Todos os sistemas naturais se degeneram
O paulista “Merencória”, dirigido por Caetano Gotardo e exibido no Panorama Paulista 1, discute acima de tudo as relações humanas. O constante entrelaçar de dois, enquanto tentam entender um ao outro. A provável diferença entre o que “eu” e o “outro” enxergam em uma mesma situação. O curta nos mostra a enorme distância que percorremos ao olhar no olho de outra pessoa, mesmo com toda a intimidade que rega o momento. Podemos dizer, então, que “Merencória” é o vão da intimidade, por onde ela escapa, tornando tudo muito mais frágil.
Começamos o filme com Júlia (Andrea Marquee) fumando um cigarro em um terraço. Ela está deitada, e o posicionamento do seu corpo nos faz perguntar se ela fuma o cigarro há cinco anos ou cinco minutos. Completamente estirada, Júlia já nos diz algo ali, nessa primeira cena. É o prelúdio do sentimento avassalador que chega e atravessa o homem.
Entra Manoel (Rogério Brito), e senta-se ao seu lado. No momento em que o faz, revive uma memória. Ele e ela, ensopados no terraço, ao terminar um jantar a dois. Ela desesperada para guardar as coisas, ele grita: deixa a tempestade lavar os pratos! Um momento glorioso a ser lembrado, mas que na sua passagem para lembrança dá nome ao filme; merencória, melancolia, ou o peso da lembrança.
Existe uma lei na física, conhecida como a Segunda Lei da Termodinâmica, que nos diz o seguinte: “Não existe processo natural cujo único resultado seja resfriar um reservatório de calor e realizar trabalho externo”. Ou seja, todos os sistemas naturais se degeneram quando abandonados a si mesmos. “Merencória” é um complemento a essa afirmação: nada, nem ninguém, é imune à decadência do tempo, nem mesmo as relações de amor.
É muito delicado e sutil o modo como Caetano Gotardo nos mostra isso, através da sua decupagem que, entre falas do casal, muda constantemente o ângulo no qual os vemos, e intercala a imagem dos dois com planos de detalhes da casa, mostrando justamente a corrosão do tempo. Como se o espaço habitado seguisse o mesmo rumo da relação dos dois.
Eles começam, então, uma conversa singela sobre o medo de Manoel, de que as brasas do cigarro caiam no rosto de Júlia. Dessa forma, Caetano Gotardo nos fala do amor sem fazer uso de nenhum clichê. E fala do descompasso do amor. Manoel vê Júlia deitada, fumando, e tem medo de que ela se machuque. Júlia apaga o cigarro contrariada, sendo tolhida pelo seu amor. O amor exaltado, que antes fazia gritar aos ceús, hoje os aprisiona em uma vida que deixou de existir. É o viver a relação pelo que foi, não pelo que é.
Júlia sai para o seu ensaio, e Manoel é deixado só com as marcas que o cercam. Como um final cármico, vem a chuva e o lava também.
O ensaio de Júlia é como escolher uma música (“A Última Estrofe”, de Cândido das Neves) que expressasse a cena anterior por inteiro. Bruno Rufolf toca um acordeon melancólico, que nos remete a outra época. Júlia canta as dores de um homem que hoje canta na esperança de que seu amor volte. Júlia é posta num contraluz, e a câmera coexiste em toda a intimidade da cena. A voz de Júlia é capaz de alcançar a todos os amores que escaparam com o tempo.
Num arremate final, a câmera, que estava focada em Júlia, aproxima-se lentamente do sanfonista, que agora a assiste, à capela, com o olhar paralisado de quem também foi arrebatado. Vamos então para a cena final, com Carlos (Bruno Rudolf), o sanfonista, estirado no chão, seminu, num plano que remete ao de Júlia, estirada.
Renan (José Geraldo Jr.) tenta tirá-lo dali, primeiro calmamente, e depois com força. A luta transforma-se numa transa desesperada por algo que não existe mais. Carlos solta a última palavra do filme para Renan: volta. O olhar de Renan, num plano mais próximo, estatelado, como quem não escapa. Porque na verdade nenhum de nós escapamos do passado. Porque, como Edwin Morgan diz,
nunca houve morangos
como os que tivemos
naquela tarde tórrida
sentados nos degraus
da porta-janela aberta
de frente um para o outro
seus joelhos encostados nos meus
os pratos azuis em nossos colos
os morangos brilhando
na luz quente do sol
nós os mergulhamos em açúcar
olhando um para o outro
sem apressar a festa
para chegar ao fim
os pratos vazios
deitados sobre a pedra juntos
com os dois garfos cruzados
e me aproximei de você
dócil naquele ar
nos meus braços
abandonado como uma criança
da sua boca ávida
o gosto de morangos
na minha memória
inclina-se de volta
deixe-me amá-lo
deixe o sol bater
sobre o nosso esquecimento
uma hora de tudo
o calor intenso
e o relâmpago de verão
nas colinas de Kilpatrick
Deixe a tempestade lavar os pratos.
(Louise Belmonte)