CASCA DE BAOBÁ

Lugares que não esperam que ocupemos

Baobá é uma árvore de regiões semiáridas conhecida pela grande capacidade de armazenamento de água, e que durante a estação de seca deixa suas folhas caírem.

O filme de Mariana Luiza, exibido na Mostra Brasil 1, traz um diálogo de afeto entre duas intimidades, realidades extremas de uma mãe e uma filha. Heloísa é cotista da Universidade Federal do Rio de Janeiro, saiu do Quilombo da Machadinha, no norte fluminense, para ir à capital estudar e tentar outra vida.

Ela quebrou o ciclo que vinha sendo mantido por sua mãe, que ainda trabalha no canavial, e avó (que foi trazida como escrava). Mesmo sendo duas vidas bem diferentes, por meio de Heloísa vemos como suas raízes ainda mostram as relações coloniais e de racismo.

Como essas questões permanecem fortemente, mas como ela própria diz: está “ocupando lugares que não esperam delas”, mas ou já eram delas? O canavial da filha é subir e descer 638 degraus, ser a funcionária que não desiste na loja onde trabalha, uma das poucas negras na universidade.

A supremacia étnica no ambiente acadêmico é de brancos. Mais de 50% da população brasileira é negra, e onde estão esses negros? Ela é uma das poucas da sala e, como as raízes das árvores, ela se empodera e permanece por cima dos asfaltos sociais.

“Ninguém esquece de onde vem, só finge para continuar vivendo.” A intimidade das duas contagia, por meio de uma música aconchegante; o filme de ficção que parece um documentário é construído pela voz off que lê as cartas entre filha e mãe. O sentimento das duas é igual à cena em que Marília (mãe) vai colocar café e o derruba fora do copo. O sentimento de mães por seus filhos que moram longe, e que extravasa lembranças, reconstrói e fortalece laços.

“Casca de Baobá” transborda simplicidade, saudade e afeto, construído de forma a enfatizar a força dramática da relação entre mãe e filha. A aposta da diretora é falar dessa relação e, em alguns pontos, discutir a questão do racismo e da luta de uma mulher pobre e negra.

No fim, as duas filhas são como o Baobá: armazenam as lágrimas e transbordam sentimento nas estações em que estão juntas.

(Guilherme Franco)

CAMINHO DE SEMPRE

“Pode parar fora do ponto?”

As diretoras de “Caminho de Sempre”, Bruna Vieira e Sarah Corsi, contam a história de uma mulher comum que chega tarde da noite do trabalho para casa.

A voz over que ouvimos contém diálogos simbólicos. “Pode parar fora do ponto?” É uma forma de mostrar a passagem do tempo; podemos identificar que já é tarde da noite. A ausência da imagem como meio poético nos diz que algo sério acontecerá, e a trilha sonora também está a nos lembrar isso; quando a protagonista (Queren Pereira) está para descer do ônibus, quando ela está caminhando pela periferia, o som experimental que se mistura com as batidas de seu coração e os latidos dos cachorros passa-nos a sensação de um lobo à espreita. Depois, a trilha sonora se torna frenética na medida em que a protagonista avança no percurso da chagada até sua casa, tornando-se um forte elemento no curta.

O uso da câmera subjetiva de forma trêmula e a câmera na mão são características do cinema independente. Muito uso de primeiríssimo plano, sendo o único plano inteiro a explorar melhor a narrativa aquele da última cena, que traz o violentador (Bruno Peixoto).

Quando assistimos a uma notícia de violência sexual cometida contra as mulheres no jornal, o assunto causa polêmica. Muitas pessoas despejam a culpa do ato repulsivo na vítima, através de comentários como “Pelo horário em que andava na rua, não podia terminar de outra forma”, ou pelo comentário-clichê “Também, com o tamanho de suas roupas estava pedindo para ser estuprada”, como se o motivo da mulher usar roupas curtas fosse uma desculpa para o estupro.

Mesmo com a lei de prevenção contra a violência sexual feminina, muitos homens não a respeitam. Até mesmo os policiais parecem fazer pouco desses casos, por meio de perguntas que, além de expor a vítima, são um ato de deboche e desrespeito, em interrogatórios intermináveis que mais constrangem a vítima do que a defendem.

Exibido na mostra Oficinas Brasil, “Caminho de Sempre” consegue o resultado esperado, que era o de transmitir sua reflexão, feita em pouco mais de quatro minutos em um cinema de urgência, com um assunto sociopolítico que afeta grande parte da população feminina no Brasil, ainda que a linguagem imagética tenha ficado um pouco a desejar.

(Vanessa Karina de Oliveira)

AS BATALHAS DE SÃO CARLOS

Pedra no sapato

O documentário “As Batalhas de São Carlos”, dirigido por Adriana Caren Cassin Duz e exibido no programa Cinema em Curso Petrobras 2, relata o movimento cultural do hip hop em São Carlos (SP) e a ocupação de uma casa abandonada para a formação da Casa do Hip Hop Sanca.

Batalhas de rappers aconteciam ali. Era um lugar abandonado, onde havia tráfico de drogas e prostituição. Porém, o projeto de revitalização estendeu-se para além do planejado, com oficinas de DJ, MC, grafitti, break, reforço escolar, cursinho preparatório para o ENEM, oficina de gestão de carreira artística, oficina de fotografia, oficina de reciclagem e reaproveitamento de materiais, entre outras atividades. O espaço também era muito voltado para o público infantil, transformando-se em um centro cultural.

Quando essa informação chegou aos ouvidos da Prefeitura Municipal de São Carlos, o então centro cultural de lazer passou a ser a pedra no sapato das autoridades. Por quê? Por preconceito? Afinal, o lugar abandonado havia anos antes da ocupação, que era para ser um Centro de Idosos, só foi requerido em 2014, ano em foi ocupado. A pergunta que não quer calar: por que coincidências infelizes como essas ocorrem no Brasil em questões políticas, sociais e culturais?

O filme não ficcional também nos traz outras reflexões, e não somente culturais, como a mulher no universo dos rappers. Em uma das batalhas de hip hop entre homem e mulher, nota-se o apelo verbal gordofóbico constante nas rimas, como um desespero oculto. Isso me parece um complexo de inferioridade inconsciente.

Em depoimento, Karluz Magum — cordenadora do projeto ao lado de Sara Donato –diz que existe muito machismo dentro do hip hop. “Não adianta lutar contra uma opressão sendo opressor.” Deparamo-nos com essa verdade na medida em que nos imergimos no mar rumo ao oceano de pontos de vistas equivocados, para naufrágio da sabedoria, oceano adentro sem mais visões, emergindo os equívocos, boiando então o preconceito e, ao olhar o espelho, a alma grita já tardia à realidade.

Em entrevista, Adriana Caren Cassin Duz fala sobre o enquadramento das luzes da cidade ao término do documentário. “Vejo como e agora o que vai vir? Parece que as luzes apagaram e acabou!” Adriana brinca com o foco da câmera para simbolizar o que ela deseja passar.

(Vanessa Karina de Oliveira)

A GIS

Um registro sensível

Um dos destaques da Mostra Brasil 5, “A Gis” é antes de mais nada um documentário de valor contundente por conta da denúncia da situação de intolerância em que vivem as pessoas transgêneras, tanto no Brasil quanto em Portugal, e também pela importância do registro e da memória de um crime de ódio, um caso de transfobia que infelizmente ainda espelha tantos outros.

É muito difícil ver esse filme e não lembrar de Dandara, mais uma mulher transexual brutalmente assassinada, em março deste ano, no Ceará, novamente num caso com menores de idade diretamente envolvidos no crime, em tortura que levou à morte. Parte da ação que vitimou Dandara foi filmada e compartilhada por milhares de pessoas. E o vídeo reacendeu o debate sobre transfobia no Brasil.

Gisberta foi morta em 2006, depois de ser torturada por um grupo de 14 adolescentes. A forma como o diretor Thiago Carvalhaes nos conduz a esse fato hediondo é uma dolorosa experiência. Mas, muito além da memória do crime, temos aqui a reconstrução da pessoa pela memória dos outros e pelas pistas que ela deixou em sua passagem, seus poucos objetos, suas fotos, sua letra nas correspondências com a familia.

O que sobra de nós quando somos limados pela sociedade?

Por matérias de jornal, vamos rememorando esse crime brutal que se tornou um importante marco da luta pelos direitos LGBTs em Portugal, mas aqui no Brasil, terra natal de Gis, sua história ainda é pouco conhecida.

O atestado de óbito de Gis, o resgate de seu corpo, o diagnóstico de quando ela procurou assistência, os pontos de virada em sua vida, a relação com a família, sua trajetória. O filme faz um retrato sensível de Gisberta, vai nos aproximando gradualmente dela, guardando seu clímax quando enfim nos apresenta a imagem de Gis. Da morte pra vida, transcendendo numa bela canção.

(Ande Romano)

A PASSAGEM DO COMETA

Pesadelo noir feminino

Em “A Passagem do Cometa”, exibido na Mostra Brasil 7, temos a situação do aborto numa clínica clandestina pelo olhar da mulher. A diretora Juliana Rojas aborda um tema ainda muito atual, mostrado aqui em 1986, mesmo ano da última passagem do cometa Halley, propondo uma reflexão sobre o que mudou nesse quadro. A tensão é mostrada em gestos, olhares e advertências.

Os questionamentos que uma decisão como essa levantam são trazidos em frases que ficam suspensas no ar ao longo da projeção.

“– É só uma mancha!”

“– Parece que esse corpo não é meu!”

Nada no filme é aleatório. A produção é embalada por uma interessante trilha, em especial pela música-tema que evoca o trabalho de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção.

As roupas e cabelos das quatro personagens principais nos levam para a época proposta de forma eficiente. E no cenário carregado de referências dos anos 1980, podemos ver símbolos que nos remetem ao corpo da mulher, como a tapeçaria que fica atrás da recepcionista; toda a ambientação ajuda bastante na nossa imersão temática.

A direção é muito perspicaz na criação da mise-en-scène em vários momentos, flertando com o drama e o suspense, sempre com bastante realismo e de forma enxuta, com lampejos de momentos que a gente completa depois, sobre a realidade daquele contexto. Como na cena em que vemos o cansaço da Dra. Adelaide (Gilda Nomace): quantas mulheres ela atende por dia numa clínica clandestina? O gesto da médica, de empatia junto à paciente, e a forma como é mostrada para a personagem a importância de o trabalho dela ser remunerado ou não, também lançam perguntas.

Uma outra sequência que chama a atenção são os desenhos em néon que se sobrepõem durante o sonho/anestesia de Thais, ao som de uma música que é praticamente um solilóquio cantado. A diretora mostra o momento pós-operatório como um verdadeiro pesadelo noir feminino.

O filme nos conduz o tempo inteiro a uma impressão de que vai acontecer algo ruim. O pior pode ou não acontecer. É como se dissesse que estamos numa situação impreterivelmente ruim, que mesmo “quando dá certo” deixa marcas e traumas.

As diferentes expectativas que duas das personagem têm a respeito daquela noite, seja no aspecto do macrocosmo da passagem de um cometa e o que aquilo traz, ou no microcosmo do interior do corpo da mulher, trazem ecos de “Melancolia”, de Lars von Trier.

(Ande Romano)

PROCURA-SE IRENICE

Contra a lógica da ordem e do progresso

A produção paulista “Procura-se Irenice”, exibida na Mostra Brasil 4, nos concede a honra de conhecer a história de uma mulher forte e talentosa, que marcou o Comitê Olímpico Brasileiro com sua resistência e luta contra o racismo, o machismo e as mordaças da ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970.

Irenice veio à tona não através de dados históricos, mas da falta deles. Seu nome e a notícia de que havia sido expulsa da sua federação acenderam uma luz e um questionamento do motivo pela qual uma mulher negra, campeã e batedora de recordes, era tão pouco conhecida. Iniciou-se, então, uma busca por sua vida e seus feitos.

O documentário nos apresenta, através de entrevistas e poucos arquivos de imagem e áudio, as lutas travadas por Irenice. Na história, o apagamento de personalidades que tiveram um papel importante e de liderança foram feitos durante e depois da ditadura militar. Os grandes chefes aliados ao regime passaram não só a perseguir, mas a fazer invisível a existência desses nomes.

Atualmente, as consequências desses apagamentos são fortes, e a cada década que se passa os dados ficam cada vez mais distantes, e Irenice torna-se mais um nome desconhecido, mais uma história jogada fora em uma sociedade que tanto necessita de representatividade e inspiração.

Mas o que de fato também nos salta aos olhos é a mulher que foi Irenice. Sua coragem, bravura, personalidade e força impressionam. Imaginem: uma mulher negra, em plena ditatura militar, foi capaz, praticamente sozinha, de causar muitas turbulências. A princípio, por bater recordes e participar de campeonatos que não eram bem vistos, por ser mulher.

Seus resultados eram inéditos para a época; nunca alguém havia corrido como ela no Brasil. Depois, passou a usar seus poucos espaços de fala para se posicionar contra as más estruturas dos locais de treinos e as injustiças sociais da época.

Figuras como ela eram um grande perigo para o regime. Os atos de Irenice eram vistos como uma rebeldia que desestruturava a lógica da ordem e do progresso construída na ditadura. Já com um nome consagrado, não era possível que continuasse existindo como exemplo de luta.

Com direção de Thiago Mendonça e Marco Escrivão, o documentário reaviva uma história calada, de uma figura incomum e necessária para a história de luta no Brasil. Irenice não era apenas uma atleta olímpica vinda da periferia, mas um símbolo que demostra a resistência, remetendo aos movimentos Black Power, Panteras Negras e sua luta em prol de uma mudança no sistema.

O filme é todo em preto-e-branco, como um lembrança da fria época que foi a ditadura militar, trazendo o peso e a responsabilidade de pensar e buscar mais Irenices em nossa história.

(Luiz Gonzaga de Souza)

O MONOPÓLIO DA ESTUPIDEZ

Passaporte para a vergonha

Na Mostra Latino-Americana 4, temos um curta assustadoramente real em que a estupidez é algo realmente peculiar. Pode ser um processo e também um sentimento. “O Monopólio da Estupidez” gera o famoso sentimento de vergonha alheia quando essa estupidez chega ao seu ápice.

Explorando um poder de envergonhar e irritar que só a burocracia pode propiciar com maestria, o curta peruano do diretor Hernán Velit consegue misturar, pela natureza do tema, drama com pitadas de comédia. Aquele tipo tosco de situação tragicômica: o cômico sob um paradigma tão sério que desconcerta o público e faz o espectador sentir culpa de sua própria risada.

Com uma paleta de cores em tons pastéis e luz incidente objetiva, a fotografia de cara já constrói um cenário no qual sentimos a impessoalidade robótica, ainda que sejam pessoas a encarnarem fisicamente esse processo-sentimento. A ironia contextual disso tudo só corrobora toda a temperança de um e de outro traço: pessoas não pessoais.

Comédia, quando se percebe o cume da robotização. Drama, quando se nota que toda a seriedade e urgência do caso a ser resolvido está contingenciada por uma situação que emula uma piada prevista.

O som durante a fila de espera denuncia a intenção cômica, assim como o monólogo da funcionária que, de tanto burocratizar, burocratiza seu pensamento a ponto de não lembrar que a cardiopatia que matou o cardiopata é uma causa natural, ou mesmo quando não encontra a causa mortis, cuja descrição óbvia está escrita no documento que ela mesma requisita e espera receber desde sempre.

Ela prefere perguntar para o protagonista algo que ela requisitou, não ouve a resposta, parece não enxergar o outro e não tem uma solução para o impasse pessoal. A impessoalidade do processo agride, incomoda, nos oferece um contínuo bug mental de que algo muito absurdo está acontecendo.

Um curta com um final memorável, com um arco narrativo que termina em um clímax, algo difícil de se fazer com competência. Nisso observamos com surpresa uma síntese mórbida de tudo o que fora anunciado durante todo o roteiro em pequenas doses.

Sem sentido e na expectativa de respostas e soluções que nunca vêm, “O Monopólio da Estupidez” não precisa de descrições: é mesmo um passaporte para a vergonha em todos os sentidos.

(Rogério Henrique Gonçalves)

ANIMAIS

O que é ser humano?

O problema de uma fábula é que ela corre o risco de ninguém se importar com a lição de moral no final. Mas e se for uma lição de moral óbvia, que a princípio todos nós deveríamos saber?

“Animais”, exibido no Panorama Paulista 5, responde. E o faz com maestria. Toca no ponto que fala, sim, que os humanos são animais.

É doido como nas discussões sobre sustentabilidade é escrachada uma dicotomia: homem versus natureza. Como se o homem estivesse apartado da natureza. Mas trago novidades: nós somos animais, logo, fazemos parte da natureza!

E não estou falando que as discussões sobre sustentabilidade são infundadas etc. Não é isso. Mas é muito mais assertivo quando o humano é colocado como parte integrante do meio ambiente. É aqui que “Animais”, dirigido por Guilherme Alvernaz, vence.

E vai além: afinal, o que é ser humano? Como se constrói esse processo de humanização? É claro que o filme não tenta esgotar essas questões, mas traz fatores importantes, como as relações numa sociedade, o saber lidar com o fato de que cada ser é unicamente singular (!), e a interação com o meio.

Entretanto, quando uma incerteza nasce, não se sabe se ela tem origem interna ou externa. No caso, eu não entendi o dispositivo do filme. Subitamente, o ambiente muda. O que aconteceu para que a imagem celestial se tornasse um umbral? Essa é uma dúvida minha ou é uma questão aberta no filme? Com o desenrolar da história, essa dúvida é enterrada, até virar insignificante para a obra.

A animação traz ainda um detalhe gritante: a esperança que vive nas próximas gerações depende do agora. E por mais que tudo isso seja óbvio, ainda é ignorado com sucesso. Logo, qualquer lembrete é mais que válido. É essencial.

(Cauê Vinicius)

FENÔMENOS NATURAIS

Méritos por apostar na sutileza

O ano é 1988, quando Cuba começava, a passos pequenos, a se abrir diplomaticamente para certos países depois de anos de isolamento mundial devido à guerra fria. Num anúncio de rádio, logo nos minutos iniciais de “Fenômenos Naturais”, exibido na Mostra Latino-Americana 5, o locutor fala da importância de maior expressão internacional de que o país precisa, ao mesmo tempo em que anuncia a vinda de um furacão.

Não seria exagero associar esses eventos como uma metáfora da situação em que se encontra a jovem Wilma (Neisy Alpizar), que, enfermeira amadora, se encontra numa competição de tiro ao prato para escolher o representante cubano no próximo torneio mundial. Ou até mesmo associá-los aos tais fenômenos naturais do título.

Escrito pelo próprio diretor Marcos Diaz Sosa, o roteiro acerta em trabalhar na composição de situações que se associam com as mesmas pelas quais passa a jovem. Se Wilma se encontra num país que muito sofreu pressões externas dos EUA, eis que ela se vê num ambiente tomado por pressões internas para conseguir um feito em prol do país.

Muito além, o roteiro tem méritos por apostar na sutileza, como encenar um torneio de tiros em que a protagonista se encontra como única mulher a competir no meio de homens, ou nos breves comentários machistas que um colega de seu treinador (Eduardo Martínez) faz, ou como este, por mais caloroso que tente se mostrar, sempre expõe um detalhe opressor sobre o motivo de ela estar competindo.

O diretor, aliás, é seguro em complementar a sutileza ao utilizar, junto com seu diretor de fotografia Javier Labrador, lentes grande angulares em paisagens abertas como forma de trazer a natureza diminuta de Wilma ou como essas lentes causam estranhamento na imagem através de suas distorções pelo ambiente.

A atriz Neisy Alpizar, por sua vez, é talentosa em transmitir, mesmo com poucas palavras, todo o peso que sente pela urgência de conquistar um feito como forma de comprovar relevar sua importância para alguém (algo que, ao contrário de seu treinador ou de seu país, ela não quer).

Não apenas isso, a atriz ainda utiliza de pequenos gestos que exaltam seu desconforto (note como ela se contrai ao se sentar, o que fará sentido depois, num incidente que não revelarei).

Trágico em sua alegoria sobre a pressão da mulher numa sociedade machista, que mais se preocupa com o narcisismo do que como elas vivem (algo que ocorre em inúmeros outros lugares, vale apontar), “Fenômenos Naturais” é um belo trabalho sobre paralelos de um país que busca se reconstruir com uma mulher que, ironicamente, tenta o mesmo, mas acaba impelida por essa pressão.

(Marcelo Carvalho)

MERENCÓRIA

Todos os sistemas naturais se degeneram

O paulista “Merencória”, dirigido por Caetano Gotardo e exibido no Panorama Paulista 1, discute acima de tudo as relações humanas. O constante entrelaçar de dois, enquanto tentam entender um ao outro. A provável diferença entre o que “eu” e o “outro” enxergam em uma mesma situação. O curta nos mostra a enorme distância que percorremos ao olhar no olho de outra pessoa, mesmo com toda a intimidade que rega o momento. Podemos dizer, então, que “Merencória” é o vão da intimidade, por onde ela escapa, tornando tudo muito mais frágil.

Começamos o filme com Júlia (Andrea Marquee) fumando um cigarro em um terraço. Ela está deitada, e o posicionamento do seu corpo nos faz perguntar se ela fuma o cigarro há cinco anos ou cinco minutos. Completamente estirada, Júlia já nos diz algo ali, nessa primeira cena. É o prelúdio do sentimento avassalador que chega e atravessa o homem.

Entra Manoel (Rogério Brito), e senta-se ao seu lado. No momento em que o faz, revive uma memória. Ele e ela, ensopados no terraço, ao terminar um jantar a dois. Ela desesperada para guardar as coisas, ele grita: deixa a tempestade lavar os pratos! Um momento glorioso a ser lembrado, mas que na sua passagem para lembrança dá nome ao filme; merencória, melancolia, ou o peso da lembrança.

Existe uma lei na física, conhecida como a Segunda Lei da Termodinâmica, que nos diz o seguinte: “Não existe processo natural cujo único resultado seja resfriar um reservatório de calor e realizar trabalho externo”. Ou seja, todos os sistemas naturais se degeneram quando abandonados a si mesmos. “Merencória” é um complemento a essa afirmação: nada, nem ninguém, é imune à decadência do tempo, nem mesmo as relações de amor.

É muito delicado e sutil o modo como Caetano Gotardo nos mostra isso, através da sua decupagem que, entre falas do casal, muda constantemente o ângulo no qual os vemos, e intercala a imagem dos dois com planos de detalhes da casa, mostrando justamente a corrosão do tempo. Como se o espaço habitado seguisse o mesmo rumo da relação dos dois.

Eles começam, então, uma conversa singela sobre o medo de Manoel, de que as brasas do cigarro caiam no rosto de Júlia. Dessa forma, Caetano Gotardo nos fala do amor sem fazer uso de nenhum clichê. E fala do descompasso do amor. Manoel vê Júlia deitada, fumando, e tem medo de que ela se machuque. Júlia apaga o cigarro contrariada, sendo tolhida pelo seu amor. O amor exaltado, que antes fazia gritar aos ceús, hoje os aprisiona em uma vida que deixou de existir. É o viver a relação pelo que foi, não pelo que é.

Júlia sai para o seu ensaio, e Manoel é deixado só com as marcas que o cercam. Como um final cármico, vem a chuva e o lava também.

O ensaio de Júlia é como escolher uma música (“A Última Estrofe”, de Cândido das Neves) que expressasse a cena anterior por inteiro. Bruno Rufolf toca um acordeon melancólico, que nos remete a outra época. Júlia canta as dores de um homem que hoje canta na esperança de que seu amor volte. Júlia é posta num contraluz, e a câmera coexiste em toda a intimidade da cena. A voz de Júlia é capaz de alcançar a todos os amores que escaparam com o tempo.

Num arremate final, a câmera, que estava focada em Júlia, aproxima-se lentamente do sanfonista, que agora a assiste, à capela, com o olhar paralisado de quem também foi arrebatado. Vamos então para a cena final, com Carlos (Bruno Rudolf), o sanfonista, estirado no chão, seminu, num plano que remete ao de Júlia, estirada.

Renan (José Geraldo Jr.) tenta tirá-lo dali, primeiro calmamente, e depois com força. A luta transforma-se numa transa desesperada por algo que não existe mais. Carlos solta a última palavra do filme para Renan: volta. O olhar de Renan, num plano mais próximo, estatelado, como quem não escapa. Porque na verdade nenhum de nós escapamos do passado. Porque, como Edwin Morgan diz,

nunca houve morangos

como os que tivemos

naquela tarde tórrida

sentados nos degraus

da porta-janela aberta

de frente um para o outro

seus joelhos encostados nos meus

os pratos azuis em nossos colos

os morangos brilhando

na luz quente do sol

nós os mergulhamos em açúcar

olhando um para o outro

sem apressar a festa

para chegar ao fim

os pratos vazios

deitados sobre a pedra juntos

com os dois garfos cruzados

e me aproximei de você

dócil naquele ar

nos meus braços

abandonado como uma criança

da sua boca ávida

o gosto de morangos

na minha memória

inclina-se de volta

deixe-me amá-lo

deixe o sol bater

sobre o nosso esquecimento

uma hora de tudo

o calor intenso

e o relâmpago de verão

nas colinas de Kilpatrick

Deixe a tempestade lavar os pratos.

(Louise Belmonte)