A identidade no outro

menino peixe

Em Menino Peixe a diretora Eva Randolph retoma alguns pontos já trabalhados em seu curta Dez Elefantes (2008): família comandada pela figura matriarcal, relação de cumplicidade e embate entre irmãos.

No novo curta as figuras femininas são centrais, nos papéis da mãe grávida e da filha pequena. O homem está sempre por vir, seja o bebê que a mãe espera e o pai trabalhador em uma plataforma em algum lugar do oceano. A aguá, aliás, possui importância capital na narrativa como aquela que acolhe as figuras masculinas e as mantém longe do convívio familiar – o filho dentro da barriga, o homem no trabalho rodeado pelo mar.

No início do curta, a mãe conta para a filha que no princípio todos éramos peixe, até que se tornaram como são hoje em dia, o bebê em seu ventre é um peixe que nada em seu líquido. É o bastante para que a menina comece a divagar sobre a identidade do novo membro da família, o rosto daquele que vem dividir com ela as atenções da figura protetora e que pela proximidade do parto recebe cada vez mais atenção.

Novamente o mar aparece como figura preponderante. Em seus sonhos a menina se imagina na praia à noite, no breu, com o mar revolto, e seu irmão, da mesma idade que ela, se revela um menino-peixe, cheio de escamas. A relação a princípio é tão tensa quanto o mar, não se entendem, brigam. A diretora, como em seu primeiro curta, se vale de maneira muito feliz do artifício do esconde-esconde, brincadeira favorita infantil, para revelar o jogo de achar no outro sua identidade, de encontrar eco. A brincadeira no escuro, no espaço violento de ondas quebrando vai se tornando mais intensa ao longo da narrativa, conforme o parto vai se aproximando cada vez mais, assim como o ciúmes da menina em relação à mãe.

Eva consegue de maneira satisfatória criar um paralelo simbólico entre vida e a água, através do mar, bravio, misterioso, forte, imenso, como potência de criação e nascimento e através das cenas nas quais a filha aparece nadando na água represada e calma das piscinas, recurso artificial que não possui a mesma força do oceano, um simulacro apenas, como desejo da menina em retornar ao útero materno.

A cena final amarra de maneira muito interessante este jogo de procurar a si mesmo, a construção de identidade no outro. Após a ida da mãe abruptamente para o hospital e a chegada atrasada do pai para o parto corta para a mãe dormindo calmamente numa cama na praia onde os irmãos se encontram à noite, o mar furioso, mas a figura materna está lá calma e adormecida, os dois sempre no breu, sempre apenas contornos. Possuem lanternas, o garoto aponta sua lanterna para o rosto da irmã, ela se ilumina e aparece finalmente na escuridão. Ela sorri.

Malu Andrade

Menino Peixe está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Memória dela, memória nossa

memoria da memoria

Assisti a esse filme e pensei (não sem uma dose de delírio, afinal, estamos falando de “desbunde”): “Está aí um caminho de encontro entre os realizadores caseiros com as possibilidades de expressão estética!”. Paula Gaitán fez, ao mesmo tempo, muito e nada além do que qualquer realizador diletante faria: reuniu as pessoas próximas dela para mostrar o que havia gravado e guardado sem rebuscamentos plásticos evidentes, contando apenas com as características físicas do suporte.

Falando como nós, os hoje como nunca, capazes materialmente de registrar tudo ao nosso redor, em certa medida ela nos supera: pelo dispositivo adotado nesse “egodocumentário”, ela mescla os interesses íntimos (muito próximos aos que nos movemos a reencontrar quando revemos os registros audiovisuais antigos de aniversários ou férias em casa) oferecendo e também construindo um prolongamento de tempos e espaços entre seus interlocutores no mundo diegético e os espectadores atrás da tela.

Seja pelas contextualizações pontuais do passado histórico, seja por comentários sobre o que envolveu os momentos de captação de imagens específicas, ela coloca o público como parte daquela apreciação familiar dos registros esparsos, nos torna unidos com as pessoas que em certo momento descobrimos serem seus filhos, uma vez que como eles parecem demonstrar, também vemos aquele material pela primeira vez, e somamos a curiosidade meramente voyeurista (inerente do cinema, mas em certa medida só possível com uma sensação de viver certo pacto implícito próprio da intimidade) ao interesse cinéfilo, de procurar por expressividades amplas, que possam estar nas imagens e sensações resultantes de sensibilidades incomuns, com algo de extraordinário, no sentido etimológico do termo: para além dos indicadores das trivialidades cotidianas, mesmo lidando com elas.

O caminho que apontei no início do texto: tanto se fala na contemporaneidade como período histórico em que as fronteiras entre imagem pública e imagem privada, se confundem, se borram ou são literalmente derrubadas, talvez o curta aponte o lado mais positivo de um cenário correntemente tratado como apocalíptico: a chance de executar uma construção de memória que é igual e sinceramente espontânea e construída, acidental e intencional, intuitiva e consciente.

Honestidades e liberdades factuais e criativas. Alternativa possível aos aficionados por gravar algo que ultrapasse os acidentes cômicos e/ou emulações televisas vistas no YouTube, se for repetida e gradualmente “distorcida”, reinterpretada, aos sabores artísticos e possibilidades técnicas de cada realizador, por ser livre sem ser negligente, deixar à mostra o que da mesma forma também podemos abraçar e abarcar: as músicas que ouvimos, os espaços que conquistamos, as pessoas às quais nos afeiçoamos.

Rafael Marcelino

A Memória da Memória está na mostra Cinema do Desbunde 2

Aprendendo a crescer

confabula de uma menina dissecada

Uma das oportunidades mais interessantes que festivais como o Kinoforum oferecem aos cinéfilos, é a de assistir obras de países como o México, cuja a produção cinematográfica atual raramente chega ao circuito nacional. A terra que nos presenteou com diretores excelentes, como Alejandro Iñarritu, esse ano nos agracia com uma bela obra de fantasia. Contrafábula de Uma Menina Dissecada, de Alejandro Iglesias (xará de Iñarritu), é uma “coming of age story” com ares de conto de fadas macabro e uma impecável direção de arte, aos moldes da escola del Toro, que, vale lembrar, também é mexicano.

Gizella está fazendo 15 anos e sua família burguesa lhe prepara uma grande festa para apresentar a filha, que se tornou mulher, à sociedade. A mãe lhe diz como se portar, o pai lhe ordena o que dizer e a filha mal consegue respirar embaixo de tanta pressão. Sozinha em seu quarto, enquanto termina de se arrumar, a garota nota algo embaixo da cama. Aproxima-se e descobre o objeto: um unicórnio de brinquedo, que lhe faz sorrir pela primeira vez. Assim como a cena citada transparece, é sobre essa dificuldade de abandonar a infância que a obra trata, mas, como toda boa fábula, abusa de metáforas para tecer seus posicionamentos.

Nesse ponto, os mais exigentes podem torcer o nariz e argumentar que a escolha por essa figura de linguagem é pobre e tola, mas, se Milan Kundera afirma que uma simples metáfora é capaz de fazer nascer o amor, podemos supor que uma série delas são capazes de gerar no mínimo alguma reflexão. Aos que eu não consegui convencer na sentença anterior sobre o possível valor das simpáticas alegorias peço que interrompam a leitura por aqui: elas serão encontradas em abundância pelas próximas linhas.

Aos que continuam, peço desculpas por minha extensão digressão. Mas bem, voltemos a trama. Durante o jantar, em meio a figuras mais bizarras que qualquer ser mitológico, a menina nota algo dentro da boca e, incomodada, vai até o banheiro onde descobre que um galho está crescendo dentro de sua boca. O peculiar membro cresce cada vez mais ao decorrer da noite, enquanto Gizella luta para escondê-lo a todo custo. Existe algo na jovem que quer aflorar, rebeldemente, mas a mesma se censura, no desespero de cumprir o seu sacro dever de honrar pai e mãe.

E aí reside o conflito da nossa donzela indefesa. De um lado, o anseio por agradar a mãe, que lhe proíbe de sujar as sapatilhas alvas quando o genuíno desejo de moleca é o de afundar os pés descalços, sem qualquer receio, na lama macia; a obrigação de recepcionar banquetes enfadonhos quando sonhar com unicórnios é muito mais interessante. O medo de crescer quando esse processo significa abandonar todos os prazeres que você conhece até então. A jovem se encontra desarmada em meio à guerra que seus pais declararam contra a sua infância, sem nenhuma trincheira para a mocinha se esconder.

O destino de Gizella, que precisa escolher entre o indivíduo e a instituição familiar, tem cores de tragédia grega; ela, sabores de Antígona, heroína de Sófocles que teve que escolher entre sua família e seu governo; e o drama é familiar a quase todos nós. Como toda fábula indica, por definição, o filme se encerra com uma moral da história. Mas sem a promessa de um final feliz.

Henrique Rodrigues Marques

Contrafábula de uma menina dissecada está na Mostra Latino-americana 5. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Mãe, você viu meu tripé?

no interior da minha mae

A situação não nos é estranha: uma viagem de visita a parentes distantes. Onde muitos jovens veriam apenas dias tediosos e bochechas apertadas à exaustão, Lucas Sá encontra um material valioso para a produção de um curta-metragem. No Interior da Minha Mãe é, em termos gerais, um simples registro de uma viagem de família – porém, a narrativa é habilmente conduzida pela sagacidade e irreverência de seu diretor, tornando-se um relato familiar (com o perdão do trocadilho) a todos os espectadores.

É fácil se identificar com as situações e piadas internas da família de Lucas, como se fosse possível sentir seu embaraço quando, por exemplo, sua mãe usa chicletes mascados nos puxadores do armário. Os momentos em que as personagens interagem com a câmera – mais precisamente, com o câmera – são particularmente divertidos, por mostrarem uma completa descontração nesta relação, como se as tias de Lucas já estivessem acostumadas com o “estrelato”.

Neste aspecto, pode-se discutir a ideia de privacidade. No filme, Lucas de fato expõe bastante seus familiares, em alguns momentos um tanto constrangedores. Mas, com o decorrer da história, nota-se que esse tom é próprio do autor (presente inclusive no título), porém não particularmente ofensivo. Não é como se ele usasse suas tias como fantoches abobalhados – até porque, notamos uma sintonia entre ele e os demais, como se o bom humor estivesse no sangue. Talvez esteja!

As cenas que incluem fragmentos audiovisuais da região dão um toque mais sarcástico ao curta, como o pequeno rádio de pilha tocando músicas antigas e a TV exibindo programas esdrúxulos – o inspirador monólogo da apresentadora de um programa de jogos por telefone é uma das cenas mais engraçadas (“Eu não gosto de falar isso não, mas eu vou falar!”). Outro momento interessante é a sequência de uma festa típica em que o áudio original é substituído por uma música eletrônica, de balada.

Daí, ficam claras as duas poderosas armas de Lucas: a montagem e a linguagem. A primeira faz uma verdadeira transmutação com o material capturado, dando-lhe dinamismo e tornando-o ainda mais divertido. A segunda é, talvez, a mais importante, uma vez que atribui um sentido mais profundo do que uma mera risada compartilhada: com uma linguagem bem definida, No Interior da Minha Mãe nos convida reinterpretar o conceito de família – não só como uma instituição necessária, mas com a ternura e a naturalidade que cada uma delas apresenta em seu habitat natural.

Letícia Fudissaku

No Interior da Minha Mãe está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Prever o futuro, lembrar o passado

mauro em caiena

Há um cinema muito particular vindo de Pernambuco, Fortaleza e Recife, nos últimos anos, e que é de rico conteúdo. Mais interessante ainda, uma boa parte dele tem se concentrado, organizadamente, no curta-metragem. A primeira vez que percebi isso foi quando vi o curta Muro (2008), de Tião, que me deixou com uma forte impressão, um turbilhão de ideias e uma inquietação grande de saber de onde tinha vindo – quem eram esses “novos” realizadores?

Fui descobrindo que havia muito mais no cinema do Nordeste do que eu conhecia; o timing para a descoberta foi ótimo porque, desde então, não é difícil encontrar ótimos filmes em festivais que tenham surgido dali – Mauro em Caiena, de Leonardo Mouramateus, é um deles.

Como muito dos filmes que tem surgido de realizadores dessas cidades, Mauro em Caiena é um filme que sabe muito bem como observar seu redor, ou seja, entender criticamente a experiência do tempo e lugar no qual se vive, além de, no caso, saber se projetar no passado, presente e futuro desse lugar – o cineasta se entende como parte de um processo, que inclui sua família e seus vizinhos: enquanto a cidade no entorno se altera, mudam também seus sonhos, sua maneira de agir e olhar.

O primo moleque de Leonardo gosta de se fazer de dinossauro e o curta abre com uma colagem de filmes antigos do Godzilla e a performance do garoto para a câmera. Cômica e de criatividade infantil, o filme, narrado como uma carta de Leonardo ao seu tio, consegue apreender outras camadas dessa relação, criando metáforas, como a do Godzilla, que estimulam interpretações abertas a seu público – no caso, achei tanto cômica quanto angustiante a citação do monstro nuclear nesse meio (o filme se mantém no preto-e-branco das colagens), a comparação do sentimento do fortalezense frente a urbanização com a paranóia masoquista do Toquiano pós-guerra. Há uma certa depressão contida nesses filmes, que se comunica através da mais aguda consciência social, unida de formas fílmicas interessantes, densas.

Depois dessa introdução, o filme continua como uma colagem de retratos, paisagens e registros poéticos dos arredores do cineasta, através do diálogo imagem-texto; descobrimos que a carta, ou a vídeo-carta, se dirige para o tio de Leonardo, Mauro, que se exilou na Guiana Francesa, um “lugar para o qual ninguém foge”. Filma-se na impossibilidade de encontrar esse tio, de apreender e conhecer completamente a história de uma família e de conseguir prever seu futuro. Resta filmar, registrar, e projetar-se nessas memórias, nesses indivíduos e nessas trajetórias, para projetá-las numa sala de cinema e com isso, talvez, comunicar esse sentimento fugaz da simpatia. Paralelismo de coração, que se tem com a trajetória de sua família, indistinta de suas memórias, potencias e da materialidade de onde se vive, em constante transformação, lugar de inquietude, separação e transição da infância a uma vida adulta que trás novos horizontes – mas quais?

Comecei falando que, quando primeiro me deparei com um curta nordestino recente, fiquei me perguntando “como chegaram nesse resultado?” (ou seja, que trajetória cinematográfica percorreram para criar aquela obra), até descobrir que muitas dessas obras são exatamente sobre esses deslocamentos, de cidade, biografia e olhar.

Rodrigo Faustini

Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

A memória, a infância e o Godzilla

mauro em caiena - godzilla-ed

Mauro em Caiena (Leonardo Mouramateus, 2012) é como uma carta-cinema. Não uma carta filmada, ou um filme sobre uma carta, mas as duas coisas dentro de uma só, palavra e imagem, indissociáveis. A leitura sutilmente saudosa, ficcional, divagante traz a qualidade de memória para as imagens em preto e branco. Expande-se o universo das duas dimensões justapostas, que se fazem como camadas para a leitura una do curta-metragem.

A carta é endereçada a um tio, Mauro, que está na Guiana Francesa, e saiu há um tempo considerável de Caiena, esta cidadezinha de interior de descampados e montes de terra de construção. O sobrinho lhe fala com amor, saudade, e talvez, um certo rancor por um tio que se foi e não volta, que deixa a avó sempre na esperança da volta. Talvez, também, com um pouco de inveja por ele ter ido embora deste pequeno cerco. Lembra-me o livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, só que sob a visão do irmão que fica, vendo o outro que se foi, desgarrou-se e deixou mágoas na família. O irmão que, talvez, também quisesse ter ido.

Enquanto as palavras, informais como devem ser as cartas, correm, as imagens as confirmam, distanciam, embolam-se com elas. O menino que imita um cachorro e depois sobe em árvores deve lembrar o tio criança, diz a carta. Aqui, o que se fala é quase o que se vê – o menino não é um personagem construído, está ali como ilustração, é uma imagem reflexiva do lugar, das crianças que subiam e ainda sobem em árvores. O primo pequeno e o tio que se foi há tanto tempo são os mesmos, condensados nessa imagem – e assume-se o caráter de imagem, de reprodução, de ilustração.

A carta, talvez para convencer o tio a voltar, diz que o lugar continua o mesmo de sempre. O que vemos na imagem são os montes de terra de construção, são os guindastes, imagens de um lugar em constante transformação. Caiena nunca mais será a mesma da infância de Mauro, mas o modo como o realizador resgata as memórias do seu tio e as insere nas imagens atuais, faz lembrá-lo de que Caiena ainda é Caiena. Daqui falo da dimensão dolorosa da memória da imagem: um lugar nunca é o mesmo, mas o permanece nas nossas memórias, e os nossos olhos por vezes procuram na paisagem, ansiosos, aonde é que as imagens da nossa memória permaneceram. E eles permanecem, de algum jeito. Também nas imagens de um filme visto na televisão, como as cenas de Godzilla, em que as imagens ficcionais de um outrem tornam-se carregadas de memórias nossas, particulares. Memórias que são conjuntas, mas que por estarem desligadas de qualquer lastro de realidade, podem ser tomadas como nossas, de um momento que pertence a todos.

Algumas imagens atestam a triste derrocada da memória do lugar. Quando o realizador filma a árvore da infância de Mauro sendo derrubada, esta árvore que não é de seu afeto – já que ele diz que estava de ressaca e pouco interessado na árvore que ia ser cortada – não deixa a tomada toda em filme: é triste mostrar o decapitamento total desta memória. Mas está lá, como atestado dessas mudanças irrevogáveis.

A permanência parece estar na figura da avó, figura comum entre os dois, sempre citada pelo narrador da carta, com certo pesar, contando ao tio o modo como a avó o abraça achando, por vezes, que ele é Mauro. Engraçada colocação, que justifica a fixação num tio que já se foi há tanto tempo. Escrever-lhe é quase um pedido de troca de lugar; e uma carta (ou um filme) é quase sempre uma vontade de troca, estar por uns momentos em outro lugar, junto de um outro. Mas é essa avó, a verdadeira árvore no quintal, que fincada com suas raízes no mesmo lugar, está em tela e em vida como uma presença divina, matrona da infância de todos os meninos, recipiente das saudades, das memórias. É o elo da ligação, não de um lugar, passível de transformação, mas de gente comum, que aparece em tela picando legumes para pular ali um gato e comer os restos.

E nessas indas e vindas dolorosas sobre a memória, a saudade, os lugares que já não podem ser os mesmos (se o tio voltasse ele reconheceria Caiena como o narrador da carta parece tanto insistir?), o realizador termina o filme voltando a si mesmo. É preciso deixar Guiana Francesa e a vontade de ser Mauro, de estar longe, é preciso deixar de filmar aquilo que deve ter sido a infância de Mauro – resgatado pelas memórias da avó – para constituir-se, também, como alguém; e não mero observador desse processo. E dessa forma, não poderia ser tão emocionante a longa tomada de uma menina em uma balada, um universo exclusivo ao realizador. A menina é filmada com carinho e a narração que já se calou. É preciso voltar a vida, e a vida do que há por vir. A imagem da menina olhando para a câmera não é, como outras, a ilustração de um passado, a reconstituição de uma memória, mas sim atestado do presente.

Mariana Vieira

Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Sobre barbas, gotas de sangue e saudades

a navalha do avo-ed

Certa vez, um mágico das palavras disse – assim, como quem não quer nada – que as pessoas não morrem e que ficam encantadas. A Navalha do Avô é sobre esse “encantar-se” de Guimarães Rosa. Carregando consigo frescos Kikitos (melhor ator e roteiro em Gramado), o curta com roteiro assinado por Pedro Jorge e Francine Barbosa narra com sensibilidade e sem pieguice a relação entre avós e neto.

Sustentado pelas miudezas do cotidiano, nas pequenas impaciências com os mais velhos e, ao mesmo tempo, nos carinhos sem-fim, o curta diz muito com poucas palavras. O avô José, vivido pelo crítico, roteirista e escritor Jean-Claude Bernardet, está no cotidiano do neto Bruno não apenas quando a avançada idade e a sua saúde debilitada demandam atenção. O neto respira os avós, presentes até mesmo nos retratos rascunhados, feitos no papel pardo do pãozinho da padaria.

Sem grandes eventos, o espectador é conquistado pelo carisma do silencioso avô para conviver por alguns momentos com a família, seu passarinho e a sua navalha. A representativa (e doce) navalha do título. É por meio dela que conhecemos, de fato, a barbearia, já presente no lindo e dramático prólogo. As memórias dos companheiros de barba do avô tocam o jovem neto, que passa a cuidar do avô com ainda mais afeto. A passagem representada pela visita de Bruno à barbearia, quando assume o controle da navalha, é um marco do processo de mudança. O humor e uma pequena dose de terror dão o tom à sequência.

Por trás de um roteiro singelo, mas profundo; de atuações excelentes (destaque para o protagonista Kauê Telloli); uma montagem que privilegia o silêncio e as elipses e tantos outros aspectos técnicos de muita qualidade, está a competente e talentosa direção de Pedro Jorge. A Navalha do Avô é um destes curtas sobre a ausência daqueles que são tão presentes. Um filme que fica gravado na cabeça e no coração, principalmente naqueles que já tiveram algumas destas pessoas “encantadas” por perto.

Camila Fink

A Navalha do Avô está no Panorama Paulista 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

A cidade e seus personagens

os irmaos mai

Thais Fujinaga, diretora do belo curta-metragem L, que arrebatou mais de 50 prêmios e menções, volta às telas neste ano com mais um maduro filme e repete a parceria com o jovem ator Luis Mai King. O argumento de Os Imãos Mai, sobre um fragmento de um dia de dois garotos em busca de um presente de aniversário para a avó pode parecer simples. Se no seu curta anterior a realizadora desenvolveu com muita delicadeza o drama de Tetê e Hector – de aceitação da aparência, a partir da intimidade entre os dois amigos –, em Os Imãos Mai ela privilegia novamente as relações pessoais enquanto promove um profundo olhar sobre a metrópole.

Como num road movie, o trajeto é mais importante do que o destino. A partir das andanças nas ruas, quando de fato vivenciam a cidade, é que os meninos são transformados pelo acaso, pelas surpresas, pela convivência com os anônimos que cruzam o seus caminhos. São Paulo está lá tal como é: bela, agressiva, concreta e humana. Diferentes crenças, valores, relações de trabalho, posições políticas e sociais são apresentadas de diversas formas e colaboram para traduzir a capital paulista em imagens.

A cidade que desconstroi é a mesma que transforma e recria, promove mudanças e reflete o relacionamento dos irmãos chineses, ora conflituoso, ora de bem-querer. Nesse sentido, de maneira bem orgânica, os meninos respondem aos estímulos da cidade, que por sua vez, retruca com uma sinfonia de sons, empecilhos e acidentes. Uma tentativa de mandar fazer um presente, uma chuva fora de hora, vontades, raivas e desejos incontroláveis, tudo pode provocar novos sentimentos e reações. O que é inútil para alguns pode ser tudo para muitos outros.

Se o roteiro, também assinado por essa segura diretora, é excelente, o trabalho com som e trilha sonora também merecem destaque. Finalmente, a sequência final é uma síntese do curta. Enquanto os irmãos partilham de pontos de vista opostos e sentem a necessidade de interagir, mas guardam certo distanciamento, cada um em seu cantinho da varanda do prédio. No enquadramento, ao fundo, um caótico e fluido fluxo de carros, enfatizando mais uma vez, a relação dos meninos com a cidade.

Camila Fink

Os Imãos Mai está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Um desbunde tátil

céu sobre a água

Havendo um feixe de luz, a câmera aceita de tudo – a liberdade do equipamento cinematográfico, com a vinda das câmeras Super-8, portáteis, uniu-se também a uma liberdade do olhar e da moral (o “tudo”) do que se registrava na película. A partir de sua inserção na mão do estudante, do amador ou do cineasta, trouxe consigo imagens que antes não eram vistas, nem registradas, abrindo a porta para novos discursos, criando uma utopia de liberdade de expressão diferente do contexto ao qual surgiu no Brasil.

A “limitação” técnica do formato (1/4 da ‘qualidade’ de um filme 32mm), veio a fazer com que o gosto pelo Super-8, hoje em dia, tenha ficado restrita ao aficionado ou ao historiador, levando-nos a esquecer o íntimo acesso que o equipamento trazia ao registro do corpo, da paisagem, da mescla entre aquela coisa qualquer e aquela outra que talvez estivesse ali perto, e que, no filme Super-8, se conectavam como se fossem o mesmo: a buceta e o céu como em Céu sobre Água ou Hendrix e Van Gogh em Jimi Gogh. A Mostra Cinema do Desbunde 1 me fez notar essas delicadezas do aparato, que, como uma luva, couberam na indistinção lisérgica da cultura dos anos 70.

A curadoria da Mostra conseguiu reunir em apenas cinco filmes de Super-8, de cineastas de extensa obra, um atestado vigoroso da versatilidade inconsequente do formato, com suas utopias recriadas e suas associações histriônicas. O Duelo, de Daniel Santiago, foi a única exceção na questão de unificação, pois divorciava o cineasta superoitista daquele do 16mm, já afirmando seu humor e descontração como sua política. Toques, de Jomard Muniz de Brito, mitifica o corpo jovem e belo, cuja inocência convive com o ménage, corpo que fala e estremece, quase virando um videoclipe precoce da música Pelos Olhos, de Caetano Veloso.

Curiosamente, Jimi Gogh também veio a se assemelhar, para mim, a um proto videoclipe – embora isso reduza sua experimentação, traz em mente o lado pop tropicalista do qual os superoitistas pareciam se filiar, adotando aqui uma estética de colagem iconoclasta que sabia apreciar as pérolas de Jimi Hendrix, associando sua guitarra histérica às imagens psicossomáticas de Van Gogh. Tudo podia virar tema, virar um ensaio no Super-8. O ridículo faz parte, claro, e torna muito mais coletiva a experiência na tela.

Agora, os curtas que mais me forneceram uma experiência, visual e corpórea, borrando as barreiras, foram Gato/Capoeira e Céu sobre água. Gato/Capoeira, de Mario Cravo Neto, nos apresenta um corpo, o do Capoeira baiano, e sua harmonia com aquele espaço: descendo as íngremes ladeiras da cidade, o corpo do Capoeira já dança. Não se trata de um olhar distanciado, analítico, e sim um olhar empírico, compactuante, que entra na capoeira e não se limita a seguir seu “protagonista” se há algo interessante acontecendo numa janela próxima. Das anotações mentais, poucas sobraram, além da sensação de “Nossa, desvia!” durante a filmagem da luta de capoeira – há uma adrenalina que caminha junto ao Super-8, trazendo outra camada ao seu registro. Ou refazemos os passos do cinegrafista e algumas de suas associações momentâneas ou ficamos livres a divagar sobre a divagação que se transcorre na tela, passando a escutar-se os sons que não estão lá (o filme é mudo).

Durante a conversa com os curadores após a sessão, levantou-se a questão de uma tentativa de narrativização do filme de Super-8, seja por parte do cineasta-montador ou do público acostumado a enxergar por histórias, e, em Céu sobre água (de José Agripino de Paula), que poderia ser tomado como um mero registro de uma tarde, isso me ocorreu – há um intenso simbolismo em seu registro. Não se tratava de uma tarde qualquer, mas sim de ensaios circulares sobre água, céu, mãe, filha, corpo e os movimentos e reflexos de todos esses fatores, sob uma trilha eventual que convidava à meditação, sobre a purificação do corpo mãe-filha por um céu-mar, ou do mar-mãe pelo céu-filha – lisergia tátil. Há uma dificuldade em se categorizar esses filmes.

A narrativização me veio por uma associação distante, ou nem tanto – o filme Window Water Baby Moving, de Stan Brakhage, no qual, em 16mm ele filmou o parto natural de sua filha, na banheira de sua casa. A intimidade e o olhar curioso e desregrado das câmeras me fizeram ver os dois filmes como irmãos, sequências: Brakhage como a violência natural, e afetiva, do parto e Céu sobre água a lembrança do elo amniótico da maternidade, evocado pela câmera; um filme se destaca pelo vermelho, o outro pelo azul.

A comparação não vêm em vão: para mim, o Super-8 brasileiro, esquecido e escondido, merece um olhar tão afinado e radical quanto àquele dedicado à filmes conceituados como os de Brakhage (que também foi um forte nome no Super-8). Há muito a se escrever a respeito desses filmes e, principalmente, há muito o que se ver.

Rodrigo Faustini

Clique aqui e veja as próximas sessões dos filmes na mostra Cinema do Desbunde 1

Alumbramento em Super-8

gato capoeira

Transgressão, liberdade, voz, expressão, calor, erotismo, crítica, contracultura, tesão. É por este caminho que vai a intrigante seleção Cinema do Desbunde, com curadoria de Marcelo Caetano e Hilton Lacerda.

A programação faz uma retrospectiva de filmes rodados em Super-8 especialmente na década de 1970, período de rica produção nesta bitola no Brasil. Entre os selecionados, os maravilhosos Gato/Capoeira, de Mario Cravo Neto, e Céu sobre água, de José Agripino de Paula, representativos de um movimento, ou melhor, de uma geração baiana. Filmes produzidos em um contexto ditatorial e que representam, cada um à sua maneira, um retorno ao domínio dos corpos, que dançam um baile de liberdade de expressão, seja no ar ou na água. Corpos estes que representam tantos corpos reprimidos e escondidos, violentados física e moralmente por um regime de exceção.

Em Gato/Capoeira, a figura do homem negro, em uma das mais conhecida formas de expressão de uma cultura em combate. Em Céu sobre água, a força da mulher, do poder da criação. Em ambos, a beleza dos músculos, das curvas, da gestação, da infância, tudo em uma relação orgânica com a natureza e eternizado na granulação superoitista.

Ao mesmo tempo, a programação da Tomada Única (a partir da proposta do Festival Internacional de Cinema Super8 de Curitiba) oferece aos realizadores contemporâneos a oportunidade de produzir estes outros desbundes, de olhar o passado – com um pouco de nostalgia sim, e porque não? –, mas com um caráter de transformação, a fim de refletir um outro contexto com o frescor dos novos olhares. O resultado são imagens de crítica social e política, que abordam a nossa relação com a tecnologia, a especulação imobiliária, a religiosidade e a sua resinificação e, claro, com o corpo. A proposta é um belo convite ao desbunde, para além dos limites da programação do Festival Kinoforum.

Camila Fink

Clique aqui e veja as próximas sessões do Cinema do Desbunde 1