UM OLHAR SOBRE A AMÉRICA LATINA – Mostra Latino-Americana 2 – É Preciso Estar Atento e Forte

por Letícia Leão

“De uma forma nova, explosiva, de uma outra maneira”. Essa foi a resposta de Gal Costa a Gilberto Gil ao ser indagada, pela primeira vez, sobre como gostaria de interpretar a música “Divino Maravilhoso”. Canção que, não coincidentemente, tem como uma de suas passagens o título desta mostra. A América Latina continua “divina e maravilhosa”, e a efervescência tanto de criar quanto de experimentar em tempos sombrios nunca foi tão forte. Nós latinos seguimos em busca de nossas identidades e liberdades.

A América Latina, mesmo no momento difícil para a população mundial, se mantém em um movimento constante de reinvenção. As cicatrizes do passado seguem profundas, e o cinema e seus realizadores cuidam de registrar, relembrar e repensar nossos conflitos. O resultado disso, são filmes que cada vez mais se arriscam em desenvolver linguagens e narrativas sobre os nossos cotidianos.

Quem diz pátria diz morte (Chile) traz o cenário do metrô de Santiago como um belo fio condutor deste lugar cheio de memórias. Em cada estação, ele nos convida a uma viagem imersiva em regiões da cidade onde ainda existem resquícios dos difíceis tempos da ditadura chilena. Em paralelo, a obra mostra os receios e anseios da população durante as manifestações ocorridas no final de 2019, que tiveram como estopim o aumento da passagem do metrô. Se em um lado, há pedidos de melhorias em direitos básicos da sociedade, no outro há uma resposta repressiva de soldados e representantes do governo, que presentificam o medo de se manifestar e voltar a ter uma ditadura como a de Pinochet. Adentro (Colômbia, Costa Rica, Brasil) amplifica os problemas sociais ao retratar a intensificação das nossas feridas com a chegada da covid. O filme é uma melancólica experiência no cotidiano íntimo de seus realizadores: o vazio das ruas, o medo do coronavírus, o desespero das pessoas mais vulneráveis revelam cenas angustiantes e trazem uma reflexão sobre a condição humana. O alívio está no pensar do próprio ato de realizar o filme, uma obra coletiva de diretores de diferentes países.

Água (México) retrata o dia a dia de Camilo, um adolescente remador de Xochimilco, que pensa que seus encontros sexuais com outro homem foram descobertos por um colega do trabalho. Há o medo de ser reprimido, o medo da homofobia. No filme, a dualidade entre o moderno e o tradicional está não só no contraste entre os cenários rural e urbano, como na contraposição entre passado e presente. Camilo é remador de um sistema de navegação construído pelos astecas, a trajinera, um dos mais antigos, e é nesse ambiente de trabalho, arcaico, que o protagonista é introduzido a uma realidade diferente, que naturaliza as relações homoafetivas e o faz vislumbrar um lugar onde sua orientação sexual pode ser mais aceita.

O sonho mais longo de que me lembro (México) conta história de Tania, uma jovem, que por conta do crime organizado no país, decide sair de sua cidade natal. Neste ensaio, o rompimento das barreiras entre realidade e sonho nos provocam os estímulos do inconsciente. A experimentação de linguagem é o que potencializa o filme e nos envolve não por uma trama linear, mas pelas informações desconexas. As imagens não são didáticas, o espectador está sempre captando as mensagens soltas, nas entrelinhas. E há os fantasmas do passado, o pai de Tania, figura que nunca tem seu rosto revelado. Para além da discussão das questões sociais, o convite é o de imaginar novas realidades e sonhar mudanças junto com a protagonista.

Aqui, cabe a resposta dada por Gal a Gil em 1968: esta é uma seleção de filmes novos, explosivos e inventivos. Sobreposições entre batalhas do passado e do presente nos fazem refletir sobre a construção do nosso futuro. Embora haja uma onda conservadora que atinge todas as fronteiras latino-americanas, ela não calará as vozes ativas daqueles que mais geram debates e produzem cultura, os artistas. É preciso estar atento e forte.

O PODER DE MANIFESTAR-SEQuem diz pátria diz morte, de Sebastián Quiroz (Chile)

por Lorde Lore

Quem diz pátria diz morte é um documentário experimental dirigido, roteirizado e produzido por Sebastián Quiroz. Com uma narrativa emancipatória, traz uma formatação para o nosso olhar político, nos apresentando 101 motivos para protestar.

Em 2019, o Chile surpreendeu o mundo com uma onda de protestos civis. No início, os manifestantes eram contra o aumento do preço da passagem de metrô (cerca de 20 centavos na tarifa), e em poucos dias passaram a contestar o sistema político como um todo. Em resposta, o presidente do Chile, Sebastián Piñera, decretou estado de emergência, colocou o Exército nas ruas e determinou, por três noites consecutivas, um toque de recolher nas principais cidades do país.

O filme se passa no dia 19 de outubro de 2019, nos arredores do Estádio Nacional de Santiago, o palco da tortura da ditadura chilena, na primeira noite do toque de recolher na capital. O local foi usado como uma espécie de prisão improvisada nos primeiros meses do regime militar autoritário de Augusto Pinochet, que governou o Chile entre 1973 e 1990. Estima-se que nesse período mais de 3 mil pessoas foram mortas pela repressão do governo, e outras 40 mil foram torturadas.

O Chile é um país que tem um modelo político e social formatado na época da ditadura, mas seus cidadãos se esforçam bastante para não deixar a ditadura cair no esquecimento e não haver um apagamento histórico. Eles se lembram dos desaparecidos, dos mortos e de todos os afetados pela tragédia. As ditaduras do Brasil e do Chile têm diversos pontos em comum, mas a diferença se encontra na preservação da memória e na busca por responsáveis.

A obra é fruto dos cinegrafistas Isabel Riquelme, Receba Matte e Exequel Bairros, que “gravaram com coragem e coração rebelde”, enfrentando os protestos, o Exército e a pandemia da covid-19 com êxito em seus registros. Eles conseguiram captar todo o peso e poder que possui as manifestações, o impacto que a postura do povo chileno causou no país e no mundo. A pressão popular é historicamente responsável por uma série de avanços, e dessa vez não foi diferente. Hoje, o Chile caminha rumo a um novo futuro, construindo uma nova Constituição a partir do voto popular, retrabalhando, na medida do possível, o legado grotesco deixado pela ditadura.

AS MARGENSÁgua, de Santiago Zermeño (México)

por Gabriela Lima Santos

Em agosto de 2020, foi aprovada na Cidade do México uma reforma no seu Código Penal que criminaliza a “cura gay” na capital. Naquele mesmo mês, a história de Camilo, morador do bairro de Xochimilco, nos é apresentada em Água, de Santiago Zermeño.

Xochimilco é uma demarcação territorial mais afastada do centro do distrito federal, que desde o século 20 vem sendo integrada à região metropolitana devido a expansão urbana. A região agrária tornou-se um dos principais provedores de alimento e água para a Cidade do México, e seus canais comportam hoje os passeios de embarcações que atraem turistas locais e estrangeiros em busca de um contato com a natureza que sobrevive às margens de uma das maiores capitais do mundo.

É neste cenário que conhecemos um fragmento da vida de um garoto que tenta sobreviver num ambiente hostil para sua orientação sexual velada. Um retrato bastante conhecido na cinematografia LGBTQIA+, no qual a denúncia da dor para se afirmar enquanto pessoa que tem o direito de ser como tal é o recorte mais vivo que temos no imaginário do que é ser uma pessoa que escapa da heteronormatividade.

Para além da representação do gênero e sexualidade em sua dimensão trágica, Água justifica seu enredo ao estruturar a narrativa na relação entre o rural e o urbano, a tradição e o moderno. Enquanto conduz a embarcação com os visitantes pelo canal, Camilo observa naquele microcosmo a naturalização das relações homoafetivas. No curta, a interação entre o centro e Xochimilco é mediada pela atração turística. É a partir dela que Camilo vislumbra novas possibilidades de viver fora das margens que o oprime.

Ser LGBTQIA+ em regiões mais afastadas dos centros urbanos – onde o debate público sobre o tema está mais presente – envolve uma série de violências que tendemos a acreditar que já estavam próximas de serem superadas. Ao nos atentarmos a essa diferença, notamos que o contraste de realidades da vida privada se entrelaça com a dimensão de classe. Xochimilco foi integrada parcialmente ao centro mas, assim como a região metropolitana de São Paulo, preserva sintomas da desigualdade social que impacta no acesso de uma parcela da população aos debates que dialogam com as vivências em seu território.

Água se deixa ver com um gosto amargo, pois escancara que a luta alcança as margens à passos curtos. O senso de urgência provocado pelo medo da morte em locais mais violentos torna a fuga mais vantajosa do que a resistência. A fuga, por outro lado, deixa o espaço abandonado estático, em estado de permanência e alheio à necessidade de mudança. E assim, a segregação segue operando onde já poderia estar superada.

AUSÊNCIA SENTIDAO sonho mais longo de que me lembro, de Carlos Lenin (México)

por Júlia Lelli

O sonho mais longo de que me lembro é um ensaio sobre a ausência. Tudo angustia e traz uma sensação de incompletude. Nada é por inteiro, seguindo começo, meio e fim. Tudo é fugidio e confuso.

Aos poucos entendemos que a personagem principal, Tânia, teve seu pai tirado de sua vida de maneira repentina devido aos conflitos do crime organizado mexicano. Sem se lembrar de sua voz, ou de seu rosto ela tenta lidar com esse luto ao mesmo tempo em que decide deixar sua cidade natal e sua família.

Repleta de paisagens amplas, essa é uma daquelas obras que foram feitas para a sala de cinema. A amplidão do interior mexicano contrasta com a pequenez das personagens. Ao encontrar algo no solo árido, Tânia diz que aquilo parece um dente – o dente como algo que fica e resiste mesmo após a decomposição. A memória como algo frágil, mas que nunca é morta por completo. Ela mesma diz repetidas vezes que nunca irá esquecer. Se esquecermos das atrocidades e das dores, esse último dente desaparece, e se ele desaparece não nos sobra mais nossas raízes.

A ausência, no entanto, não é sentida apenas pela protagonista. Ela tem que lidar com a reação de seus familiares ao saber de sua mudança. Outra partida, outra falta para suportarem. A culpa é apresentada de maneira sutil, mas ela faz morada no coração de Tânia.

Em uma das cenas mais longas e emblemáticas, as lembranças de infância da protagonista adentram sua casa, que fica repleta de cenas passadas. O tom é onírico e perturbador – a trilha densa aumenta gradativamente e provoca angústia. Vemos que as plantas revestiram as paredes da casa antiga, suas lembranças se desenvolvem à sua frente. A natureza toma conta do concreto, a persistência frágil da memória, o passado se apossa continuamente do presente. Todos ali sofrem um luto contínuo, e a ida de Tânia faz ressurgir isso tudo de maneira ainda mais forte.

Deixar sua casa natal é um pouco sobre esquecer. E isso dói. É sobre queimar partes do passado e deixar ressurgir o novo através do fogo. A falta daquele território transforma quase que em outro ser. Um território em trânsito, como um luto que nunca termina por não ter um corpo para velar.

A fronteira entre sonho e realidade, passado e futuro nunca é quebrada no filme. Tudo é tão embaçado quanto o rosto do pai de Tânia. Na última cena, o corte é abrupto e somos lançados para a realidade crua. Após a entrada de Tânia no ônibus, a trilha e a imagem se apagam juntas e repentinamente. Tão abrupto e sem explicação quanto a morte de seu pai. Tão escuro como o esquecimento.

A ARTE DA INADEQUAÇÃO – Diálogos: André Novais e Lincoln Péricles

por Julia Fripp Thomaz

Cotidiano, subversão e autodeterminação são palavras que gravitam, intrinsecamente, a filmografia de André Novais, morador de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, e Lincoln Péricles, do Capão Redondo, periferia de São Paulo. Apresentadas na sessão Diálogos: André Novais e Lincoln Péricles, suas obras exploram os covis e as armadilhas de uma estrutura social adoecida, que silencia, menospreza e fetichiza os “inadequados”, através das marcas da experimentação do cinema “pobre” e da busca pelo deslumbramento da continuidade mais banal. Os diretores denunciam as relações violentas de propriedade e se rebelam contra o cinema hegemônico. Uma certa magia impregna suas produções, condicionada à transindividualidade dos grupos da periferia, articulados e fortalecidos por uma identidade coletiva de resistência.

Em Quintal, de André, o surrealismo é empregado como ferramenta para ressignificar o sentido do mundano: um quintal na periferia pode ser tão extraordinário quanto um romance de fantasia. É um manifesto político, que expõe a elitização do ambiente acadêmico mediante a analogia: nos dias de hoje, um portal para outra dimensão é tão ficcional quanto um homem negro apresentando sua pesquisa numa universidade brasileira. Da mesma forma, Ruim é ter que trabalhar, de Lincoln, atravessa as lutas de classe e utiliza simbologias, materiais e escolhas técnicas para entoar um posicionamento contra-hegemônico da quebrada, tal como escancarar a realidade: aqueles que estão na base da cadeia capitalista não descansam, nem dormem, muito menos usufruem do resultado de sua mão de obra.

Nas suas obras, Péricles denuncia as forças “parasitárias” do capital e as condições insalubres de moradia, transporte e trabalho do proletariado. Expõe, através do interior dos planos, o corpo que respira, o compasso da exaustão, as complexidades de uma conversa frívola. Aluguel – O Filme, de Lincoln, evidencia, inclusive, o lado fétido da indústria cinematográfica brasileira, que expurga e explora aqueles que não pertencem à elite, num processo de capitalização sistemática de obras “caras, raras e cultas” – para quem pode pagar e para quem pode fazer.

No mesmo eixo, André Novais se apropria dos poderes da imagem e do realismo fantástico para instigar a imaginação do espectador. Tanto em Fantasmas quanto em Rua Ataléia, ele é assertivo ao dar vida à câmera, associando memória e presente, propondo uma análise política por trás da cortina lírica das múltiplas interpretações. Enquanto no primeiro o cineasta relaciona, por meio de um ensaio voyeurístico, a efemeridade das relações humanas ao olhar vigilante da câmera, no segundo imperam os afetos numa casa da periferia sem luz e a reflexão: no Brasil, o acesso permanente à energia elétrica ainda é uma regalia para poucos.

Ademais, é prodigiosa a forma como André enuncia os fenômenos da imagem no centro da narrativa e reflete as banalidades cotidianas, como deslocamento, diversão e preguiça, sem se afastar do pensamento crítico. É o que aparece em Pouco mais de um Mês e Domingo, que perseguem uma estética disruptiva, composta por sons desenquadrados e trechos de outros filmes para expor os escombros de uma sociedade adoecida e desigual. Por sua vez, Lincoln reconfigura a própria noção do que é um filme ao encarar o cinema marginalizado. Evidência disso são Filme de Domingo e Entrevista com as coisas, que exploram as adversidades da rotina e propõem um modo de produção que se fortalece na mistura, nos intervalos e choques entre imagem e som.

Para mais além, Lincoln e André trabalham a ideia de pertencimento e ancestralidade da periferia, conectando as pautas identitárias à busca pela autodeterminação. Propõem a união entre os “desajustados”, denunciam as políticas de apagamento da burguesia branca cis heteronormativa e promovem um legado de sabedoria às próximas gerações da quebrada. O recado de suas produções é certeiro: mesmo no sofrimento e na dificuldade, aqueles que perderam perante o sistema capitalista estão unidos, são engajados e potentes na luta pela emancipação. Na “inadequação”, encontram um lugar de cooperação e criatividade que ultrapassa os limites da tela e das aparências.

A MEMÓRIA À LUZ DO FÓSFORORua Ataléia, de André Novais Oliveira

por Leandro Silva Lopes

É quase sempre de onde pisa o pertencimento de André Novais Oliveira que enxergamos seus filmes. É muito de Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte. O que assistimos é fruto de como ele percebe o seu próprio território, suas raízes e lembranças. Um realizador das belezas que só as insignificâncias rotineiras são capazes de proporcionar.

Podemos percebê-lo assim a partir da sessão Diálogos: André Novais, composta pelos filmes Fantasmas (2010), Domingo (2011), Pouco mais de um mês (2013), Quintal (2015) e Rua Ataléia (2021).

Nome conhecido no circuito de festivais brasileiros, André já esteve na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes em duas oportunidades, além de já ter sido citado na revista francesa Cahiers du Cinéma. É sócio da produtora Filmes de Plástico, uma das mais férteis produtoras do audiovisual brasileiro da atualidade.

Nesta sessão, sobretudo, em seu último trabalho, Rua Ataléia, descobrimos o porquê. André filma o seu mundo comum, desafiando a escuridão e propondo, por meio de sua câmera, um filme à luz de fósforos, descortinando um costumeiro social das regiões periféricas de um Brasil desigual, transformando a precariedade em poesia. Dito isto, é preciso atenção: nada é somente belo. O tanto que há de poético, há de político.

O desafio da impossibilidade da escuridão por si só poderia desencadear discussões em torno dos contrastes sociais, desvelando políticas que maximizam a precariedade e minimizam o acesso de alguns. Podemos falar isso da energia intermitente, mas também dos equipamentos. As câmeras que filmam Contagem não são as mesmas que filmam Lourdes, bairro da zona sul da capital mineira.

Filmando seus próprios pais, André promove um resgate de um pertencimento, de uma família que resiste e se empodera por meio das suas memórias. Seu irmão, Renato, tenta fazer uma leitura improvável no escuro. Ouvimos e quase não vemos sua mãe, Maria José, lembrando suas religiosidades e pensando em seus ancestrais enquanto faz “qualquer coisa”, como solicita o filho-diretor. Voltamos a vê-la, agora ao lado do marido Norberto à luz de velas, despindo alguns passados por meio do resgate fotográfico no folhear dos álbuns. São seus lugares de idas e vindas, como a própria feitura fílmica, na qual as cenas são capturadas em 2011, mas só montadas em 2021. O que é rever o que se fez dez anos depois? São as rememorações de uma família que habita as rotinas e que, com pouca luz, a fósforo, resiste no que há de belo nas banalidades do sempre: o ato de viver.

UM DISCURSO SEM ESPAÇOAluguel – O Filme, de Lincoln Péricles

por Davi Krasilchik

Um discurso que não encontra espaço. Falas que se dissolvem no ar, indignas de atenção. Seus emissores, igualmente desprovidos de um lugar para chamar de seu, condenados a vagar sem ter para onde ir, são vítimas desse mesmo mal.

Traçando uma coesão temática entre diferentes e breves “relances” urbanos, esse é o cerne de Aluguel – O Filme, filme do paulistano Lincoln Péricles que aborda a infeliz surdez com a qual a questão da moradia no Brasil flerta cotidianamente.

Do início narrado em francês, do áudio proveniente do longa coletivo Longe do Vietnã (1967) – sugerindo que certas línguas, mesmo tratando de universos próximos, têm prioridade na captação da simpatia de setores poderosos; ao final embalado pelo bordão de Robin Williams no famoso Bom dia, Vietnã (1987), uma passagem que associa o viver de esferas periféricas à mesma desumanização oferecida pela guerra; o que aqui predomina é o deslocamento, o não pertencimento social que é traduzido de maneira poética em tela.

Os planos que apresentam obstáculos entre os indivíduos e o espectador reforçam sutilmente essa visibilidade fragilizada, enraizada num cotidiano de adormecimento do senso crítico. Os muros que dominam as paisagens da metrópole se tornaram companheiros do nosso olhar, não mais ressoando como alertas para um distanciamento calculado. É como se a câmera, simplesmente deixada como “voyeur”, ressignificasse toda uma tradição imobiliária pelo simples fato de possuir uma lente.

Essa mesma simplicidade de se registrar o espaço – que reforça a ideia de que grandes cineastas conseguem comunicar muito com pouco – se faz presente nas tomadas internas, ambientes explorados junto a movimentos suaves, mas que imprimem certa instabilidade. Acrescidos de uma trilha incômoda, elas representam a injusta conversão de muitos brasileiros em “parasitas” que são expulsos de dentro para fora. O diálogo que o personagem de Felipe Terra estabelece com seu amigo, próximo a uma janela, é uma evidência dessa lógica da não manifestação espacial. Ele é excluído fisicamente da tela e propaga suas palavras com certa dificuldade, considerando os ruídos sonoros de chuva que se misturam a elas.

Tal olhar sobre o simples ainda é aplicado no enquadramento que vincula um passageiro de metrô – no qual ele logo adentra um túnel metafórico, que representa a dificuldade de se encontrar uma luz ao fim dessa jornada – a um cartaz do longa 12 Anos de Escravidão, sintetizando décadas de um sentimento descontente em alguns segundos de curta documental.

Tudo isso, e ainda aliado a um brilhante resgate de cenas do seriado “Chaves” – analogia da universalidade dessa problemática  e do silenciamento ao qual suas vítimas são condenadas –  tornam este um curta original em sua abordagem, que prioriza o simples na construção de seu importante discurso social.

Alavancado por sons e imagens de outras obras, Lincoln Péricles lidera um olhar sensível sobre fatos que estão escancarados, mas sobre os quais poucos têm a decência de se debruçar – seja por causa dos ruídos da vida cotidiana ou pela pura indiferença que nos domina.

ESTAMOS TODOS MALUCOS! E AGORA? – Mostra Internacional 2 – Surto

por Enzo Kruschewsky

Dizer que a pandemia apenas “afetou” nosso estado mental é um enorme eufemismo. De um momento para outro, fomos forçados a mudar todo o nosso comportamento, e estamos nessa situação há quase dois anos. Aqueles que podem ficar em casa se sentem presos, sufocados, com falta constante de contato humano, ansiosos pelo futuro. Aqueles que precisam continuar saindo têm que conviver com o medo constante da contaminação. Alguns tiveram que lidar com a morte de pessoas próximas, e todos fomos atingidos pelo estresse das milhares de mortes ao redor do mundo, muitas das quais poderiam ter sido evitadas. O vírus ainda é só mais um problema entre tantos outros que talham nossas mentes, como a crise climática, a crise da democracia, a crise econômica…

Os curtas da Mostra Internacional 2 – Surto exploram o estresse e a ansiedade, apelando para uma linguagem experimental e um caráter fantástico para melhor representar as partes sombrias da nossa psique. Quantas vezes ao longo do último ano não passou pela nossa cabeça, mesmo que rapidamente, que o mundo está acabando? Hospedeiros Naturais, de Nick Jordan, é uma representação dessa paranoia concentrada em dois minutos. A câmera passeia por um cenário pós-apocalíptico: uma casa abandonada, destruída, em preto-e-branco, habitada agora apenas por morcegos. Fotografias mostram um caçador expondo sua caça, orgulhoso. Um discurso falado atravessa o filme, tocando em assuntos como a pandemia, a crise climática e a pecuária intensiva, direcionando a causa de tudo isso à atitude predatória do ser humano com a natureza, que não se reconhece como parte dela e a vê apenas como uma presa de sua caça. Essa combinação dos conteúdos sonoros e imagéticos transmuta a casa pela qual passeamos na casa que nos abriga todos; e sua destruição, na destruição que causamos a nós mesmos.

Enquanto Hospedeiros Naturais se ocupa de representar o interior, nosso medo de um fim causado por nós mesmos, o outro filme britânico da mostra, Estrasburgo 1518, de Jonathan Glazer, externaliza esses pensamentos. Os personagens dançam ao longo de dias e noites, frenéticos. Por mais que estejam cansados, não conseguem parar de dançar. Também não são capazes de sair da mesma série de movimentos. Atormentados, convulsionando de forma repetitiva e padronizada, a dança começa a afetar como eles se relacionam com suas atividades. Algo obrigatório, como lavar as mãos, se torna uma rotina impregnada de um esforço sofrido, e aquilo que foge ao necessário, que fazemos apenas porque gostamos, como olhar os pássaros pela janela, se torna impossível pela instabilidade do movimento, pela falta de controle, de foco. O canto dos pássaros, que antes acalmava, também se mistura à batida que rege a dança, e a impossibilidade de aproveitar experiências se torna parte do problema. A ansiedade interior a essas personagens é tanta que se exterioriza, primeiro corporalmente, e depois no tecido do próprio filme através da montagem, com os cortes rápidos entre os diferentes dançarinos, numa mania geral. Uma representação não tão exagerada (por mais que pareça) da ansiedade coletiva que a pandemia causou.

Se, em Estrasburgo, a dança é convulsiva, ansiosa, compulsória e repetitiva, na terceira parte de Catin (uma coletânea de quatro curtas de mesmo nome dirigidos por diretores diferentes), a dança aparece como uma libertação solar da padronização noturna. Acompanhamos a rotina de uma prostituta: ela espera em uma esquina, entra em um carro, recebe o dinheiro, faz sexo, volta para a esquina, e repete os atos. Por mais que haja sexo, não há nada de sensual aqui, ao contrário de outros curtas que também compõem Catin. Para a personagem desta seção, o ato é vazio de significado; é apenas um procedimento necessário. Tem o mesmo valor da água que ela repetidamente gargareja e cospe para limpar sua boca. Seu rosto impassível ao fim de cada contato com o cliente reforça esse caráter. Mas, ao longo do curta, por mais que tente segurar, uma lágrima lentamente escorre por esse mesmo rosto, seu sofrimento contido vaza. Esse sofrimento fica bem claro na imagem em staccato que caracteriza o filme, em que o movimento se dá por fotos tiradas singularmente e depois justapostas, dando a sensação de que algo segura a imagem. Essa personagem tenta se segurar, conter seu sofrimento e consegue, pelo menos durante a noite, por mais doído que isso seja. Contudo, o dia chega, libertando-a da imagem staccato e permitindo que, por mais que relute num primeiro momento, ela possa liberar seus sentimentos através da dança, com lágrimas nos olhos.

Depois da exploração feita por esses curtas sobre nossa mente danificada, resta a pergunta: o que faremos sobre tudo isso? Catin nos oferece uma solução lírica e individual, mas que não resolve o problema de verdade – a prostituta terá que repetir o trabalho na noite seguinte, afinal, talvez sentindo a mesma angústia. Nadador, de Jonatan Etzler, nos mostra uma solução perfeita (por mais que seja impossível): fugir dos problemas ao regredir temporalmente. Primeiro à infância, quando Ola, como uma criança, se recusa comicamente a sair da piscina após os policiais pedirem para ele ir à delegacia. Depois, ao primeiro estágio da vida, o útero, representado pela piscina aquecida em que mergulha, se acolhe, se protege e, finalmente, some.

É frustrante, mas talvez a resposta seja, inevitavelmente, a falta de resposta. É isso que O Fim do Sofrimento (Uma Proposta), de Jacqueline Lentzou, sugere. Para acalmar uma garota sofrendo um ataque de pânico, o Universo conta que ela, na verdade, vem de Marte, e começa a descrever a utopia que é o planeta. A descrição, porém, é representada visualmente por imagens da Terra através de um filtro vermelho, mostrando que a Terra e Marte não são tão diferentes. A Terra até poderia se tornar esse paraíso se quiséssemos. Depois de mostrar essa fantasia que existe onde estamos, o Universo conclui, através de seus sopros cósmicos: “Ficando na Terra, você encontrará a razão pela qual você caiu do seu planeta.” Essa é a proposta do título, o que devemos fazer para acabarmos com o sofrimento: resistir. “Ficando na Terra”, eventualmente encontraremos as respostas e paz. Precisamos apenas viver.

MIRANTES ABANDONADOS, REABITADOS, REVISITADOSHospedeiros Naturais (Reino Unido), de Nick Jordan

por Luis Gustavo Cardoso

O mirante abandonado, construído em torno da enorme árvore de pinho, é o objeto que abre o curta Hospedeiros naturais, filmado com câmera de visão noturna, em infravermelho, do diretor inglês Nick Jordan. São dois minutos em escala de cinza, um dia eterno em que predominam duas linguagens: aquela da imagem, textura áspera, objeto que se dá a ver, sombra que se infiltra na luz; e aquela dos sons, vento que passa nas folhas, rumor da floresta, a voz da mulher na rádio a fazer um índice de eventos catastróficos, pandêmicos, humanos: uma breve história da destruição. A voz e nosso trajeto são acompanhados pelo som de cordas que, quem sabe, oferecem um tema ao nosso próprio cortejo.

Mirante é a estrutura de madeira a partir da qual se pode ver o deserto do real, campos de caça, uma casa abandonada, vestígios da passagem do tempo. Mirante é também o olhar que mira as formas concretas, ingressa na paisagem dos escombros, examina as ruínas, recolhe objetos abandonados que souberam, por si mesmos, integrar-se à natureza. Galões de gasolina vazios, pôsteres da caçada, roteiros rasgados, placas que relatam a presença de animais ausentes. Blocos de concreto pendem de uma corda como dois tabletes de açúcar que esperam servir o chá ao dono da casa que jamais voltará. E o vento, as folhas, a luz de um dia eterno, e as colônias de fungos que crescem em todos os cantos com suas formas puras.

Entra-se na casa onde os colchões, camas, poltronas, cadeiras, lugares do repouso, sofrem o desgaste da ausência e do tempo. Onde ainda a ausência e o tempo são as sentinelas a cobrar passagem pelas portas, escadas e janelas, lugares da passagem. Apenas os morcegos desafiam a sua vigília e a nossa mirada: seu voo rápido, desordenado, orientado apenas pela surpresa, profetiza as pandemias que virão. Mas os morcegos não suportam a claridade invasora, o dia eterno a reinar na casa abandonada. No teto da sala, o seu corpo pequeno repousa e prepara o antídoto para o maior dos agentes destruidores, para o olhar humano que observa, passivo, a sua própria destruição. O morcego é, assim, o anti-humano, a bomba alada que a natureza preparou para a menos controlável de suas invenções.

Volta-se pela casa e andar por seus corredores é ter, de um lado, os retratos da catástrofe que já se abateu sobre nós. Do outro lado, a voz que profetiza, do passado, o evento futuro de cujo presente agora somos testemunhas. Ao fundo sabemos que tocam cordas para um cortejo fúnebre, sabemos do rumor do vento nas folhas, das asas rápidas que o morcego não controla. Sabemos da luz que entra. De um lado as imagens e do outro a voz, ambas correndo paralelas pelo corredor. Uma casa abandonada, assim como um planeta abandonado, tem muitas entradas. Entrar nela é fácil, difícil é sair. E assim como os morcegos, procuramos uma saída de emergência. E vamos pelos corredores. Sentimos que em algum momento a ficha vai cair: as imagens e a voz, que correm paralelas, quem sabe vão se encontrar dentro de nós. “Não é bizarro que esta criatura, a mais intelectual de todas, esteja destruindo a sua própria casa?”.

A voz que nos acompanha, do início ao fim, é da primatologista e antropóloga inglesa Jane Goodall, em entrevista sobre degradação ambiental e a pandemia. O seu depoimento dura dois minutos. O diretor Nick Jordan tomou-o, como a um mirante, e subiu por suas escadas.

PALAVRA E RESSIGNIFICAÇÃOO Fim do Sofrimento (A Proposta) (Grécia), de Jacqueline Lentzou

por Guilherme Guedes

Uma garota chora no transporte público enquanto ouve uma música. A imagem desfocada se torna cada vez mais nítida, mostrando a sua ansiedade. Ela desce na estação e sai correndo entre a multidão. A câmera inquieta a acompanha por trás. É assim que começa O Fim do Sofrimento (A Proposta): Sofia está em pânico. Mas o Universo, observando a mulher, decide intervir e dar-lhe uma resposta para suas aflições.

Há um desejo humano de tentar encontrar respostas para a existência, e muitas vezes essa busca é direcionada a um plano elevado. Alguns se voltam à religião, outros à filosofia ou à ciência, e ainda há aqueles que olham para o fantástico. O curta de Jacqueline Lentzou busca essa resposta com a ajuda da figura onisciente do Universo, não com o objetivo de revolucionar a existência, mas de tentar encontrar, num tom contemplativo, uma resposta para as angústias de Sofia.

O curta trata desse diálogo impossível entre a jovem e o Cosmos de uma forma abstrata, não propriamente através da imagem, mas do som. Em nenhum plano visual a personagem de Sofia conversa com o Universo: esse diálogo é reservado para a dimensão sonora, numa espécie de ligação interplanetária. É interessante notar também como o Cosmos, embora personificado, não possui um corpo ou voz própria. As falas do Universo para Sofia não são “ditas”, mas dadas através de legendas que traduzem os sons e ruídos que compõem a sua “voz”. Tal escolha da realizadora contribui para manter certo mistério da figura e da situação.

Imagens do espaço e da Terra são ressignificadas graças ao diálogo entre os dois personagens. O Universo conta sobre a origem de Sofia e de Marte, e o que vemos não são imagens do planeta vermelho, mas sim da própria Terra, que, graças ao novo sentido dado pelas palavras do Cosmos, se fazem entender como registros de outro corpo celeste. A fala é um dos principais elementos do curta, não só dando uma nova acepção ao que vemos, mas também criando imagens de grande lirismo e de difícil tradução audiovisual, como as descrições de Marte, no qual, segundo o Universo, a “água vem em diferentes cores e faz música”.

Aqui, ressignificação é a palavra-chave. Não somente as imagens ganham um novo sentido, como também as ideias passam por esse processo. Num primeiro olhar, pode-se entender a escolha do curta de trazer essa dimensão fantástica como um certo escapismo. No entanto, num olhar mais atento, não se trata de uma mera fuga da realidade para entretenimento. O que a narrativa busca é afastar-se de algo próximo – neste caso, a Terra e os problemas de Sofia – e olhá-los com maior clareza de um ponto mais afastado, buscando dar a personagem (e ao espectador) uma nova forma de encarar a realidade, um novo sentido para ela.

Através da palavra e da ressignificação das imagens e ideias, O Fim do Sofrimento (A Proposta) propõe um olhar contemplativo para o fantástico tentando encontrar nele respostas para angústias internas.