Em respeito à solidão

au revoir

O minucioso controle e planejamento dos gestos, palavras, enquadramentos e cortes parece procedimento minoritário no atual contexto do cinema de caráter mais “autoral”. Em meio à um mar de planos propositadamente esgarçados, gestos “espontaneamente” rarefeitos em seus sentidos e uma certa utilização da ambiguidade como fator pré-legitimador a filmes que se querem “sérios”, Au Revoir, de Milena Times, chega como uma necessária recordação da riqueza e pertinência que a construção cinematográfica econômica e precisa em suas escolhas, sem receio de fazer sentido, pode agregar a um filme.

O corpo da protagonista carrega em cada gesto uma objetividade narrativa que, ao contrário do engessamento que tal escolha dramática aparentemente suscitaria, acaba por pontuar ao longo do filme – aliada sempre à fala precisa e à uma minuciosa exploração espacial – os exatos humores e níveis de familiaridade vividos entre a brasileira e a senhora sua vizinha ao longo da delicada relação ali estabelecida.

O hall do edifício em que moram é a primeira fronteira entre suas intimidades. Encontrando-se através de seus respectivos exílios, as duas mulheres percorrem um caminho de incômodas minúcias. O apartamento vizinho, que a mais jovem, a princípio, adentrava com acanhamento e retidão, passa a ser um prolongamento de seu lar: um imóvel do qual partilha as chaves e a solidão inabitável.

Se a fronteira entre seus apartamentos é logo transposta, a total aproximação entre as duas personagens só esboça se dar por completa sob a íntima e solitária lógica da dor humana, na qual, em sua excruciante plenitude, só é possível permanecer sozinha(o). Quando a jovem esboça partilhar de seu sofrimento, a convalescente senhora necessita partir: Não existe calvário com lugar para dois.

Os últimos planos do filme são os do apartamento da falecida, vemos a brasileira sozinha no quarto de cama vazia e a sala sem seu gato: nem mesmo Hércules resistiu. Idos aqueles poucos próximos de si, restam à jovem a indiferença do espaço e um cilindro de oxigênio, condições típicas para todos nós, exilados.

Bruno Marra

Au Revoir está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Privacidade em tempos de cólera

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Marcelo Pedroso volta em Câmara Escura aos mesmos temas abordados em seu tão comentado documentário Pacific (2011): privacidade e limites borrados na contemporaneidade entre o público e o privado.

No curta-metragem, em vez de o diretor pedir os registros particulares feitos por dispositivos móveis ou câmeras amadoras como em seu outro filme, parte para uma abordagem mais ativa ao entregar ele próprio os meios para captação de imagens a pessoas aleatórias. O resultado? O inverso ao obtido em Pacific.

Pedroso cria uma caixa simples de madeira na qual dentro se encontra uma câmera ligada. Toca a campainha em duas casas cercadas por altos muros, deixa a encomenda e vai embora sem que o dono do local trave qualquer tipo de relação com ele. No dia seguinte volta aos locais se apresentando como aquele que deixou o pacote. A recepção não é a das mais calorosas.

Um simples dispositivo móvel deixado à revelia pode causar transtornos terríveis. Os que receberam a encomenda alegam quebra de privacidade, como se o diretor tivesse invadido seu espaço privado e sagrado ao entregar uma câmera de presente. Note, não é que o cineasta tenha posicionado uma câmera na porta das casas gravando a movimentação (como em Caché de Haneke, com sua câmera espreitando os personagens) ou tenha bisbilhotado a janela alheia com uma lente de grande alcance (curioso como Janela Indiscreta). Não, o meio de produção estava nas mãos dos receptores. Estava dada a eles a opção de filmar, olhar, observar. As duas respostas foram de medo, pânico e terror.

A cena mais emblemática do curta é quando o diretor volta no dia seguinte para conversar com um dos moradores. O discurso falado e o discurso visual se chocam completamente: o áudio capta a bronca do homem que recebeu o pacote, dizendo que não autoriza o uso de sua imagem, que se trata de crime e invasão de privacidade, enquanto que a câmera focaliza, num plano fixo, duas câmeras de segurança na casa que apontam para a rua. Quem está quebrando a privacidade? E qual privacidade?!

Numa sociedade cada vez mais vigiada por câmeras e dispositivos de rastreamento inseridos em produtos banais do dia a dia, que tornam possível saber mais sobre a vida e cotidiano de um indivíduo do que qualquer um que conviva com ele, é difícil estabelecer os limites entre a esfera privada e a pública – muros altos e fortificados não mudam esta realidade. Ambas as famílias desligaram os dispositivos depois de recebê-los, atitude não possível ao caminhar pela rua e ser observado por cada câmera de casa, do governo, de instituições comerciais.

A diferença entre Pacific e Câmara Escura se dá na falsa sensação de escolha. No primeiro projeto, foram pedidos os registros feitos durante a viagem; neste foi dada a câmera sem que esta fosse pedida. Entretanto a privacidade está ausente em ambas por uma configuração da sociedade atual – que digam Obama e as corporações como Google, Apple e Facebook quando Snowden afirmou o que todo mundo sabia, mas preferia deixar em silencio: nossa vida privada é uma mentira, tudo está escancarado.

Em tempo: em 2012 um grupo de artistas alemães enviou uma caixa com uma câmera dentro para a Embaixada do Equador destinada a Julian Assange com a proposta de filmar em tempo real todo percurso do objeto até chegar ao seu destino final. Talvez Assange gostaria de receber uma das caixas de Marcelo…

Malu Andrade

Câmara Escura está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja as próximas sessões do filme no Festival de Curtas 2013

Fantasma com cara de boi

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O Auto do Boi-bumbá não é feito em Parintins desde a década de 1960. Não deixou recursos sonoros e visuais. Boi Fantasma – meio filme, meio projeto cultural – vai resgatar o Auto perdido a partir de projeções animadas nas paredes históricas de Parintins. Por cima das animações a toada vai sendo cantada como devia ser nos tempos de outrora.

O Auto é divertido e articula figuras da historiografia brasileira: o capitão, o vaqueiro, o índio guerreiro que é batizado. A toada é rápida. A animação abusa de elementos ritmados repetidos, tenta-se chegar a algum ritmo em relação à narração, mas em poucos momentos as duas informações se complementam – e não entram em conflito.

A projeção nas paredes das casas, paredes em que o material de construção e sua estética guardam a memória e a história de Parintins, traduz o significado último do curta-metragem. A memória permanece em suas construções históricas e é sobre elas que vai ser projetado o Auto – a cidade, portanto, o revive em sua própria estrutura.

A escolha para reviver o Auto perdido e, então, fazer deste algo semelhante a um registro visual-sonoro do que fora perdido, poderia ser só a animação ou mesmo a reconstituição viva, organizando um batalhão de pessoas para reinterpretar o Auto sob égide daqueles que o conhecem e o viveram. Mas a imagem que nós temos é latente dessa reconstituição: espectros brancos se animam sobre as paredes da cidade, são como fantasmas noturnos que vieram, a bel-prazer deles, se fazer vivos. O boi fantasma se agita sob a superfície da cidade, assombrando a todos devido tal esquecimento.

A imagem então, além de nos contar a narrativa, é também a memória translada sobre paredes. A falta das pessoas vivas reencenando o Auto na rua faz o curta possuir força: o curta-metragem não é, por si, o estrangeiro que quer reviver as tradições perdidas, mas sim, aquele que guarda em sua linguagem a perda de algo que ainda pode ser recuperado.

Afinal de contas, a voz que canta e que dá depoimentos, é voz de quem é vivo, maior portal das memórias perdidas: os senhores e senhoras participantes da tradição, conhecedores de seu mito e de sua força. A voz é demasiadamente humana e carregada de vivacidade, celebra a tradição oral e se faz presente; enquanto a imagem é morta e vive de luz projetada.

Se faz em Boi Fantasma a contradição entre som e imagem, voz e projeção: um vive e o outro atesta a morte, um relembra o outro recria; e os dois resultam em Boi Fantasma e não no Auto do Boi-bumbá, ainda bem.

Mariana Vieira

Boi Fantasma está na Mostra Panorama Paulista 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Da posição do espectador

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Se um filme é uma obra que só se completa no momento de sua exibição para uma audiência, o maior feito de Assassinato em Junín (Asesinato en Junín), curta argentino do diretor Andrew Sala, é fazer o espectador tomar parte na realização desse processo, de forma consciente.

Numa única tomada, o espectador presencia a morte de uma moça por dois rapazes, em meio a um descampado. Nada se sabe sobre os personagens em cena, nem tampouco suas motivações. Entendemos apenas que a menina assassinada estava a espera de um terceiro homem, com quem planejava fugir.

Aqui, Sala opta por um quadro fixo numa paisagem estática e vazia, o que permite que toda a nossa atenção se volte para a movimentação dos personagens em cena. Desse modo, o diretor obriga seu espectador a se reconhecer como tal. Quando todo nosso interesse é voltado para um único foco de ação, sem distrações, ou cortes para outros planos, a experiência que se tem é a mesma de observar a vida de outras pessoas através de uma janela. Sendo assim, o espectador se torna um invasor, alguém cuja curiosidade mórbida o obriga a assistir a vida alheia, em seu evento mais trágico.

Até então, não há nada de inovador, uma vez que já nos vimos nessa posição antes. Basta lembrar de James Stewart em Janela Indiscreta, cujo personagem de um fotógrafo interessado na vida de seus vizinhos personificava em tela a posição do espectador. A diferença é que se na produção de Hitchcock o espectador se via representado numa terceira pessoa, através do personagem de Stewart, aqui esse autorreconhecimento vem em primeira pessoa, quando assumimos a perspectiva da câmera e, dessa perspectiva, nos inserimos na ação.

O que, de fato, dá forças ao filme e o torna primoroso é o respeito do cineasta pelo tempo da ação. Ao abrir mão de artifícios de montagem, como elipses temporais e dramáticas, ou, até mesmo, de cortes para planos mais fechados, Sala assume uma proposta muito honesta de realização que, para além de seu efeito estético, se mostra preocupada em estabelecer uma relação entre o espectador e os eventos presentes em cena. A mágica do cinema não está presente aqui. Todos os truques são suprimidos e dão lugar a um discurso sobre a autenticidade do papel desempenhado pelo espectador que, acostumado a se deixar enganar e fazer-se omisso em sua observação, é, agora, obrigado a se assumir e tomar parte no processo. Até mesmo o travelling, que ocorre nos momentos finais do filme, assume-se dentro da mise-en-scène, partindo de dentro de um carro em movimento.

Com esse trabalho, Andrew Sala monta um inteligente discurso sobre o papel do público na realização de uma obra cinematográfica sem que, com isso, se torne enfadonho ou cansativo. Muito pelo contrário, ele sadicamente entretém sua audiência, despertando uma curiosidade que se revela condenável.

Matheus Rego

Assassinato em Junín está na Mostra Latino-americana 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Filosofia do guardar

o que lembro, tenho2

Nas páginas do Grande Sertão Veredas, o curta dirigido por Raphael Barbosa, O que Lembro, Tenho, recebeu seu nome. No romance de Guimarães Rosa, há certa dificuldade em compreender o tempo. Narrado em primeira pessoa, Riobaldo conta suas lutas, seus amores, suas memórias, controlando ou tentando controlar ele próprio o tempo de suas digressões. “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados”.

O curta, como disse Raphael no início da sessão, foi baseado em suas vivências com o mal de Alzheimer. Assim, ele traz Maria e sua filha Joana, que moram num apartamento, mas com a evolução da doença, parecem viver cada vez mais em suas lembranças e na sua impotência.

Andreas Huyssen no texto Seduzidos pela memória mostra como dos anos 1980 para cá o foco das expressões (artísticas sobretudo) parece ter passado dos “futuros presentes” para os “passados presentes”, havendo um deslocamento na experiência e na sensibilidade do tempo. Enquanto os sistemas de informação ampliam sua capacidade de armazenamento motivados pelos processos de registro e museificação, o lapso de memória e as doenças a ela relacionadas mostram-se cada vez mais preocupantes. Dá-se assim forma à filosofia do guardar: “O que lembro, tenho”.

Interessante notar sob esse aspecto como o curta teve uma aparente grande aceitação do público. Afirmo pelo soar das palmas, pelos comentários ao redor e pelas seleções pelas quais ela já passou. O tema da memória desenrola-se quase de forma datada, fazendo com que a identificação com o público seja potencializada, já que é de fácil aproximação: a filosofia do guardar é bastante compartilhada.

Esse “datado” ultrapassa o tema e vai se mostrando em vários dos planos e transições usados no filme. O retomar das cenas estabelecendo ligação entre os tempos passado e futuro, como o chinelo dentro do fogão ou o varrer dos milhos, já eram cantados e funcionaram quase didaticamente. Não deu para se perder no tempo com Maria: nem ela controlava suas digressões, nem eu pude ser controlada por elas.

Talvez tivesse sido gostoso se perder com Maria, pois a sinceridade com que foi interpretada lembrou por vezes a protagonista de Girimunho. Mas já que o roteiro não me permitiu tal passeio, fiquei observando a impotência de Joana. A simplicidade das cenas e dos cenários, alguns planos que soavam caseiros e as falas simples foram promovendo um crescimento da personagem, que não caiu em um dramalhão, caminhou pela delicadeza.

Funcionou como um filme de homenagem e de fazer carinho na memória, mas a maneira que foi apresentado, muitas vezes didática, nem me prendeu com Joana, nem me deixou viajar com Maria. Também me fez falta apostar no poder de reinventar memórias e questionar esse lugar que a lembrança ocupa. “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda a parte”.

Carol Neumann

O que Lembro, Tenho está na Mostra Brasil 1 e na Estado Crítico. Clique aqui e veja as próximas sessões do filme no Festival de Curtas 2013

Fuga de Casablanca

pouco mais de um mes3

Cinema is not 100 years old.

No momento em que se completavam 100 anos da primeira exibição dos irmãos Lumière no Salão Indiano do Grand Café em Paris, o cineasta lituano Jonas Mekas proferia seu grito “o cinema não tem 100 anos”, concretizado em um curto vídeo-manifesto de mesmo título, em meio às novas (velhas) discussões que surgiam sobre a morte do cinema. Mekas, que em seus escritos na Film Culture, sempre defendeu um cinema que desse conta das principais questões do homem de seu tempo, pode ter seu grito considerado como otimista em meio a avalanche de profecias apocalípticas acerca do fim do cinema (basta lembrar do filme Quarto 666 de Wim Wenders).

Longe de um purismo infantil em defesa da “nobre” sétima arte, o grito de Mekas, contudo, distancia-se também de um falso entusiasmo sobre a jovialidade do cinema e a da falsa ideia de permanência eterna de modelos de se produzir imagem (principalmente os calcados na captação com suporte 35mm) que se consagraram ao longo do século XX. Muito pelo contrário: o grito de Mekas aponta para a necessidade de se repensar o modo de como se produz imagens, a partir da inevitável mudança (e não morte) do cinema e, portanto, de como as imagens se relacionam com o mundo e o mundo com elas.

Na última década, principalmente, tal equação foi tensionada pela acentuada facilidade de produção e divulgação de imagens. Nesse cenário, em que muitas vezes a imagem e os próprios filmes se tornaram algo banal, o grito de Mekas parece apontar para um pensamento que se instaura quase como obrigatório no processo criativo de qualquer cineasta: por que produzir mais uma imagem?

Idolatria, mecânica, choque

Pouco Mais de um Mês e Alguém no Futuro partem da ideia de uma relação conflituosa entre ato de produzir imagens e o mundo sobre o qual se debruçam. Encontram o sentido de existir dessas imagens ao enxergarem no cinema campo privilegiado para expressão material de uma reflexão cujo único parti pris é o conflito. O resultado do choque entre ato de filmar e mundo resulta em uma matéria que vai de encontro à ideia de imagem como mera idolatria. Assim, partindo de uma situação (no caso de Pouco Mais de um Mês) e de um pensamento (no caso de Alguém no Futuro) aparentemente rotineiros, ambos os filmes traduzem sentimentos e reflexões sobre aquela dada situação, que seriam impossíveis de emergir senão a partir dessa forma conflituosa de cinema.

Em Pouco Mais de um Mês a tensão se estabelece logo na sinopse: atribui ao relacionamento retratado um índice de realidade. Contudo, para além do mero jogo estético entre ficção e documentário sugerido na sinopse, este dado se constitui apenas como ponto de partida na construção da relação conflituosa entre o ato de filmar e o mundo.

Um primeiro plano longo, escuro. Identificam-se algumas formas deitadas numa cama. Os corpos ganham vida, começam a se mexer. No áudio, acompanhamos uma conversa entre o casal. A fluidez e naturalidade da conversa (oriunda do índice de realidade originário da suposta confusão entre real e ficção) em conjunto com a composição do plano induzem a uma dissolução das formas no espaço. Estabelece-se o conflito: os corpos permanecem e cruzam os espaços em Pouco Mais de um Mês, de forma a se chocarem com o mundo delimitado pela câmera.

Dois momentos: no primeiro um dos personagens forma uma “câmara escura” no teto, utilizando uma cortina. A imagem da rua é invertida, ambos discorrem sobre essas distorções enquanto a câmera se mantém na projeção (da câmara) sobre o teto – imagem capaz de se expressar por oposição, por choque entre o que se vê e o que se é – conflito como elemento essencial. No segundo, vemos o casal pela primeira vez juntos em quadro com seus rostos a mostra. O quadro se limita pelos dois. Silêncio e sufoco – novamente choque e oposição – uma apresentação truncada do relacionamento, conflito plausível pela construção empreendida entre o dispositivo e a realidade/mundo que ele olha, e só por isso. Essa dialética extravasa o incômodo que não consegue ser compreendido/expresso pelos seus protagonistas.

Em Alguém no Futuro, por sua vez, o conflito surge primeiramente a partir do pensamento que engendra o filme: inconsistência do presente e do tempo. Estaríamos, portanto, nesse momento, falando de presente e tempo no plano cinematográfico. Contudo, é pela lente da câmera que o mundo é visto, que o mundo é construído, em suma, que o mundo é traduzido (ou se tenta traduzir).

Surge o choque: a imagem de Casablanca – que se encontra quase como um signo vazio, já no campo da idolatria, fruto de anos de reprodução e processamento pelo imaginário, que torna a sua absorção já um processo automático, retirando-a, assim, de seu contexto original – assombra os protagonistas, cisão entre áudio e imagem. Depois a imagem de Casablanca é expulsa e a sincronia audiovisual restabelecida: não é uma resolução/fim do choque com o mundo, restabelecimento da ordem, mas sim uma suspensão, momentânea apenas, que reitera o conflito pretérito devido sua própria transitoriedade e excepcionalidade. Aqui novamente o conflito encontra no cinema campo privilegiado para uma expressão material.

Dessa forma, em ambos os filmes não se trata de um discurso sobre a situação específica que retrata, e sim do estabelecimento de uma poética que encontra na impressão do choque, resultante do olhar para o mundo pelo cinema, na imagem final a ser reproduzida. Assim, mesmo em última instância tal imagem sendo virtual, carrega consigo uma experiência concreta, uma tradução material desse conflito, que tenta esboçar um entendimento acerca de uma possível mecânica do mundo e da existência (entendida aqui tanto como experiência humana quanto a própria existência dessas imagens). Tal tradução não existiria em outro campo a não ser no filme.

Dos riscos

Dois filmes da programação realizam movimento inverso ao exposto acima. São eles: Memória de Rio e O Proustiano de Osasco. Ao contrário da busca pelo choque observada em Pouco Mais de um Mês e Alguém no Futuro, nesses dois filmes ocorre uma neutralização de qualquer possibilidade de conflito, fruto de uma confiança excessiva no extraordinário (pré-concebido) que o mundo traduzido pela câmera por si só pode render.

Em Memória de Rio, o discurso acerca de uma mística em torno das águas fluviais se torna uma redoma de segurança pela qual o discurso irá se firmar como mero encadeamento de imagens do rio Tietê. Estas imagens já saem com um suposto valor atribuído, devido ao caminho supostamente lírico traçado pela fala mística inicial. Não se arrisca nada. A mecânica que se tenta compreender já está posta: o extraordinário pré-concebido.

Risco é o que falta também a O Proustiano de Osasco. No momento mais emblemático do filme, o personagem do documentário é questionado sobre como foi sua infância, ao que ele responde apenas que foi normal. Esse movimento de tentativa de reforçar o extraordinário da realidade que se filma através de um discurso (de novo) supostamente lírico (e aqui isso possui caráter acentuado devido as constantes sobreposições entre áudio de trechos de Em Busca do Tempo Perdido e imagens do retratado circulando pela cidade) se constitui novamente como uma zona de conforto, em que, mais uma vez, a mecânica do espaço e das situações filmadas não emergem.

Em ambos os filmes, os efeitos de deslocamento entre áudio e imagem dialogam mais com uma estética e uma linguagem publicitária que buscam chamar a atenção do cliente para seus produtos em um curto espaço de tempo. Justificar a produção de mais um filme, de mais imagens perante essa lógica, além de confortável, é no mínimo problemático. Anula-se toda e qualquer tentativa de discurso lírico (entendido como forma na qual uma voz central exprime um estado de alma) nesses filmes, uma vez que nada é mais orgânico, não há descoberta/invenção (porque não há abertura), o “extraordinário” do mundo filmado já está dado, pré-concebido (portanto seguro, tranquilo, inofensivo).

Poesia é risco já dizia Augusto de Campos. É necessário o risco do choque, o risco de não ser inofensivo, o risco de fracassar: a abertura ao mundo ao se lançar (um olhar) sobre ele.

Guilherme Maggi Savioli

Pouco Mais de um Mês e Alguém no Futuro estão na Mostra Brasil 8. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2013

O Proustiano de Osasco e Memória de Rio estão na Mostra Panorama Paulista 1. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2013

Lentes de adulto, olhos de criança

olho magico

É muito difícil tecer um parecer de um curta ou de qualquer outro trabalho voltado para o público infantil, porque parto do princípio, extremamente óbvio, de que conteúdo infantil foi feito para as crianças e tanto eu como quem produz conteúdo para crianças somos adultos. Crianças enxergam o mundo de maneira diferente. Não apenas pela altura, que já lhes garantem um ponto de vista deslocado da maioria dos adultos, como pela curiosidade instintiva e investigativa de querer descobrir o mundo e dotá-lo de significados.

Muitas vezes aquilo que um realizador acha que estará passando em um filme infantil não chegará nem perto da interpretação que este ganhará ao ser assistido pelo seu público alvo. Pode ser por isto que o curta de André Sampaio, Olho mágico, desperte a atenção: por ressaltar essa diferença de desconstrução/construção de um olhar.

Um olho mágico, objeto geralmente de alcance apenas dos adultos, desperta curiosidade e interesse dos mais novos. Através dele, podemos ver o que ou quem está do outro lado da porta. Ou, mais do que isto, como nos mostra o curta. Longe do seu lugar usual, nas mãos das crianças – e constantemente na visão do espectador que embarca junto na brincadeira – ele se torna um objeto capaz de instigar a imaginação, deformar o que está presente e até mesmo mostrar outros lugares que nem ao menos estão fisicamente por perto.

Somos transportados pela música, pelas imagens deturpadas e pelas brincadeiras constantes, que nem sempre nos permitem criar um significado concreto para o que foi visto. Talvez, apenas aquelas crianças brincando o possam fazer. E, provavelmente, muitas outras crianças serão instigadas a brincar e dar vida de outra forma à outros objetos, depois de Olho mágico.

Esta ideia da desconstrução aparece também em outro curta apresentado na mesma sessão, do diretor, ilustrador e animador Graciliano Camargo, One Man. Aqui, temos uma aposta no simples e pontual. Um curta-metragem que faz jus ao cronômetro, cria uma história de fácil interação e chamativa para o público infantil. Gosto de lembrar que esta é uma tarefa às vezes esquecida pelos realizadores, pensar naquilo que as crianças, seu público alvo, entendam e se reconheçam de certa forma no que veem. E mecanismos primários funcionam muito bem com o público infantil.

Através do uso da construção mais clássica e clichê possível, um herói que tenta salvar a mocinha presa nos trilhos de um trem que se aproxima (à melhor maneira montagem paralela de Griffith), os espectadores são entretidos pelas “super ações” do super herói galã para parar o trem. Quando a missão se completa, a cena enfim é aberta e vemos um plano geral revelador: na verdade, existiam três linhas de trem e o herói parou o trem errado. Pobre da mocinha. Risos de todo o público.

Uma história aparentemente simples que desperta o riso por este mecanismo desconstrutor do esperado. Quem, principalmente as crianças, iria esperar uma animação (infantil) que deixa a mocinha do filme ser atropelada no final? O uso da quebra e do inesperado construído em meios de identificação e captura da atenção do espectador, mais o uso de imagens e músicas que dispensam qualquer texto e enredos simples e bem construídos, garantem as risadas do público infantil.

De maneira quase oposta a essa, no sentido de imagens que guiam e conduzem as crianças de maneira limpa, é exibido na mesma sessão Apocalipse de verão, de Carolina Durão.

Em pleno verão carioca, o menino Daniel se depara e fantasia com as algas surgidas pela poluição na praia frequentada por ele com a avó. Daniel escuta constantemente informações da TV e do rádio, e até pesquisa mais no seu Ipad, sobre a poluição e possíveis destruições do planeta Terra.

A grande questão aqui é a mistura entre real e imaginário. Ou, mais do que isso, o imaginário que é construído através de dados e notícias advindas do mundo real. Se pararmos para pensar, qual a quantidade de informação que as crianças (e não apenas elas) são bombardeadas voluntaria ou involuntariamente nos dias de hoje? E, destas, quantas são explicadas ou submetidas a qualquer tipo de diálogo e contextualização?

Nesse sentido, apocalipse não parece uma palavra forte ou descabida para o imaginário de um garoto de oito anos e suas interpretações de mundo…

Dessa maneira, o que conta e encanta no curta são as belas e encantadoras imagens da imaginação de Daniel (vale aqui um adendo para a ótima fotografia e excelente arte), principalmente as debaixo da água com luzes negra e neon. Mais uma vez, temos a tentativa de lentes controladas por adultos de captar o olhar e a mente de uma criança. Mundo adulto versus mundo infantil, onde tudo pode acontecer.

Raquel Arriola

Olho Mágico, One Man e Apocalipse de Verão estão na Mostra Infantil 1. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2013

Alumbramento em Super-8

gato capoeira

Transgressão, liberdade, voz, expressão, calor, erotismo, crítica, contracultura, tesão. É por este caminho que vai a intrigante seleção Cinema do Desbunde, com curadoria de Marcelo Caetano e Hilton Lacerda.

A programação faz uma retrospectiva de filmes rodados em Super-8 especialmente na década de 1970, período de rica produção nesta bitola no Brasil. Entre os selecionados, os maravilhosos Gato/Capoeira, de Mario Cravo Neto, e Céu sobre água, de José Agripino de Paula, representativos de um movimento, ou melhor, de uma geração baiana. Filmes produzidos em um contexto ditatorial e que representam, cada um à sua maneira, um retorno ao domínio dos corpos, que dançam um baile de liberdade de expressão, seja no ar ou na água. Corpos estes que representam tantos corpos reprimidos e escondidos, violentados física e moralmente por um regime de exceção.

Em Gato/Capoeira, a figura do homem negro, em uma das mais conhecida formas de expressão de uma cultura em combate. Em Céu sobre água, a força da mulher, do poder da criação. Em ambos, a beleza dos músculos, das curvas, da gestação, da infância, tudo em uma relação orgânica com a natureza e eternizado na granulação superoitista.

Ao mesmo tempo, a programação da Tomada Única (a partir da proposta do Festival Internacional de Cinema Super8 de Curitiba) oferece aos realizadores contemporâneos a oportunidade de produzir estes outros desbundes, de olhar o passado – com um pouco de nostalgia sim, e porque não? –, mas com um caráter de transformação, a fim de refletir um outro contexto com o frescor dos novos olhares. O resultado são imagens de crítica social e política, que abordam a nossa relação com a tecnologia, a especulação imobiliária, a religiosidade e a sua resinificação e, claro, com o corpo. A proposta é um belo convite ao desbunde, para além dos limites da programação do Festival Kinoforum.

Camila Fink

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O sujeito e a indiferença

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Adolfo, cinquentão, robusto e mal acabado. A filha sofre doente na casa da mãe e ele está impedido de vê-la. Precisa pagar a pensão atrasada da menina, mas o curto salário que ganha como operário só chega no início do mês seguinte. A senhoria lhe cobra o aluguel de um quarto precário no centro da cidade. Ela ameaça expulsá-lo.

Eis que nos aproximamos do sujeito que, diariamente, dá com a cara no cimento. Um sofrido retrato do operário civil – um homem ordinário e desgraçado, cujo ambiente moderno deu conta de transformá-lo em adereço de sua paisagem. Não mais um indivíduo, apenas uma fonte de força e capacidade de trabalho.

Não à toa, De Cara no Cimento (De Cara al Cemento), título dessa produção chilena do estreante Ignácio Pavéz, remete ao tema de uma obra de Charles Baudelaire, intitulada A Perda da Auréola.

Em Baudelaire temos o poeta que vê sua aura artística, fundada na individualidade, se perder em meio a um lamaçal de macadame – símbolo máximo do progresso e da modernização do espaço urbano. No curta de Pavéz o macadame dá lugar ao cimento das construções onde Adolfo trabalha. É ali que nosso protagonista vê sua individualidade desaparecer dia após dia, dando lugar a prédios e muros de concreto.

A perda da individualidade aqui, porém, não passa de subtexto – algo implícito à narrativa. É o tema do curta, por outro lado, que dá conta de narrar um homem inserido num espaço urbano kafkiano, repleto de burocracias e teias sociais que o impedem de levar uma vida digna e plena. Tal fato é bem ilustrado na sequência em que Adolfo acaba de receber seu pagamento, mas uma série de eventos impede que o dinheiro chegue aos cuidados de sua filha.

De Cara no Cimento se destaca em meio a alguns de seus pares latinos principalmente pela dedicação de seu realizador no que concerne ao desenvolvimento da narrativa. Ao longo de seus 24 minutos o curta se preocupa em aproximar o espectador de seu protagonista através de cenas que refletem um sujeito desgastado pela indiferença do universo à sua volta. Tanto mais, a atuação do ótimo Daniel Antivilo fortalece essa relação de empatia gerada no público.

De grande valor social ao sugerir o cenário urbano como um espaço de descaso e indiferença, e tocante ao retratar um homem incapacitado de cuidar da própria filha, De Cara no Cimento representa uma ótima estreia de Ignácio Pávez à frente de um curta-metragem.

Matheus Rego

De Cara no Cimento está na Mostra Latino-americana 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Roda mundo, roda gigante

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Ao se utilizar da Arqueologia para problematizar o despejo dos vários moradores das favelas brasileiras (e, porque não, mundiais) destruídas pela especulação imobiliária, A Máquina da Ruína (The Ruin Machine) procura realizar uma arqueologia do presente. Ao projetar um olhar que se quer deslocado temporalmente, o filme procura nos instigar a tomar agora atitudes que o fluxo ininterrupto do tempo não nos permitiria em nenhum outro momento histórico.

O curta-metragem de Bruno Vianna inicia-se com uma breve introdução a respeito da função da arqueologia, dizendo-nos que “o método arqueológico pode ser aplicado a qualquer coisa”, já que seu intuito é o de permitir compreender os modos de vida e de estar no mundo dos vários indivíduos sobre os quais se aplica.

Juntamente ao som das diversas falas e informações em off, nos são apresentadas imagens de indivíduos os quais deduzimos ser arqueólogos. Estas imagens nos chegam saturadas e truncadas em seu transcorrer inconstante, borrando seus contornos conforme se movem lentamente. Vemos ali estampados os traços deixados por aqueles homens e mulheres ao longo do tempo que habitaram a tela.

Toda esta construção fílmica parece caminhar rumo a uma evidente crítica à ação do capital escondido sob a égide do “progresso” e do “desenvolvimento”. Passamos a ver imagens documentais da bruta remoção e destruição de comunidades periféricas. Assistimos àquilo que o filme formula como um futuro sítio arqueológico, ouvimos um morador revoltado gritando aos tratores que aquilo ali destruído não são apenas casas, mas também vidas e histórias de seus moradores.

Temos então contrapostos dois momentos discursivos, um que pretende nos instigar a olhar para o passado e revirarmos suas ruínas à procura de uma maior compreensão histórico-social, e outro que nos coloca ao lado dos moradores expulsos, próximos de sua dor e revolta. Estes movimentos acabam por perigosamente aproximar e associar duas forças: uma delas inevitável à ação do tempo e das catástrofes naturais – como no momento em que um dos estudiosos nos lembra a erupção do Vesúvio que destruiu Pompeia – e outra inerente à expansão destruidora do capital, que se desenvolve às custas da obliteração daquilo que lhe impõe resistência.

O filme parece criticar o ataque sistemático às populações pobres através de uma delicada abordagem da ação destrutiva do “progresso” sob o olhar arqueológico: tanto a natureza quanto os homens destroem, cabe detectarmos a razão, a necessidade e a justiça de tais impulsos para que possamos tomar diante deles a mais correta atitude.

Para um filme que lida com arqueologia, talvez A Máquina da Ruína pudesse ir mais a fundo na problematização desta força que destrói favelas e gentrifica cidades mundo afora: somos apresentados aos efeitos e não às causas. Apesar de interessante este seu ímpeto por lançar um olhar histórico sobre um presente tão comumente desenraizado e alienado frente aos seus alicerces político-ideológicos, suas pesquisas como filme que intenta ir além do senso comum parecem se dar ainda muito superficial e timidamente. O que alimenta A Máquina da Ruína?

Bruno Marra

A Máquina da Ruína está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013