreiras de concreto, para que juntos pudessem sintetizar um propósito, um fim em si: o alcance de consciência na retomada da atuação teatral. A Era de Ouro termina com Simone cedendo aos textos por ela conscientemente esquecidos e os declamando em voz alta, aos prantos, exterminando sua outra aparência e dando espaço ao riso por ferir David com seu cartão de visita de vidro – o papel dela o fere, e lhe invade o riso leviano do reconhecimento. Se atuar é estar em palco, então é o palco a única possibilidade da verdade.

A Era de Ouro está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Kyota e sua sabedoria precoce

kyota

por Letícia Fudissaku –

ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS

Em meio às intensas tramas presentes na Mostra Internacional 4, o curta Kyota – O Pequeno Entregador foi como uma brisa de ar fresco. Com uma trilha tipicamente japonesa, o curta já dita seu ritmo leve e agradável. Kyota é um garotinho sagaz e carismático em sua excentricidade. Por se tratar de uma sequência, não há muito tempo para apresentar o personagem – o que não chega a incomodar, porque assim o conhecemos melhor conforme a história se desenrola. Além disso, o incidente incitante da narrativa é novidade tanto pra nós quanto para Kyota: uma pequena recém-chegada em seu bairro.

Me impressiona a habilidade dos realizadores de curtas-metragens, como um todo, de transmitir o máximo de informações visualmente, dado o tempo reduzido. Só pelo chapeuzinho de Kyota, vemos que ele é diferente dos demais e, ao ver uma garotinha de macacão e máscara, seus olhos brilham em comemoração: “Achei alguém como eu!”. Por uma coincidência, sua mãe tem de entregar uma encomenda na casa dos novos moradores. E lá vai o pequeno Kyota cumprir essa missão – a visão de um garotinho tão jovem caminhando sozinho cheio de mercadorias é quase absurda aos olhos da brasileira que sou, de tão impraticável que seria em nossa realidade…

Quando o encontro acontece, a história toma um rumo bem diferente do habitual boy meets girl. Kyota descobre que as coisas que lhe chamaram atenção na menina eram apenas ordens vindas do pai. Num diálogo simples e ao mesmo tempo profundo, ela diz “Pensei que você era igual a mim, ia te chamar pra brincar comigo”, ao que Kyota responde algo como “Nós não precisamos ser iguais para brincarmos juntos” (talvez em forma de pergunta, não me lembro bem). Unidos, os dois se libertam de seus adereços – o chapéu dele e o macacão dela – e saem juntos para brincar.

O pai da garotinha, furioso, vai correndo ao seu encontro. É até divertida a postura de Kyota, nem um pouco intimidado pelo homem – pelo contrário, chega até a elogiar sua atitude. A fala inocente de Kyota desperta o pai de seu extremismo e este se ajoelha frente à filha, pedindo-lhe perdão. No que diz respeito ao núcleo familiar, a sociedade japonesa é vista como muito rígida e ligada à disciplina. Justamente por isso, essa inversão (pais abandonando sua autoridade pelo bem dos filhos) é válida e presente em outras produções japonesas – como o longa Pais e Filhos, de Hirokazu Koreeda.

É interessante reparar no dilema de Kyota, paralelo aos acontecimentos, de largar ou não seu chapeuzinho. Não me arrisco a identificar o que ele simboliza, pois ainda quero assistir o primeiro filme da sequência. Mas é seguro dizer que, assim como seu protagonista, o curta-metragem Kyota – O Pequeno Entregador é autêntico e envolvente, retratando temas complexos em situações simples.

Kyota – O Pequeno Entregador está na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Os Contos da Maré: folclore é documento

os contos da mare

por Amanda Martinez –

Apesar de classificado como documentário, o curta Contos da Maré (2013), de Douglas Soares, conta mais ficções do que dados estatísticos sobre o surgimento do Complexo da Maré, bairro de baixa renda no Rio de Janeiro. Remetendo aos primeiros moradores da comunidade, o filme escolhe junto de seus entrevistados uma maneira diferente e ao mesmo tempo tradicional de documentar a história de um lugar: contando suas histórias.

Inseridas em um formato documental convencional, com enquadramentos estáticos e abertos dos entrevistados, histórias de família são contadas informalmente à câmera-diretor. Divididas em capítulos, como em um livro, são mitos muito semelhantes ao folclore brasileiro, mesclando animais e pessoas em um só ser através de situações que se repetem – a diária transformação em lobo, a troca de pele da cobra, etc. A ficção se torna cada vez mais presente através de takes noturnos e mais soltos acompanhados de uma forte construção sonora, gerando uma dualidade de gênero que coloca em dúvida a veracidade dos depoimentos dados com convicção pelos moradores da Maré.

Como nas lendas, a resposta a essa indagação nunca é completa, se apoiando mais na relação de confiança entre narrador e ouvinte do que no conteúdo em si. As máscaras vestidas pelos entrevistados colocam-se em meio a isso, dando-lhes o caráter de personagens ao fazer uma analogia entre eles e os animais dos contos. São personagens do filme Contos da Maré que narram histórias mirabolantes e, simultaneamente, personagens (ou animais) de suas próprias histórias, algo que lhes confere uma espécie de credibilidade, mostrando ao espectador a possibilidade de aquilo ter sido realmente presenciado por alguém.

Entretanto, antes que seja possível depositar alguma confiança no que é dito, as próprias testemunhas põe em jogo a realidade de seus contos, desconstruindo a esperada função das histórias de transmitir acontecimentos ou alertar gerações seguintes sobre alguma moral. Os contos da Maré têm fim em si mesmos e sua importância está simplesmente no fato de terem existido em uma comunidade em crescimento, seja para divertir ou botar medo, preenchendo a escassez de pessoas e construções da época.

Ao transitar entre dois gêneros, Contos da Maré traz a lenda como caráter documental de uma sociedade, colocando em pauta o poder das histórias na construção de uma determinada cultura. O folclore criado no Complexo, por compor parte significativa da memória daquela população, serve não só como lembrança, mas também como registro, definindo o passado do local como um período em que os mitos eram verdade e o presente como um tempo em que as pessoas, incluindo seus narradores, já não acreditam tanto em nada disso.

Os Contos da Maré está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Os pecados do programa LGBT

o retorno

por João Pedone –

A sessão do programa Diversidade Sexual, Assunto de Família do dia 26 no Itaú Augusta foi aberta por uma das curadoras da mostra, que contou que o programa teria surgido a partir dos filmes, e não o contrário. Segundo ela, os quatro filmes seriam, de toda maneira, selecionados para o festival, mas que a afinidade temática entre os quatro filmes motivou a criação de um programa exclusivo. Ela nos contou essa breve história a fim de justificar a existência de um “programa gay” na mostra, o qual ela considerava uma maneira antiquada de se inserir no debate LGBT. De fato, a questão da legitimidade da manifestação é pertinente, mas o que nos interessa aqui é a aproximação formal e a legitimidade da representação dos LGBTs nesses quatro filmes, cujas afinidades são bastante reveladoras.

Dos quatro filmes que compõe o programa, três (Reflection, Le Retour e Pride) são filmes militantes, no sentido em que colocam o “ser gay ou não ser” como problemática central da obra. Os três protagonistas enfrentam um conflito na relação com a sexualidade de algum ente querido que habita o universo próximo: o filho, o irmão mais velho ou o neto. Dos quatro, apenas nos dois do meio (Le Retour e La Méteo des Plages) ambientam-se em espaços extra familiares, o que lhes permite tratar desse conflito em diálogo com outras problemáticas sociais e pessoais. Nos outros dois, o problema está restrito ao universo familiar.

Reflection se passa dentro do microcosmo mãe e filho, onde não há vozes dissonantes que intervenham nesse equilíbrio familiar, apenas ilustrações pontuais de intolerância que talvez contaminem a percepção da mãe. A identidade de gênero do menino está colocada como um dado positivo desde o início do filme no sucesso profissional e na beleza que ele alcançaria mais tarde na vida, e a narrativa é o mero relato do percurso de aceitação da mãe. Personagem, inclusive, que nada tem de individualidade, apenas repete seu papel social de “mãe” e reproduz a visão do americano de classe média. Há, inclusive, uma despolitização do assunto do preconceito, já que este nunca é entendido como “problema”, e o aceitamento pela mãe é o gesto óbvio.

Pride, de maneira inversa, apresenta o não-percurso da irredutível não-aceitação da sexualidade do neto por parte do avô. Este avô também é personagem conhecida, familiar ao imaginário LGBT: o velho que vê a homossexualidade como “valor” oposto ao trabalho. Ele, no entanto, vai ser confrontado com um mundo cujos valores estão em mutação, provando que essa figura de vilania está relegada ao passado.

Em ambos os casos, a situação e os valores das personagens não se alteram. E, no entanto, uma “virada de jogo” aqui seria uma peripécia melodramática banal, que em nada agregaria à discussão, mas somente “resolveria” a trama. Aquilo que se constata dos quatro filmes é a “crise do drama”: quando os valores fogem ao terreno das instituições burguesas, o drama recai sobre a própria personagem e suas convicções de mundo, e ela passa a conflitar consigo mesma.

E, no entanto, quem poderá dizer que os filmes coloquem valores em conflito? Que eles produzem algum tipo de ambiguidade ou de contradição? A própria maneira como essas tramas estão tecidas leva a uma estagnação da discussão. Recai-se num formato ilustrativo, ou alegórico, ao ponto de Pride quase repetir o modelo cristão onde o símbolo máximo da identidade homossexual é a violência sofrida por conta dela (vide a cruz).

Em todos os filmes do programa, o confronto final, o clímax, não se realiza. As questões são internalizadas a um ponto em que o espectador já não é mais capaz de partilhar delas, e sua resolução acaba incorrendo no ato arbitrário de aceitar (no caso de Reflection) ou não (no caso de Pride) a diferença. O único dos filmes que resolve isso com graça é Le Retour, onde o confronto entre irmãos é excluído do filme. A resolução, enquanto estrutura arbitrária, não vem poluir nem simplificar os sentidos da relação do menino consigo mesmo e com a identidade do irmão.

Estes filmes têm um tom de previsibilidade que muito os enfraquece. Essa previsibilidade é produto de uma pauta social extrafílmica sobre os direitos LGBT, mas os filmes internalizam essa previsibilidade, antecipando o conflito central e sua resolução pela maneira como o tema “intolerância” está colocado.

Lidar com temas polêmicos a partir de formas estabelecidas, é uma maneira válida e potente de “conscientizar”. Afinal os filmes gays não precisam ser todos Querelle. Talvez meu maior desgosto seja, justamente, que esses filmes busquem, antes de “problematizar”, “conscientizar”. E essa é uma postura muito delicada, ainda mais em se tratando de obras de arte.

Clique aqui e veja a programação da sessão Diversidade Sexual – Assunto de Família no Festival de Curtas 2014

Um cinema de velhinhos

geru

por Artur Ivo –

É interessante como muitos curtas estão bem ligados à família e as vertentes mais exploradas são crianças/adolescentes e idosos; os idosos se destacam bastante, acho eu que seja por causa de sua apatia e simplicidade – é mais fácil fazer um curta com eles, e também por causa que idosos sempre tem algo para dizer. O espectador muitas vezes aparece como um confidente deles, alguém que está lá só para ouvir seus problemas e suas histórias, como um terapeuta ou um Eduardo Coutinho. Suas experiências e seu relatos são muitas vezes exagerados e os idosos acabam quase endeusados, imaculados, “os sábios idosos que poucos ouvem, vou fazer ouvi-los através do meu curta”.

No entanto, alguns realizadores conseguem captar seus idosos de forma muito legal, frequentemente reinventando a câmera e seu papel no filme, colocando-a dentro da cena, sempre percebida pelo seu personagem mais sábio, e principal, claro. E o cineasta, em todos os casos (mesmo naqueles que não reinventa a câmera), pauta seu protagonista em ações familiares, comuns para todos – por exemplo o jantar de família, a foto de família, a visita ao seu avô, o que contribui para o espectador não se perder quando a câmera muda de lugar ou quando alguma situação inusitada aparece em cena.

Como reinvenção do papel da câmera destaco dois curtas: Geru e Vailamideus. Ambos usam sua câmera dentro da cena e são disfarçados de documentário: o personagem principal não sai do quadro, percebe a câmera e interage com ela. Essa permanência dos idosos no quadro faz com que eles fiquem cheios de carisma para com a plateia, ao contrário de seus familiares. Enquanto estes andam, se movem e falam num ritmo frenético, os dois protagonistas são mudos, pouco expressivos, e esse carisma, esse contraste e essa permanência na tela os deixam interessantes.

Apesar dos curtas serem quase idênticos em relação aos papéis e ações dos seus personagens, considerando o plano de imagem são quase opostos. Em Geru, seu personagem é seguido enquanto anda por aí, arrasta cadeiras e almoça, até uma hora em que ele encontra a câmera face a face. A partir daí o filme se torna todo subjetivo, não vemos mais o velhinho, mas vemos o que ele vê. Por outro lado, Vailamideus só tem um plano – o filme inteiro a anciã fica sentada, com sua família tirando fotos com ela, ninguém olha pra ela, ela não fala nada, não se move, não faz gesto algum, mas mesmo assim ela é interessante e a plateia entende seus sentimentos, inclusive os compartilha.

Mas por que será que se fazem tantos filmes de idosos? Parece um tema interessante, familiar
e ao mesmo tempo esquecido dos grandes centros de cultura – eu mesmo consigo listar poucas peças e livros sobre o tema, e filmes também. Entretanto parece um tema comum em curtas brasileiros, pois além desses dois também assisti a A que deve a honra da ilustre visita este simples marquês? e Pausas Silenciosas, todos com algum traço de documentário e com idosos como personagens principais. Fico pensando também se não seria um modo de
conseguir história mais fácil, ainda mais para um documentário – nesse sentido lembro de O Gaivota, um curta brasileiro que passou no Anima Mundi desse ano que também falava sobre velhice.

De qualquer forma posso destacar que mesmo que os cineastas utilizem o tema idoso eles não se privam apenas na construção de documentários com suas histórias e memórias. Dos filmes que citei aqui, três deles são focados nisso, já os outros dois (que foram os que mais analisei) tentam pensar na vida do idoso e na sua expressão, além de conseguirem criar novas formas da câmera para isso.

Filmar sem sujar os pés

a cor do fogo e a cor da cinza

por João Gabriel Villar da Cruz –

Já algo preocupa quando, ao assistir um documentário, a plateia ri de alguém que fala sério. Na sessão de A Cor do Fogo e a Cor da Cinza, de André Félix, o desconforto é enorme. Na tela, Wagner, um rapaz de 18 anos, abre para a câmera todo o seu mundo pessoal com a felicidade de perceber um ouvinte atento e interessado, e seu relato é ouvido por entre gargalhadas da plateia. Num momento desses, é natural que se procure a origem dessas risadas, que mecanismo pode ser culpado por transformar o depoimento sincero em fonte de escárnio. Se esse mecanismo apenas se insinuava aqui e ali, é em uma cena filmada em uma boate que ele se escancara.

Wagner trabalha como drag queen, apresentando-se em uma boate numa performance de Diva Pop. O filme que, até agora, se preocupava em explorar o universo criado por Wagner, muda, sem razão aparente, e se transfere para seu ambiente de trabalho, onde filma uma apresentação do rapaz, logo após filmar a apresentação de stand-up comedy que o precedeu. A câmera se coloca num plano estático e distanciado, apesar do zoom que permite que os dançarinos sejam vistos de perto. O enquadramento pouco elaborado tira o movimento próprio da dança para circunscrevê-la numa visão fria e externa, a lógica do filme e do diretor se sobrepõe à do ambiente filmado. A música incidental ecoa dentro da tela, distante do filme. Vemos a maquiagem do rapaz, analisamos seu rosto, vemos o mecanismo por trás de suas expressões, enxergamos seus deslizes na dublagem da música, olhamos para o rapaz como para um E.T., cada consciência de cada movimento seu está escancarada, seu rosto parece artificial. Esse mecanismo se confirma quando, na cena seguinte, Wagner assiste a uma apresentação de Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Loiras, de Howard Hawks. Ele pausa e explica que usa do mesmo artifício que Marilyn ao levantar as sobrancelhas e nesse momento a plateia do cinema ri – o que acabamos de ser mostrados passa longe de Marilyn.

Mas uma apresentação como a de Wagner tem toda uma magia interna que não se pode ignorar. A luz, as pessoas que ali estão, a música, a dança, a embriaguez, a alegria, a relação do público: existem vários e vários fatores que aproximam, para quem está ali, a apresentação de Wagner à de Marilyn. E a câmera ali age como uma intrusa que não compreende a lógica interna do ambiente filmado e capta imagens mecânicas, sem ideia do que está acontecendo – é isso que nós vemos. Enquanto Hawks compreende e explora seu objeto filmado, dando-o corpo, glamour, atmosfera, vida – nem Marilyn Monroe consegue ser Marilyn Monroe sozinha –, André Félix poderia muito bem estar filmando um programa culinário ou um show de horrores com a mesma apatia. Tiramos um discurso do que o diretor quer ver, e o assunto em si – o rapaz, as pessoas, a apresentação – é deixado de lado para que a voz do realizador possa passar. Existe um discurso anterior à filmagem que tira do assunto a sua possibilidade de autenticidade, de originalidade, sua capacidade de movimentar o documentário em vez de ser movimentado por ele.

O diretor usa desse poder o tempo todo, de forma mais ou menos direta. Em seu modo de fazer perguntas, de filmar a representação em papel das novelas, está claro que o filme está sendo feito para que se possa mostrar o que alguém de fora vê ali, e não para realmente revelar algo ou permitir que algo se demonstre. Consequência fatal de filmar um mundo externo ao seu sem tentar adentrá-lo antes. O discurso está todo lá: o deslumbre nas novelas, o sonho, o efeito no povo, a ingenuidade do rapaz. E o personagem em si que sirva de boneco para o que o diretor tem a dizer, que se submeta inocentemente à crueldade da câmera que, sem que Wagner ouça, ri tanto dele quanto a plateia do filme. O funcionamento interno do mundo filmado perde lugar para a visão externa e preconceituosa desse mesmo mundo, baseada no que de mais imediato nele se mostra. Resta se desculpar a Wagner pela atitude escrota da qual ele foi vítima.

A cor do fogo e a cor da cinza está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

O Táxi de Escher: o tempo do espaço

o taxi de escher

por Valéria Tedesco –

A presença do infinito nas obras de M. C. Escher pode ser considerado um de seus pontos mais marcantes. A ideia de uma representação que sempre retorna para o início de uma maneira diferente da original, formando assim uma sequência infinita de caminhos e possibilidades, são constantemente apresentadas pelo artista em suas obras.

Logo no início do curta-metragem O Táxi de Escher, exibido na sessão Panorama Paulista 1, a referência ao universo idealizado por Escher fica clara desde o primeiro momento. A cena de abertura, com a entrada e saída de pessoas do mercadão, aparecendo e desaparecendo ao cruzar uma linha imaginária no centro do quadro, é a primeira relação de desconstrução entre espaço e tempo que podemos levantar na narrativa.

O filme está em constante desconstrução. O retorno as cenas iniciais com perspectivas e acompanhamentos diferentes. As mudanças de enquadramento atuam quase como um novo personagem, o único que parece estar presente em todos os momentos, é através da mudança de quadro, seja ele fixo ou com a movimentação da câmera, o filme percorre todos os caminhos dos personagens que, no final, tornam-se apenas um.

A narrativa retorna o tempo todo para diversos elementos apresentados em cenas anteriores, como quem diz, olhe mais uma vez, preste mais atenção. As voltas que o filme percorre, mais do que representar a busca do personagem por respostas internas e externas a ele, instiga o espectador a observar melhor as situações e objetos ao redor, e perceber que eles podem ter mais do que um, dois, três significados. Em diversos momentos, as mesmas falas são utilizadas com abordagens diferentes, reforçando a ideia de pluralidade de interpretações, mesmo para uma ação idêntica.

De todas as maneiras de interpretar o filme de Flavio Botelho e Aleksei Abib, fico apenas com a sensação de que não se faz possível, tampouco necessário, criar uma definição limitada sobre a narrativa, mas sim uma reflexão em constante movimento sobre os (des)encontros e suas consequências.

O Táxi de Escher está na mostra Panorama Paulista 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Doble Chapa: além do horizonte

doble chapa

por Andréia Figueiredo –

É incrível pensar o quanto são diversificadas as possibilidades de temas que podem ser tratados em curtas-metragens, o que faz com que grande parte das vezes o espectador se surpreenda com as abordagens de cada assunto. Uma verdade incontestável é que não importa suas impressões sobre o filme, suas percepções jamais serão as mesmas depois da experiência. Uma citação que sintetiza muito bem o que estou tentando dizer é a do cientista Albert Einstein, que diz que “A mente que se abre a uma nova ideia, jamais voltará ao seu tamanho original”.

O curta-metragem Doble Chapa dos diretores Diego Vidart e Leo Caobelli, uma parceria entre Brasil e Uruguai, demonstra muito bem a ideia de abrir, literalmente, novos horizontes e explorar lugares. O filme conta sobre a viagem dos diretores pela fronteira do Brasil e do Uruguai, seu passado e seu presente, seus habitantes e as suas percepções, além de uma profunda discussão sobre a questão dos limites territoriais.

Procurando saber o significado de “doble chapa” descobrimos que quer dizer “filho de brasileiro com uruguaio”, com origem na época em que as fronteiras entre Santana do Livramento e Rivera foram abertas, e os carros circulavam de um país para o outro usando duas placas, uma brasileira e a outra uruguaia. O filme aborda muito a questão das fronteiras em si e usa de citações belíssimas de autores que dizem que no mundo não há fronteiras, mas que os homens criaram nações. É uma experiência muito curiosa assistir ao curta, pois faz com que conhecemos uma parte do nosso país e além. Durante os 20 minutos tentamos lembra de nossas aulas de histórias, de áreas que foram palcos de diversas batalhas e disputas por território.

Doble Chapa é uma experiência inesquecível por se tratar de uma intensa viagem de descobertas, tanto para os diretores quanto para os espectadores. Conhecemos cenários, pessoas e locais que pouco teríamos contato sem esse material. Outro ponto a favor é o uso de uma linguagem poética ao nos mostrar as belas imagens do sul do país. Refletindo mais profundamente, posso afirmar, esse curta se trata de uma viagem ao passado e ao presente de uma terra que já viveu muito e viu grandes momentos, e que agora, se encontra calma e tranquila, como deve ser.

Doble Chapa está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Vailamideus: risos e incertezas

vailamideus

por Beatriz Couto –

Uma senhora, em sua cadeira de rodas, olha fixamente para frente. Ao seu redor, o caos de uma festa familiar. Convocados por uma animada mulher ao microfone, filhos e netos se posicionam para fotos com a avó, em uma procissão infinita de sorrisos para a câmera. A situação é incômoda, e a narração da mulher é tão absurda que dá ao documentário ar de ficção. Vailamideus, de Ticiana Augusto Lima, é um filme muito simples, mas capaz de levar a reações diversas.

São apenas dois planos. O primeiro, com a sequência de famílias tirando fotos, se coloca no lugar da câmera fotográfica. O afastamento causado pela burocratização do processo é acentuado pela expressão neutra da avó. Enquanto as pessoas mudam ao seu redor, ela continua ali parada. Um corte mostra ao público o rosto da senhora, e suas reações se tornam visíveis. Enquanto a mulher ao microfone canta e conduz a festa, ela sorri e se emociona.

Grande parte do estranhamento do filme é causado pela narração. Ter um microfone em uma festa familiar denuncia seu tamanho sem mostrar mais do que uma parede na cena. A mulher, animada, convoca os parentes para as fotografias; um tio é provocado por ainda estar comendo, outro é citado por estar cuidando de uma menina com febre – é perceptível a descontração e intimidade do evento.

O público na sessão ri. Ri da mulher ao microfone, de desconforto com a situação e das peculiaridades da família, mas não é um filme de humor. Toda a situação ao redor da matriarca tem cara de despedida, de aproveitar essa chance por não saber se haverá outra, talvez aquela seja a última festa e a última foto. Há uma tristeza nas entrelinhas de tanta comemoração.

Ticiana, a diretora do filme, é uma das meninas na última família. Ela é a 57ª neta, filha de um dos doze filhos da avó. A senhora, Myrthes, tinha 94 anos no documentário e hoje tem 96. Saber um pouco mais sobre aquelas pessoas torna reais as figuras na tela. Festas, como a retratada, acontecem duas vezes por ano, no aniversário da avó e no dia das mães, e a diretora não sabe o que acontecerá quando a avó morrer. É impossível o espectador não se envolver, caso já tenha passado por situação semelhante.

Vailamideus não é um dos maiores filmes do festival, mas é um dos mais íntimos. Ticiana fez escolhas certeiras de montagem e com certeza irá marcar quem o assistir.

Vailamideus está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014