TORRE

Lembranças de infância sob ditadura

A animação paulista “Torre”, dirigida por Nadia Mangolini e exibida na Mostra Brasil 4, é uma obra que aterriza o espectador, nos conectando a fortes histórias sobre a ditatura militar, e abordando a questão de maneira lúcida, transparente e penetrante.

Cada história apresenta uma linha em comum: a ausência da paternidade no período, causada por desaparecimentos e assassinatos, e o refúgio em Cuba. A partir da infância, essas pessoas retratam suas experiências de vida sob a perspectiva adulta amalgamada às dores do passado. A animação é regada de traços, cores e vibrações, como se fossem tirados de um pedaço de papel com desenhos a lápis e tinta, transformados em movimento e vida, com uma beleza espetacular.

Ouvimos as vozes reais dos protagonistas e, sobre a tela, vemos as transformações das histórias que nos hipnotizam. Há uma clara narrativa, que é cuidadosa em seu roteiro, como se o curta segurasse a mão do espectador e o levasse para cada canto do filme e o mergulhasse numa imagética particular. Ao mesmo tempo que assistimos à animação, é possível imaginar o que há mais além do filme, que extrapola as telas.

Abordar o período da ditatura militar é um grande desafio. O período é regado de sangue e dor, num complexo contexto político, trazendo fortes resquícios até hoje. “Torre” consegue tratar desse contexto de maneira a abordar o íntimo de seus protagonistas, usando como base as lembranças da infância que nos atingem de maneira a refletir, e, aos que tiveram a sorte de não viver na ditadura, uma busca por mais entendimento da delicada situação.

É inovador e atraente, a princípio pelas belas figuras da animação, mas também por trazer sensações e observações que vêm de dentro para fora, tornando-se poético. As cenas são versos e cada história é uma estrofe que constroi uma narrativa única.

As crianças do filme, que são os adultos de hoje e as vozes contadoras, parecem acenar para o público, como um convite, um pedido de um olhar imediato ao que acontecerá depois.

“Torre” é um curta necessário, que consegue atrair os olhares de todas as pessoas, seja qual for sua idade ou classe social, e se apresenta sem mostrar as cenas de violência da ditadura, conseguindo ser tão impactante quanto, no íntimo.

(Luiz Gonzaga de Souza)

QUANDO A GENTE CHEGAR LÁ

Mãe solteira, pobre e em situação de rua

Exibido no Panorama Paulista 2, “Quando a Gente Chegar Lá” tem um título que passa a fazer muito mais sentido no eco do seu findar. Ele contrasta com o lugar nenhum de que mãe e filha dispõem como opções de vida digna. Diante da inocência da criança, que visualizamos perguntando o que de fato não aparece, tal como o imaginário social de “Mãe, já chegamos?”, também ensaiamos enquanto espectadores a expectativa de “quando a gente chegar lá”. As perguntas da criança não adentram a realidade, mas a tangenciam, como o “vamos carregar essa mala até quando?” do início do curta. A angústia desse impasse cunhado na imprecisão dramática é jogada na cara de quem assiste. Não há lugar para chegar.

Esse tipo de estruturação dramática, junto a um título que conversa holisticamente com o diálogo, uma captação de som direto estereofônico extremamente bem composta e junto às pequenas nuances de observação dos tempos de fala dos “personagens”, entregam com facilidade um lugar para esse curta-metragem, um lugar pensado nos mesmos moldes de “Era o Hotel Cambridge”, em que documentário e ficção se misturam, podendo ser chamado de docudrama ou ficção-documentário, um gênero que, quando bem executado, vem se mostrando muito eficaz em mobilizar atenções e chamar a atenção para uma realidade através do senso político de uma ficção passível, ou possível, de realidade.

Esse novo modelo em voga tem sido muito bem aceito pelo público, porém devemos entender que é de difícil execução, os atores precisam ser bons a ponto de parecerem não-atores para uma maior eficácia dramatúrgica, e o roteiro precisa estar impecável. Não são coisas fáceis de obter. Há passagens como a do atendimento no dormitório público, em que a intenção de burocratizar o atendimento pessoal se tornou rígida ao ponto de se tornar uma crítica brega, fragilizada pela falta de tom e deslocada da unidade da obra. Ora, até uma atendente diante de sua incapacidade pessoal pode lamentar sua própria impotência ou demonstrar alguma compaixão; ela também poderia ser usada pra aumentar a dramaticidade de um fenômeno que também está acima dela.

A teoria de a atendente ser mal aproveitada é melhor que a teoria de ela ser uma “vilã” que teria poderes de resolver o pernoite da mãe e da filha, e não o faz porque não quer ou porque se tornou insensível e tudo mais. Entendo que a segunda ideia destruiria a obra do curta num ato. Prefiro acreditar na primeira teoria, que inclusive é mais usual.

A atriz mirim dá a impressão de ter se apegado um pouco à suas falas, além de ela ter como proposta em roteiro pouca participação em um núcleo de apenas duas pessoas. Isso é um desequilíbrio muito acintoso. A menina parece apenas um fardo da mãe, quando deveria ou poderia contribuir para intensificar o lugar nenhum das duas com sua subjetividade infantil.

Dessa forma, o filme — dirigido por Rachel Daniel — tem seus méritos mais na proposta inicial e na relevância da problemática conjunta de ser mãe solteira, pobre e em situação de rua, do que na execução em si. Sempre que a trama se afasta da falta de lugar ou se centra em demasia na força de atuação das atrizes, o curta chama para si o peso de uma responsabilidade grande demais para conseguir, através dessa fórmula, estabilidade dramatúrgica que possa ter potência de influência marcante. É bom dizer: é preciso ser marcante para ser um ficção-documentário que atinja seu objetivo social.

(Rogério Henrique Gonçalves)

EL MONOPOLIO DE LA ESTUPIDEZ

O outro como um número

Exibido na Mostra Latino-Americana 4, “El Monopolio de la Estupidez” nos transporta para a burocracia e a desumanização que vêm afetando tão fortemente nossas relações atuais, principalmente em ambientes que lidam com processos e dinheiro. Após a morte do pai, o protagonista tenta conseguir documentos que autorizem acesso às contas do falecido e, logo, conseguir realizar seu enterro.

A boa direção de Hernán Velit traz um ritmo mecânico ao filme, colocando o espectador numa posição de espera, quase que um verdadeiro tédio, ao realizar as ações que se repetem. Somos obrigados a acompanhar a personagem nas filas e a ouvir todos os processos burocráticos necessários para se conseguir a documentação.

Impossível não se identificar com o que ocorre ali. Na vida real, as filas se constroem quase que automaticamente, seja nos bancos, nos supermercados, nas lojas, no transporte. Estamos acostumados a nos colocar neste posto.

A tentativa se de garantir uma ordem que reflete em nossos corpos, quando cedemos às formas de organização estrutural, coloca em questão os limites disso dentro da sociedade, quando passamos a tratar o outro como um número, uma coisa a ser resolvida. Retiramos a sua individualidade e a complexidade dos processos que levaram aos fatos.

E, ao unificar o tratamento desses fatos resumindo tudo a papeis, assinaturas e espera, em que a falta de um único documento resulta na volta ao fim da fila, construímos um tipo de relação que nos afasta um dos outros e mecaniza os sentimentos.

A morte é algo recorrente e certa. O filme busca a reflexão dos limites da burocracia e a dependência dela para se garantir os mínimos direitos de um ser humano. Numa cena em que o protagonista, mesmo já sabendo das regras, tem de obrigatoriamente ouvir a atendente repetir o processo, percebemos que não há mais uma escuta pessoal, tudo virou “parte do processo”.

É essa mecanização das ações humanas que nos afastam da realidade que está a nossa volta. Hernán Velit é certeiro e produz um filme que, em sua montagem e roteiro, consegue recriar a sensação física e um incômodo no espectador que traduz a própria ideia.

(Luiz Gonzaga de Souza)

A PASSAGEM DO COMETA

Destinos incertos

O novo trabalho de Juliana Rojas, exibido na Mostra Brasil 7, traz discussões atuais e instigantes, de forma bem realizada. A obra é delicadamente construída, conseguindo evocar o ar de nostalgia dos anos 1980 e 1990, mas também com um clima de mistério, que vai se desenvolvendo aos poucos com o decorrer da narrativa.

Uma mulher chega de repente em algo que parece ser um consultório. A pessoa que a atende pergunta se ela trouxe o dinheiro e, secamente, diz que ela só poderá ser atendida se sua amiga vier. E assim é construído “A Passagem do Cometa”, um filme sobre prioridades; temos uma pessoa em estado crítico, mas o que mais importa é um astro que só poderá ser visto novamente a partir da Terra muitas décadas depois. Com isso, o curta consegue discretamente dar um tapa na cara de quem assiste, sendo indiretamente agressivo, ao mostrar como nos importamos menos com o que “deveria” ser a maior prioridade: a vida.

Muitas vezes lembrando o trabalho anterior de Juliana, o longa “Sinfonia da Necrópole”, o curta tem ironias e devaneios rodeando a narrativa, saindo do ar fúnebre e de comédia negra do musical para um drama neon com tons policiais, que inclusive traz uma música composta especialmente para o filme. O suspense foi construído de forma a sempre instigar o espectador; nunca se sabe, objetivamente, o que vai acontecer, sempre fica um pensar sobre o que virá.

A atuação da protagonista consegue abrir um diálogo com espectador, e compartilhar seu medo e receio diante do que está por vir. Durante 20 minutos, fica-se esperando e esperando. Por meio das lindas cores trabalhadas pela fotografia e direção de arte, somos envolvidos pela história de uma personagem que, receosamente, nos conduz por seu incerto destino.

Ao fim, fica-se igual à protagonista quando ela fala de si: “falta alguma coisa”. Após termos passado pela experiência, entranham-se as dúvidas, medos e o compartilhar de sentimentos sobre a questão retratada na obra. Novamente nos questionamos sobre de quem é a decisão do fazer ou não o processo: da mulher, da sociedade ou do médico? Ao final, chega outra mulher sangrando no consultório, e tudo é tratado com a maior calmaria. Nesse momento, relembro uma frase que vi outro dia no Facebook: “se homem engravidasse, o aborto poderia ser feito até em caixa eletrônico”. Juliana propõe por um curta, de forma poética e misteriosa, uma discussão sobre o rumo desse tema tão emergencial na sociedade atual, misógina e machista.

(Guilherme Franco)

GREAT MUY BIEN

O imperialismo cotidiano e neutro

Exibido na Mostra Latino-Americana 3, “Great Muy Bien” explora, com seu naturalismo cinematográfico oriundo de uma linguagem documental, as relações

implícitas exercidas pelo imperialismo estadunidense em Cuba, explanando uma ótica universal sobre sua narrativa cotidiana.

Estudantes de meia-idade em uma escola de inglês na região de Havana, em Cuba, aprendem inglês e relatam qual a importância do idioma para suas vidas, influindo na construção de seus futuros. Muitos procuram aprender a língua pois desejam viajar, se comunicar com estrangeiros, entender melhor o texto da bíblia em inglês etc. Porém, o que se esconde no conteúdo de uma narrativa rotineira é uma das tarefas ideológicas do imperialismo, ou seja: ele é responsável por construir a imagem do “american way of life” enquanto algo reluzente e atraente, por mais que não façamos ideia, na realidade concreta, de como seja.

Os objetivos principais dos estudantes consistem em viajar para estados e países norte-americanos, como uma das alunas que buscou as aulas apenas para realizar o sonho de conhecer Las Vegas. A idealização construída sobre os desejos de viagem, que se enquadram justamente em visitar países estadunidenses, embora o idioma não esteja engessado apenas no país, representa a formação da figura dos Estados Unidos como unicidade centrada tanto na língua quanto no deslocamento inicial de desejos e modelos primordiais de vida.

Se fizermos um paralelo com o longa-metragem “A Jaula de Ouro”, drama de 2013 dirigido por Diego Quemada-Diez, que narra a jornada de três jovens guatemalos, sendo um deles indígena, que aspiram a uma vida melhor e tentam chegar nos Estados Unidos, conseguimos tangenciar a construção cinematográfica em cima do idealismo construído sobre a “terra das oportunidades”.

Embora o longa citado seja um drama árduo, que mostra as dificuldades de emigrar para o país desejado, enfrentando a violência das fronteiras e as lutas diárias por sobrevivência para, enfim, se enjaular no objeto de desejo e descobrir que suas possibilidades atraentes são, na realidade, um chamariz repleto de frustrações, o curta-metragem “Great Muy Bien” consegue abordar uma rotineira escola de inglês na Havana que enfrenta o mesmo princípio.

De modo naturalista, sem picos de emoção ou aprofundamento nas personagens, o curta reflete sobre um dos tentáculos imperialistas mais cotidianos e naturalizados. Todos aspiram ao molde de vida norte-americano, seja ele uma simples viagem ou a necessidade latente de aprender inglês. A estrutura de idealização é universal e amplamente reproduzida em qualquer nicho social.

Sheyla Pool Pástor, que dirige o filme, reflete nos créditos finais sobre o crescimento de escolas de inglês em Cuba desde 2015; elas preparam seus

alunos para um futuro em que as relações entre o país e os Estados Unidos estejam normalizadas.

Mesmo Cuba passando por um longo período de regime socialista e sendo um dos principais alvos dos Estados Unidos, o filme reflete sobre a relação cada vez mais estreita entre os dois. Se antes tal relação era por oposição ideológica e política, hoje tal convivência se aproxima através dos braços imperialistas. A escola periférica Big Ben nos apresenta o cotidiano sem pedantismos ou enfeites em cima da vida de seus alunos.

Porém, o filme converte tais personagens em figuras universais afetadas pela popularização do discurso que constrói o idealismo acerca dos Estados Unidos. Não são apenas alunos de uma escola de inglês que desejam conhecer Las Vegas, mas sim toda uma população mundial que coloca a América do Norte no topo da sua lista de interesses.

(Gabriel Faustino)

DONA VILMA

Tons de grandiosidade histórica

Dona Vilma surge, no curta homônimo exibido no programa Mulheres Negras 1, retratada como antítese de muito do que é vigente na sociedade brasileira. Na sociedade, vemos os credos (religiosos ou não) pessoais em confronto, com desdobramentos que violentam minorias. A antítese que Dona Vilma encarna propõe uma síntese de resolução: a liderança feminina e negra, envolta pelo espírito candomblecista, diverso, múltiplo, que se faz e se mostra diante do culto aos diferentes elementos naturais, consegue ser capaz de abarcar diferentes credos, pessoas, culturas e origens, e desse caldo instruir tolerância, unidade e, não obstante, democracia através de luta popular.

Uma personagem real constituída como produto de um candomblé de ambientação e condição histórica, um candomblé propiciador e cuidador daqueles que virão suprir uma necessidade histórico-social para si e para o outro, portanto, remetindo diretamente ao sincretismo religioso fundador. O documentário expõe como o pioneirismo desse fenômeno político moderno que se formou em torno de Dona Vilma só poderia ter sido erigido diante de tais condições citadas de racismo e exclusão. A religião de matriz africana, mais viva do que nunca, surgiu no passado brasileiro como produto-síntese de necessidades históricas, e continua ainda hoje sua luta contra a perseguição, formando individualidades no caldo da multiplicidade e da liderança de um verdadeiro quilombo urbano.

Essas contingências atestam resistência, mas também sugerem instintivamente um modelo de sociedade diverso, coletivo. Abarca o diferente, fortalece e dá voz ao oprimido, situa historicamente, considera o bem-estar social. Tudo que tem sido combatido desde sempre pelo establishment ahistórico individualista no qual as pessoas estão desconectadas das outras e ligadas apenas pela lógica da exclusão e da competitividade em suas diversas consciências. A hierarquia dentro do candomblé é uma hierarquia de funções e competências, e não de posse e/ou dominação. Além disso, quão maior a posição hierárquica, maior a responsabilidade social para com seus filhos. É esse tom de resgate de modus operandi e de valorização do olhar social que o curta assume e chama para a atualidade.

Apresentar nossa icônica personagem apenas depois de um terço da obra possibilita criar expectativas e já iniciar uma caracterização subjetiva diante do discurso de terceiros, pra quando Dona Vilma aparecer falando misturar no espectador sentimentos de admiração já com nova vestimenta, própria da paixão e da força com que Dona Vilma apresenta ao vivo em nossa mente. Esse “ao vivo” que utilizo não é à toa. Ao aparecer nesse contexto descrito, Dona Vilma, mesmo já falecida, vive novamente, na tela, na mente do espectador e na história.

Dona Vilma aprendeu durante a luta e não com estudos formais, mas foi através desta mulher que a universidade pode se tornar mais democrática. Em vez de a universidade a priori já oferecer contribuição à sociedade tal como sua função designa, foi Dona Vilma que liderou campanhas para tornar a universidade melhor, e assim poder fazê-la servir melhor à população. Essa é uma linha clara do percurso fílmico que fora pensado para este documentário: contextualização de um capítulo popular de surgimento de uma individualidade, um retrato de liderança que extrapola a si e ganha tons de grandiosidade histórica.

(Rogério Henrique Gonçalves)

CÉSIO, O CAMALEÃO

Cócegas na ferida

Por que colocaram esse filme no festival?

Foi a primeira coisa que pensei, logo quado comecei a assistir ao curta “Césio, o Camaleão”, realizado por alunos do Estúdio Escola de Animação e exibido no programa Oficinas Brasil. Eu não colocava fé nenhuma no Césio. [Inclusive, genial esse nome]. Até que tudo mudou.

Parecia um vídeo institucional que usa uma linguagem lúdica pra propagar o lindo amor que as empresas capitalistas têm pelo meio ambiente. E acabou sendo um vídeo institucional mesmo. Porém, estou falando sobre as instituições sociais.

“Césio” fala com um humor tão autêntico sobre problemas sérios dos nossos hábitos, a cultura brasileira atual e a marginalização dela, e eu como um crítico seriíssimo só posso dizer “vá ver esse filme!”.

A relação entre o lúdico e a animação fazem com que a linguagem visual utilizada seja totalmente apropriada. Indo além da forma, pra falar sobre o conteúdo, o curta não levanta perguntas, mas dá respostas para a famosa frase “funk não é cultura”.

Além de ser, sim, cultura, o funk tem potência para ser uma ferramenta de consciência coletiva sustentável, por exemplo. E pode alcançar um público super vasto.

Eu não manjo nada de animação, mas toda vez que vejo uma tenho vontade de abraçar os realizadores só pela ousadia. E utilizar várias técnicas da animação, como contexto que vai além do estético, salienta a ousadia e apropriação da linguagem.

A obra não se propõe a discutir o espaço do funk na cultura brasileira, não em primeiro plano. O filme é sobre problemas ambientais. Mas o jeito como a mensagem é passada aborda a questão do diálogo entre as artes. Nesse caso, a música e o cinema, mas dá pra ir além com essa ideia. Quão enriquecedor é o diálogo entre linguagens?

Por fim: “Césio” não coloca o dedo numa ferida, ele faz coceguinha nela.

(Cauê Vinicius)

KILLING KLAUS KINSKI

O homem e a natureza

 

Lançado em 1982, “Fitzcarraldo”, do mestre Werner Herzog, é um belíssimo trabalho que enaltece, de forma poética, a relação do homem com a natureza, ao mesmo tempo em que busca compreender o que leva o ser humano a alcançar feitos que desafiam a própria magnitude em prol, muitas vezes, da arte.

Com uma qualidade técnica que impressiona até hoje, o filme também ficou conhecido, infelizmente, por uma produção conturbadíssima, em que pessoas morreram no processo, e levou a um aflicão imensa do cineasta com o ator principal, Klaus Kinski, a tal ponto que tribos locais considerarem matar o ator, uma vez que suas constantes explosões de raiva os incomodavam.

Buscando dramatizar esse acontecimento, o curta colombiano “Killing Klaus Kinski”, exibido na Mostra Latino-Americana 1, certamente é uma homenagem do diretor Spiros Stathoulopoulos, ao acompanhar o início das atribulações no set, a partir de uma picada de cobra em um dos membros da equipe, levando à amputação do seu pé (fato real, aliás), até a dificuldade de lidar com os indígenas em relação à insatisfação deles com Kinski.

O diretor demonstra um talento excepcional de conduzir a narrativa com um plano-sequência que praticamente toma o filme todo, numa maneira de exaltar a urgência de um problema que vai adquirindo grandes proporções. Muito mais do que isso, ele apresenta um cuidado de acompanhar todas as situações possíveis com câmera na mão, o que funciona como ponto de vista dos protagonistas da historia: os índios que participaram do filme.

Nesse aspecto, “Killing Klaus Kinski” é uma continuação das mesmas reflexões sobre a relação homem-natureza que tanto marcou a obra de Herzog, com o adendo de explorar a cultura e as crenças da tribo retratada com cuidado documental digno do mestre. Por sinal, o uso da narração em off do próprio Herzog é um detalhe brilhante para ilustrar os floreios e mistérios da força da natureza sobre o ser humano e como as tribos acreditam na própria capacidade de conseguir o equilíbrio necessário de convivência para respeitá-la.

Com um ótimo desenho de produção que retrata com precisão a época da ação, Spiros ainda demonstra um momento que beira o sublime de fazer jus ao próprio “Fitzcarraldo”, ao criar uma belíssima sequência que envolve a musica “Vesti la giubba”, da ópera “Pagliacci”, sem falar num senso de humor bem peculiar (quem ficar até depois dos créditos vai entender o que quero dizer).

(Marcelo Carvalho)

FILME-CATÁSTROFE

É necessário escancarar as janelas

 

Primeiramente, Fora Temer! É com essa frase/protesto que começa uma amizade entre as personagens. É também com ela que o paulista “Filme-Catástrofe”, de Gustavo Vinagre, exibido na Mostra Brasil 3, nos conduz não só pela tragédia pessoal da personagem principal, mas também pelos colapsos políticos, econômicos e sociais do Brasil. Órfãs desse Estado patriarcal, que nega diariamente os direitos da mulher, elas são tudo, menos vítimas. A força para seguir vem delas mesmas, e principalmente da sua capacidade de empatia.

Angélica (Julia Katharine) está escrevendo sobre o papel da mulher na indústria de cinema, ao mesmo tempo em que luta para, como protagonista de seu próprio filme, mudar de vida. Reflexo da sociedade, a indústria do cinema, dominada por homens, cria uma imagem feminina ora doce, ora demoníaca e fatal, mas vista predominantemente como elemento secundário, principalmente em filmes de ação onde ou é namorada do herói, ou elemento de sedução, subordinada a outros homens. Como nos filmes, Angélica terá que cumprir a sua jornada, para ao final, ganhar a si mesma.

Ao trocar a fechadura de sua casa, quer por fim a um relacionamento que, tudo indica, é abusivo. Em um país onde três em cada cinco mulheres já sofreram violência física ou psicológica em seus relacionamentos, e onde as agressões mais graves ocorrem dentro da casa das vítimas, Angélica quer encerrar um ciclo de sofrimento. Para isso, conta com o apoio e os conselhos de Lúcia (Gilda Nomacce), a chaveira que se torna amiga, apoio e força, e também com as palavras da vizinha religiosa (Majeca Angelucci), que relembra a Angélica a importância do amor próprio.

A ambiguidade está presente tanto na personagem Lúcia, que tem um trabalho tipicamente masculino, quanto na aparência física de Angélica e também nas próprias paredes da casa que, mal pintadas, trabalham com o rosa e azul. Essa ambiguidade evita a polarização vítima/feminina, vilão/masculino, e é uma escolha ousada e nada sutil. O filme, inclusive, é pautado pelo over, na cena da tentativa de abertura da maçaneta, em que uma grande ventania simboliza “quando uma porta se fecha, abre-se uma janela”, como diz a amiga.

A música traduz todo o sentimento de Angélica, sua reconstrução pessoal e também a de um país “onde a casa não é minha” e “nem é meu este lugar”. Casa/país que violenta, abusa e manda embora seus habitantes. Talvez seja mesmo tempo de não se ter sutilezas, de “ventar” em casa, no Congresso e na vida. Em tempos tão difíceis, não é possível mais abrir as janelas, é necessário escancará-las.

(Adriana Gaeta Braga)

CAMINHO DE SEMPRE

Mulher que anda só

 

A lei que permite que mulheres, idosos, travestis e transexuais desçam “fora do ponto” de ônibus na cidade de São Paulo, entre 22h e 5h, foi regulamentada em 26 de outubro de 2016. Na ocasião, lembro que eu, feminista, fiquei aliviada. Pensei nas mulheres que não têm as mesmas condições que eu e que precisam garantir a vida trabalhando à noite e voltando em horários absurdos para casa. Lembrei-me das vezes em que caminhei só na rua, e como tive medo. Lembrei cada passo, e em seguida cada olhada para trás ao perceber a presença de um vulto. Lembrei-me do novo respirar ao perceber que também era uma mulher atrás de mim, e do apertar o passo, ao ver que era um homem. Lembrei-me de um dos primeiros textos que me aproximou ao feminismo, que enumerava tudo o que eu não podia por ser mulher. A independência que me era tirada. O simples direito de ir e vir que me era negado por não haver segurança. Lembro-me de pensar que estavam fazendo algo a respeito.

“Caminho de Sempre”, de Bruna Vieira e Sarah Corsi, que integra a sessão Oficinas Brasil, me abriu os olhos, e isso, por si só, já é algo muito potente. Provavelmente, cumpriu seu maior objetivo. Ao vê-lo, lembrei-me de tudo isso, e da lei que logo esqueci. Mas que a mulher que anda só não esquece. Pois de nada adianta encurtar o caminho e descer fora do ponto, quando o ônibus não faz o caminho que a deixa na porta de casa. Quando o caminho de sempre é na favela e nas quebradas, e ela continua a voltar só e sem segurança. A lei, na verdade, é mais uma vez a política brasileira tentando tapar um buraco, em vez de atacar o problema. E é tão eficiente em tapar o buraco que o marketing funciona para algumas pessoas. Funcionou em mim. Mesmo quando agora parece tão óbvio que, se não é seguro para uma mulher chegar até sua casa, o problema não é onde o ônibus para, mas sim o caminho por inteiro. E sua casa, que também não é segura. E a segurança não é apenas no quesito da invasão do corpo por um homem. Uma casa sem saneamento básico também não é segura. Uma casa derrubada por enchentes e adentrada pelo frio não é segura.

“Caminho de Sempre” começa com vozes de mulheres em off, que pedem ao motorista que ele pare fora do ponto. Num primeiro momento, achei engraçado, pensei até no motorista, tendo que fazer inúmeras novas paradas, o caminho pingado, para não correr o risco de ser multado em R$ 360. A repetição é irônica, e sinaliza o caminho que o filme como um todo irá tomar. O primeiro plano, logo após os inúmeros pedidos femininos, é a mão de uma mulher enquanto segura a chave de casa.

Lembro que, na 14a. edição da FLIP (Feira Literária de Paraty), assisti a uma palestra do escritor Abud Said, que, ao tuitar seu dia a dia na guerra da Síria, ficou mundialmente famoso. Ele não entregou o que os jornalistas esperavam. Não contou uma grande história dramática, como o que escrevia na internet. Não se emocionou, não tinha um pesar. Ao contrário. Abud Said passou seu tempo inteiro falando das mordomias que estava recebendo, e de como não sabia como estava ali; que, ao contrário, um dia começou a escrever o óbvio, o cotidiano que vivia todos os dias, e o mundo reagiu com choque e espanto. Foi um tapa na cara da burguesia intelectual que frequentava o evento, e esperava relatos de “outro mundo”. O que Abud Said falou, sem precisar dizer muito, é que seus relatos eram desse mundo mesmo, o mundo em que você acorda tranquilo na sua casa, sabendo que viverá pelo resto do dia.

Lembrei também da crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector. Seu relato do ato de justiça que matou um homem a 13 tiros. Mineirinho, um famoso criminoso, havia sido fuzilado pela polícia, e nas ruas reinava um sentimento dúbio. A pergunta de Clarice era por que tamanha indignação existia dentro das pessoas, quando todas sabiam que Mineirinho havia matado muito mais.

Sabiamente, ela responde:

“Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.

Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.”

Na sua crônica, Clarice apresenta o conceito do “sono dos sonsos”, esse sono que nos permite dormir à noite, ao acreditar num senso deturpado de justiça. O filme “Caminho de Sempre” me fez lembrar do meu sono, tranquilo, fácil, falso. Me fez lembrar do meu sono, ao acreditar em leis tão absurdas. Lembrei-me das paredes da minha frágil casa, que se sustenta em razão do que eu decido emburrecer dentro de mim. Clarice, em seu conto, discorre sobre como programamos nossos dias em função de que a casa não estremeça e nosso sono permaneça tranquilo.

Meu sono dos sonsos foi perturbado, pois ver o medo no olhar da mulher que anda só é reconhecer o medo apagado em mim. Eu me vi no seu andar. E o que acontecerá agora? Continuarei vivendo sob esta casa fraca, que se sustenta sob nosso fraco conceito de justiça.

(Louise Belmonte)