NÓS, OS HUMANOS – Kini, de Hernán Oliveira (Uruguai)

por Lucival Almeida

Poucas palavras de uma senhora, sons e inquietações dos filhos e a distopia de um representante do movimento da extinção humana no rádio. A memória de um pai em fotografia e um elemento primordial para o desfecho de uma mentira confortável, a família original. Uma vela e longos segundos de enquadramento enquanto ouvimos: “do mesmo jeito que a raça humana tem uma principal causa de morte, nosso planeta sofre da sua própria pandemia hoje. E essa pandemia somos nós, os humanos”.

Ao abrir a porta para os filhos que se acomodam em torno de uma mesa, a senhora abre a possibilidade de dividir uma notícia com aquelas criaturas humanas que outrora, identificamos, não estariam ali por vontade própria – exceto uma, a cada 15 dias –, para superar um pouco as expectativas daquela mãe que dedicou bastante da sua vida para criar os humanos que sofrem da sua própria pandemia, o descaso.

Coçar a garganta, olhar apenas o celular, pintar as unhas com cara de deboche e impaciência, observar com tédio, falar sem parar, ignorar o grupo e sair. Ações que poderiam facilmente virar uma figurinha de aplicativo são exatamente as ações de desafeto que mais causam gritaria em nossos diálogos virtuais. Depois de muito questionamento, a grande notícia: a mãe ganhou na loteria e decide que doará tudo para a reconstrução de uma praça. Com a notícia, a situação só fica mais caótica.

Após a discussão, aquela mãe que não demonstra surpresa levanta-se e vai até a cozinha, enquanto os filhos queridos e amorosos (contém ironia) decidem que não faz sentido doar um prêmio, uma vez que todos precisam do dinheiro. O mensageiro distópico nos levou exatamente ao ponto em que cada necessidade é revelada, a causa da pandemia humana: a ignorância e o pouco cuidado com o próximo. Justifica-se que não importa os valores que você impõe em uma criação; o ser humano tende a criar suas próprias ambições. Aumentamos a população todos os dias com a possibilidade de deixar um legado e não lidamos bem com o fato de que o seu legado pode acabar numa reunião familiar, num conflito de interesses e no abandono de alguém para conseguir o que deseja.

Kini não faz referência apenas às relações moldadas no oportunismo, como também à busca por preencher o vazio que um ser humano carrega porque seu maior prêmio, o amor, é posto de lado. Todos temos uma história de juventude, conquistas e relacionamentos, mas esquecemos que a melhor idade também passou por tudo isso e seu fim é acordar cedo, passar um café e esperar que o dia se repita até que tudo acabe. Esquecidos, ansiosos pelos encontros das ramificações familiares, e do reconhecimento de que as outras construções se estabeleceram por sacrifícios silenciados.

Talvez cair e fingir um ataque fosse a última possibilidade de descobrir que estava errada. E não estava. Com o corpo estirado na cozinha e uma discussão aquecida da divisão do dinheiro, a humana esquecida desfaz seu disfarce, liga todas as bocas do fogão e sai. Enquanto abre sua Fanta e dá um delicioso gole, sua casa explode, junto com todos os humanos que a deixaram morrer pedindo ajuda. E é isso: a gente espera por ajuda mas as urgências são outras. O vazio humano continua sem se preencher, enquanto, vazios, lutamos por dia menos solitários.

OLHOS ABERTOS À ÁFRICA – Mostra Novas Áfricas

por Cacá Espindola

O uso de estereótipos em narrativas cinematográficas tem por objetivo, segundo a teoria de Stuart Hall, ser uma estratégia discursiva do colonialismo. Trata-se de um padrão estabelecido pelo senso comum e baseado na ausência de conhecimento sobre o discurso para manutenção da posição de poder. O que o Programa Novas Áfricas do 31° Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo nos prova é o quanto podemos ganhar ao abrir os olhos e expandir nossa visão limitada pelo colonialismo, para além dos estereótipos.

A mostra apresenta uma ebulição de sons, idiomas, cores e genêros, que ocupam nossas telas e nos levam à explosão de afetos. A cultura de um continente em movimento se apresenta aos olhos do espectador, que não consegue e nem deseja fechá-los, perante as muitas formas e sentimentos proporcionados pelas novas Áfricas. O espaço da tela se torna pequeno – principalmente no contexto online – para tamanha pluralidade de conhecimento, disposto em imagens a serem assimiladas em questão de minutos.

A cultura do continente africano passa por nossos olhos no programa Rebelião, tomando a forma da ação política cotidiana, seu impacto subjetivo em diferentes países, para distintas gerações e nas mais diversas proporções. Se em Dia Negro (Senegal) assistimos a pacata e dedicada vida de Ngor se transformar em caos sem motivo aparente, em questão de minutos, no filme Altas Horas (Congo) a dura resiliência de uma população que luta por seu direito à energia elétrica parece não ter fim. Ao repartir a tela em três, a fotografia limita o campo de visão e direciona nosso olhar ao esforço de luzes escassas, conquistadas a muito custo, em iluminar adultos, idosos e crianças reféns de um governo que os retém na escuridão. O diretor não nos deixa outra opção à não ser enxergá-los.

Somos então introduzidos ao programa Música e Cinema, o espaço aberto ao imaginário, as formas da criação em um contexto de livre experimentação. Nunca olhe para o sol (Congo, França) é uma narrativa que nos explica, em meio a figurinos e maquiagens dignos de passarela, a poesia que abriga os diferentes tons da pele. A cada nova combinação estética que o curta desfila na tela, desapegamos de nossas tendências e modelos e mergulhamos na propulsão da beleza visual. Mas não só de imagens se forma o que é belo. É o que mostra Um toque de Kora (Senegal), que encanta com os poucos sons que emite Salma, ao enfrentar as limitações de sua cultura entre notas e silêncios. O saber também é música, ouvidos abertos para a África.

Quando a expansão da cultura parece ter atingido os limites dos sentidos, chega o programa Mulheres Africanas, plural em narrativas e afetos, nos conduzindo por novos territórios e transcendendo os padrões. Por meio da história de Mama Bobo (Senegal), teremos apego a um ponto de ônibus e, antes que o tempo do filme se esgote, sentiremos forte saudades de Mama. O feminino ganha ainda outros traços. O conceito de sororidade, tão comum no atual contexto cultural, já não nos parece suficiente para descrever a convivência entre as mulheres de Minha amada coesposa (Senegal), que partilham uma mesma casa, ou ainda aquelas de Além do muro (Marrocos), que dividem uma construção. O aprendizado provém da afeição, corações abertos para a África.

Claire Diao e a Sudu Connexion, em parceria com a Kinoforum, partem da premissa de que “um filme é feito para ser visto”. Não deveria nos espantar que a sua seleção chegasse ao fim deixando a sensação de que é tarefa necessária revisitar todos os curtas, de todas as mostras, do programa Novas Áfricas. O abrir de olhos se torna um caminho sem volta, trazendo com ele uma compreensão: se em questão de minutos os estereótipos já nos parecem pura perda de informação, existe um continente de saber sobre o qual não temos nenhum conhecimento – e quem perde com isso somos todos nós.

O FANTASMA SEDUTOR DO PASSADO – Bablinga, de Fabien Dao (Burkina Faso, França)

por Pedro Reis Guimarães Rosa

Lembranças não são um tema novo no cinema. Do cinema clássico americano às obras de Fellini, o anseio por momentos do passado foi transcrito imageticamente por uma grande variedade de autores inseridos em diversas culturas e movimentos. Em seu curta Bablinga, o diretor Fabien Dao explora o tema sob a ótica de um emigrante de Burkina Faso que sai de seu país para abrir um negócio na França, deixando para trás seu estabelecimento anterior, o bar Bablinga.

O curta inicia sua narrativa antes de um suposto retorno do relutante protagonista Moktar, que, nostálgico, rememora seus dias no bar que abandonou. É a partir daqui que a direção e a fotografia, num impressionante trabalho de iluminação, começam a brilhar, capturando visualmente a essência da memória afetiva. Viajamos de volta à um Bablinga idílico, imortal. O espaço literalmente narra sua história, com gravuras nas paredes que comentam sobre o personagem central e suas decisões, cercadas por pessoas sempre sorridentes, bem arrumadas, sob a luz cálida da lembrança.

Durante grande parte de sua duração, o curta explora a potência emocional da contemplação do passado, do resgate da juventude e seus anseios. No entanto, conforme se aproxima da conclusão, o tom é alterado de forma quase imperceptível. O roteiro começa a abordar a dualidade da recordação, ilustrando não só a saudade como também o medo de Moktar: o de decepcionar-se com o presente, enfrentar as consequências de suas ações, perder Bablinga – não o real mas o imaginário, preservado pela nostalgia. As ilusões, antes como que obras num museu, se mostram figuras criadas pela culpa de Moktar, signos de uma decisão que ainda o assombra. O protagonista tenta ativamente livrar-se da alucinação, apenas para perceber a imortalidade da memória.

Através de um roteiro primoroso e um forte controle da linguagem visual, Bablinga traduz naturalmente o complexo misto de emoções que compõem a relação com o passado, alternando entre a beleza da contemplação dele e o terror de reencontrá-lo.

UMA GERAÇÃO DE ZUMBIS DIGITAIS – Zumbis, de Baloji (Congo)

por Lecco França

O curta Zumbis é uma produção da República Democrática do Congo e da Bélgica, dirigida pelo músico e cineasta congolês Baloji. A obra, entre outros aspectos, reflete o contexto urbano contemporâneo de grandes cidades africanas, como Kinshasa, capital deste país africano, que transitam entre as culturas tradicionais e as influências das culturas modernas ocidentais. Este filme musical, que apresenta três canções do disco 137 Avenue Kaniama, lançado pelo artista em 2018, explora a forma como o universo tecnológico móvel (em especial os smartphones) tem afetado e conectado as sociedades de diversos lugares do mundo através da internet.

Na primeira parte, o espectador é levado para o universo das boates, onde as luzes das telas dos celulares competem com o brilho de neon na pista de dança. Ao som da canção Spolight, homens com camisas de estampa de onça dividem o espaço com outros dançarinos usando óculos de realidade virtual, além de personagens que remetem a rituais tradicionais africanos, como aquele que utiliza uma vestimenta de palha e um capacete decorado com búzios, encarnando um espírito ancestral. Há um outro rapaz dançando com um extensor de braço acoplado a um celular, reforçando o discurso de que este dispositivo se tornou, de fato, uma extensão do corpo humano, a ponto de delegarmos funções humanas naturais para ele, construindo uma relação quase carnal com esta tecnologia.

Nesse sentido, para além da energia e êxtase trazidos pelas imagens e sons, com um forte apelo audiovisual nas cores, figurinos e batidas musicais, o filme também estabelece uma crítica a esse contexto, no qual as pessoas têm abdicado de suas vivências reais para construírem narrativas e experiências fictícias no ciberespaço, em troca de seguidores e likes nas redes sociais. Essa crítica ao isolamento autoimposto e às superficialidades incentivadas pela tecnologia móvel permite associar esses sujeitos aos zumbis do título, mortos-vivos privados de vontade própria, sem personalidade e usualmente de hábitos noturnos.

Na segunda parte, há uma mudança significativa de espaço e horário, do clube de dança à noite para a rua durante o dia, com um desfile performático de interessantes personagens, que compõem uma plural e enigmática mise-en-scène, como um homem paramentado por uma vestimenta feita com tampas de garrafas plásticas, outro com uma roupa repleta de preservativos coloridos, ou um homem branco usando um terno branco e sentado num trono carregado por quatro homens negros, segurando um crucifixo na mão e jogando dinheiro para as pessoas na rua, o “Papa Bolo”, o que nos remete à imagem do europeu colonizador (capitalista e cristão) e aos políticos africanos do pós-independência que mantiveram a máquina administrativa colonizadora.

Há ainda um inusitado personagem com cauda de peixe, coroa e tridente, numa ilha coberta de lixo e cercada por um mar de esgoto, que permite uma pertinente reflexão sobre consumismo e degradação do meio ambiente, consequências do sistema capitalista. Um outro aspecto interessante do filme aparece nos créditos finais, na forma pela qual a equipe do filme é apresentada, simulando uma conversa online, onde as falas de cada interlocutor são ilustradas em balões de cores diferentes: de um lado, o nome da função exercida no filme, do outro, o nome do profissional.

O filme é mais uma amostra da efervescente, criativa e engajada produção contemporânea de curtas-metragens no continente africano.

O NOSSO INFAME UPGRADE – Mostra Internacional 1: Viajantes do Apocalipse e 2: Sociedades Esquisitas

por Alexandre Diniz

Os curtas da Mostra Internacional do 31º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo parecem ter a missão de nos levar a uma reflexão sobre como nós humanos estamos sempre perto da destruição, e é nesse ponto que quero acrescentar uma justificativa ao título da crítica.

Uma seleção bem elaborada com filmes que apresentam uma visão do mundo de diferentes perspectivas, e coloca sob holofote os nossos principais conflitos. Com seis filmes muito impactantes, a sessão Viajantes do Apocalipse é responsável por uma imersão em mundos distópicos onde a esperança não chega a ser nem uma mera alegoria. Já a sessão Sociedades Esquisitas lida com o presente de forma verossímil (ainda que por vezes usando analogias) nos seus cinco filmes exibidos.

Mesmo que por caminhos diferentes, os 11 filmes somados tratam do humano, da identidade, das mazelas causadas pelas ações do homem. E fazem isso com maestria.

Seja em Still working, de Julietta Korbel, ou em Terminal, de Kim Allamand (ambos da Suíça), existe uma atmosfera de saudosismo que indica um impedimento de evolução psicológica, mesmo que o tempo esteja avançando e que os limites do espaço possam ser ultrapassados. Há uma ligação quase impossível de se quebrar com o lugar em que se está, e com as rotinas adotadas. As personagens de ambos os filmes praticamente fazem parte do lugar (ou se tornaram o lugar). O protagonista de Still working já vivera seus momentos de glória, contudo está no seu fim. A solidão dá as suas caras, e a possibilidade de mudanças repentinas gera um incômodo aparente no comportamento das personagens.

W, de Stelios Koupetoris (Grécia), é uma espécie de síntese das duas sessões. Há um questionamento sobre quais foram as diretrizes que estimularam a nossa evolução infame. Infame porque somos remetidos às consequências das escolhas que foram feitas em momentos importantes da história. Vejo uma ligação quase que direta com Um mundo mais humano, de Gavin Hipkins (Bélgica, Nova Zelândia), pois há ali uma expectativa gerada em cima de hipotéticas realizações, mas que claramente são utopia.

Há também um flerte mais pungente com a perda da nossa capacidade de interagir e de nos importar com os nossos iguais. Isso é referenciado através de uma analogia em Catiorros, de Halima Ouardiri (Marrocos), e ainda mais em Weekend, de Ario Motevaghe (Irã), onde o comportamento cultural da família pode ser facilmente julgado sem que olhemos para o nosso comportamento diante de situações de exposição do dia a dia – o tão atual cancelamento já é em si uma forma de violência e existe apenas por ter seus espectadores. Em The fall, de Jonathan Glazer (Reino Unido/EUA), por motivos desconhecidos, vemos uma sociedade que tem a violência como forma de solucionar os desvios, mas que com suas máscaras demonstra total perda de identidade, e talvez também de humanidade.

As duas sessões têm uma linguagem alinhada em mostrar as frustações humanas, a solidão, a autodestruição. Alguns dos filmes projetam deixar lições para quem os assistir, e talvez o que mais fuja à regra é Ascona, de Julius Dommer (Alemanha), misto de paixão e lembranças que reforça o quão boas podem ser as interações, e a necessidade de se estimular os relacionamentos. Soa quase como um oásis em meio aos conflitos vistos nos outros curtas.

Mesmo com temas recorrentes devido à nossa realidade atual, ambas as sessões surpreendem por apresentarem roteiros simples porém consistentes, e por ressaltarem a necessidade de sermos melhores não só para o mundo, mas para nós mesmos.

POR UM MUNDO MENOS HUMANO – Um mundo mais humano, de Gavin Hipkins (Bélgica, Nova Zelândia)

por Pedro Pimenta

Um mundo mais humano é um ensaio visual a respeito da crença otimista que equaciona irrefletidamente progresso técnico-científico e progresso social, em especial no âmbito do debate, característico do período retratado pelo filme, dos usos e abusos da energia nuclear. O filme parte de registros fotográficos, feitos pelo pai do diretor, da Expo 58, feira mundial ocorrida no ano de 1958 na Bélgica, cujo slogan – um balanço do mundo, para um mundo mais humano – serviu de sugestão para o título do curta. O mundo em questão é aquele idealizado pela ciência moderna, mundo em que progresso significa domínio da técnica sobre a natureza, do humano sobre o seu ambiente, quando esse domínio parece se estender até às partículas elementares da matéria.

O filme apresenta também filmagens atuais do Atomium, monumento colossal de 102 metros de altura construído para a Expo 58 e que representa a estrutura elementar de um cristal de ferro, sendo a construção homenagem às conquistas da ciência e símbolo da chamada era atômica, período que tem início com o término da Segunda Guerra Mundial e que foi marcado pela disseminação de um otimismo quanto aos potenciais da energia nuclear. As imagens do monumento são captadas por uma câmera que parece orbitar um centro fixo, tal como uma esfera, lembrando o épico abstrato La région centrale (Michael Snow, 1971). Um mundo mais humano se apropria formalmente de seu objeto ao estabelecer uma metáfora visual, compartilhada também pelas ciências naturais, do átomo e de suas partículas constituintes representados como um sistema de órbitas.

Além do registro propriamente fotográfico, o filme é composto por outros materiais: maquetes e modelos de computação gráfica, padrões de cores e ruídos sonoros, uma diversidade de cartelas e intertítulos. Estes últimos oferecem, a golpes de síntese – HUMANISMO, O FUTURO, CIVILIZAÇÃO TECNOLÓGICA, DESARMAMENTO MUNDIAL, mas também CONTAMINAÇÃO DA ATMOSFERA –, as linhas gerais do debate quanto à questão do uso, promessas e limites da tecnologia nuclear, no âmbito mais geral do progresso da técnica e da ciência. De passagem, é importante ressaltar que a era atômica que a feira mundial belga festejou teve início com os primeiros usos em larga escala de tecnologia nuclear, a exemplo do clarão monstruoso que se abateu sobre Hiroshima.

Ao trabalhar com o seu conjunto de materiais, o filme funciona como uma espécie de acelerador de partículas, fazendo colidir as fotografias de arquivo, as maquetes tridimensionais de estruturas atômicas, as varreduras orbitais do Atomium, tudo isso entrecortado pelo conjunto de intertítulos e cartelas. Ao otimismo cego quanto à energia atômica – como se pôde permanecer cego frente ao clarão mais intenso já produzido pela espécie humana? –, Um mundo mais humano contrapõe um turbilhão de dilemas que tensionam a crença unilateral no progresso científico, fazendo-nos pensar nas futuras catástrofes que hoje nos avizinham, boa parte delas provocadas por uma concepção de ciência e de progresso que reduz o mundo à nossa imagem e semelhança.

Não seria o caso de defender, ao contrário, um mundo menos humano?

O ESVAZIAMENTO DA EXISTÊNCIA E A BELEZA DA DIVERSIDADE – Catiorros, de Halima Ouardiri (Marrocos)

por Gustavo Furtuoso

Eles entram em filas, comem, brincam, tomam sol, fazem sexo, dormem, vivem. O paralelismo criado entre a situação de 750 cães de rua resgatados no Marrocos e aquela dos milhões de refugiados que sofrem com a crise de imigração mundial é feito de forma sutil e alegórica em Catiorros. O filme torna nítidas as semelhanças entre o comportamento dos animais e de nossas próprias ações enquanto indivíduos que tentam conviver em meio a um coletivo, sob condições momentâneas que de repente passam a definir seu modo de vida.

Os planos longos despertam nossa curiosidade para desvendar mais sobre aquele lugar do qual não temos nenhum contexto. Acompanhamos como é a vida desses cães, como se adaptaram a um local novo, superlotado, com limitações e hierarquias impostas e sem previsão ou garantia de mudança. O olhar contemplativo empregado por Halima Ouardini nos faz perceber o tempo do filme como um tempo de espera. Por um lar, pela comida, pelo banho de sol.

Mas essa espera dos cães é apenas símbolo para uma espera muito mais dolorosa, por ser consciente. Enquanto os animais vivem no instante presente, o ser humano tem a capacidade de acessar o passado pela memória e fazer projeções para o futuro, criar expectativas, alimentar esperanças. Seja por estar fugindo da guerra, de perseguições políticas ou de condições precárias de vida, o drama dos refugiados se intensifica ao entrar nesse estado suspenso, dependente de forças externas e submetido a elas. Lá, ficam alienados de suas vidas, pessoas e paisagens e em contato com pessoas de diferentes locais, culturas e que de repente se vêem compartilhando um mesmo espaço.

A primeira e única vez em que ouvimos uma voz humana acontece já ao final do filme, através de um aparelho de rádio. Os dados enunciados por um representante das Nações Unidas sobre estatísticas de refugiados ancoram a situação mostrada na realidade, explicitando as relações da alegoria representada. Fora isso, a presença humana é mínima. Não mais que gestos protocolares de manutenção do espaço, com os funcionários trocando a comida dos cães ou os levando de uma ala à outra.

Antes mesmo de articular qualquer desses argumentos, entretanto, Catiorros opta por mostrar a beleza desses cães, dos quais todos são – como chamamos no Brasil –  “vira-latas”, resultados da mistura de pelo menos duas raças distintas. As formas, cores, pelagens e tamanhos inundam a tela desde o primeiro plano, numa diversidade que se faz presente de maneira central.

A existência suspensa dos cães no abrigo reflete o não pertencimento vivenciado pelos refugiados, impedidos de fazer planos ou projetar um futuro até que possam ser repatriados. O olhar paciente do filme cria momentos de contemplação, enquanto a rotina dos animais pode proporcionar identificações e reflexões acerca do comportamento do homem imerso em sociedades com regras e valores que determinam suas ações e, sobretudo, o espaço que ele pode ocupar.

PANORAMA SOBRE MEDOS SOLITÁRIOS – Programa Terror na Tela

por Murilo Morais

Cinco filmes compõem o programa Terror na Tela que, este ano, se distancia um pouco  do gênero. O mote da “grande noite” dá o tom pessimista, e nesse quesito as obras não falham. Pode-se questionar se alguns dos curtas podem ser chamados de horror. De qualquer jeito, todos traduzem certas aflições e dialogam com o gênero. Ao menos quatro filmes do programa apresentam uma coesão: são obras individualistas e autocentradas. Apesar das divergências, algo vale para todos: seja através de angústias contemporâneas, medo da maternidade ou reparações históricas, o programa Terror na Tela apresenta uma seleção diversamente pessimista, com diferentes discursos apresentando um registro focado no indivíduo.

Em tons similares, Ligue depois da meia-noite, de Sabrine Tenfiche (França) e Na praça escura, de Nicolás Schujman (Argentina) se conectam pelo desencontro entre seres fabulosos e a sociedade contemporânea. Há uma clara decepção com as instituições que organizam as vidas humanas, focalizada no trecho mais fantástico do mito vampírico: a bestial transformação em morcego. A opção pela liberdade através da transmutação é sintomática: frente à incapacidade de alterar o mundo e suas idiossincrasias, a dupla escolhe o abandono da forma humana e das organizações que a acompanha. Tornar-se ser fantástico está em sintonia com uma culpa branca progressista que, decepcionada com o rumo da contemporaneidade, prefere que sua conexão com ela chegue ao fim. As notas de comédia à la Woody Allen brotam justamente da lógica dos monstros, inconciliável com a estupidez mundana.

Em outra sessão, a Mostra Brasil 1, Egum, de Yuri Costa, nos serve como contraponto: enquanto os curtas estrangeiros acham no gênero uma maneira de se descolar do mundo, o brasileiro está mais interessado em tensionar o terror sob a horrível realidade da população negra no Brasil, disputando a narrativa da sociedade a partir desse registro. Ao invés do abandono, a luta.

Deixando de lado a comédia, a desesperança em Shunkan, de Ricardo Albuquerque (São Paulo) se materializa no deus-cego, na cidade sem lei – abandonada a horrores psicóticos. Os avisos do narrador se assemelham àqueles de organizações de saúde que pretendem ajudar na prevenção de doenças. Mas aqui, a população está à sua própria sorte. Impossível não encontrar ecos da situação pandêmica atual e o descaso do governo Bolsonaro. Ainda assim, o verdadeiro terror no curta é individual, não coletivo: a protagonista se questiona se ela é ou não o vilão que ronda sua própria mente. Shunkan cansa pela excessiva exposição de sua curta trama, seja nas brincadeiras com faux raccords denotando flashbacks, seja num close na carta de tarô com a figura do Louco. Ao invés de se encerrar, a obra parece espelhar a ciclicidade da carta mencionada acima, e termina no mesmo plano que começou. Um discurso mais esclarecido, e ao mesmo tempo mais egocêntrico.

O Teste, de Philipp Christopher (Alemanha) descola do grupo por sua proporção vertical de tela e aproximação formal ao que acostumamos chamar de horror no cinema mainstream – uma escalada de suspense com pistas audiovisuais que desemboca no jumpscare – uma mudança abrupta de plano para assustar o espectador. Seu trunfo é relacionar essa fórmula à descoberta de uma gravidez. Enquanto o medo da maternidade é uma chave de leitura, o curta demonstra que um found footage (um material fílmico encontrado) vertical não traz inovação no conteúdo por si só. O filme se resigna a um término abrupto e clássico. Um aborto, afinal.

Finalizando com mais culpa branca, Deserto Estrangeiro, de Davi Pretto (Rio Grande do Sul) segue o personagem de Mauro Soares. A imigrante africana de Isabél Zuaa, como uma espécie de caronte, o leva a uma jornada ao submundo. A travessia do lago se aproxima da viagem de tantos refugiados africanos, só que no sentido oposto. Enquanto os protagonistas partem na esperança de encontrar melhores condições de uma vida na Europa, os refugiados vão para um deserto onde a dor e a morte não param de emergir. As ossadas dos povos oprimidos aparecem no parque quase como uma revolta zumbi. O filme, no entanto, termina em tom emocional de conciliação, crendo justamente na união dessas diferentes forças – o branco que não é reconhecido como europeu mas ainda assim trabalha cuidando de suas propriedades, e a mulher africana ainda em processo de sofrimento e exploração. No fim, ninguém se levanta e nenhum corpo sai da terra. A maldição continua enterrada e, mesmo que haja a reparação individual da alma, não há da matéria.

O HORROR COMO RESSIGNIFICAÇÃO DAS BRUTALIDADES HISTÓRICAS – Deserto estrangeiro, de Davi Pretto

por Antonio Victor Cardozo

O quão tênue é a linha entre a ficção e o real? Essa é a discussão levantada por Deserto estrangeiro, filme que integra a mostra especial Terror na Tela: A Grande Noite. Uma coprodução Brasil e Alemanha, o curta acompanha um jovem brasileiro recém-chegado a Berlim, que tem como atribuição de seu novo emprego cuidar de um parque local. Tudo muda quando uma garota desaparece e ele se propõe a procurá-la.

O diretor Davi Pretto, que esteve no festival em 2019 com Princesa morta do Jacuí, vaga aqui por caminhos contemplativos, com uma fotografia que valoriza tanto os planos mais fechados quanto a vastidão das locações, em sequências onde a floresta ou o lago são protagonistas. Mas quem rouba a atenção do filme é Isabél Zuaa (de As boas maneiras), numa interpretação contida, mas potente. Familiarizada com o gênero, Zuaa entra como coadjuvante, ajudando o personagem na procura pela garota desaparecida, mas logo assume o protagonismo.

Como filme de gênero, o diretor opta por construir o horror de forma subjetiva, com uma trilha sonora sutil mas certeira no que se propõe: dar o tom macabro aos acontecimentos históricos que tratam do colonialismo alemão em terras africanas e servem como pano de fundo para o filme. Neste aspecto, o roteiro acerta em não entregar tudo a quem assiste, optando por atiçar a curiosidade do espectador.

Todos os elementos sugerem um clímax brutal e gráfico. Neste quesito, o filme deixa a desejar: por mais que seja interessante não saber de tudo, diante de todo o panorama histórico e social que a personagem de Zuaa nos dá, sentimos a necessidade de ver na tela o que ela nos oferece em seus diálogos: uma história que não deve ser esquecida e que está sendo revivida ali, naquela mata escura, com mortos tendo sede de vingança por seus executores.

Deserto estrangeiro nos mostra que o horror como gênero vem ganhando força por funcionar como uma excelente ferramenta para retratar questões históricas e sociais que não devem ser esquecidas, mas ressignificadas. Abordando colonialismo, domínio e miscigenação, o filme de Pretto vai de encontro a produções contemporâneas dessa vertente social do horror, como os longas A sombra do pai, de Gabriela Amaral Almeida; As boas maneiras, de Marco Dutra e Juliana Rojas; e o curta Egum, de Yuri Costa, também na seleção do Festival de Curtas deste ano.

OS MORTOS-VIVOS – Na praça escura, de Nicholás Schujman (Argentina)

por Demerson Souza

Na Praça Escura é um filme sobre vampiros, mas não aqueles que se criaram nos séculos passados e moram em casarões antigos. Aqui, o enredo foca nos recém-mordidos, e que sofreram a metamorfose antes dos 25 anos.

Mesmo contando com as criaturas da noite, este não é um filme de terror, mas de comédia. É vero que o diretor utiliza elementos fantasmagóricos, porém a própria escolha do protagonista diz muito sobre a história que está por vir. O filme conta uma noite na vida de Hochman, um jovem adulto que foi transformado em vampiro há duas semanas. Ele pratica boxe e sai com garotas do Tinder, mas é ruim nas duas coisas.

Hochman tem um grande amigo, mas o filme não nomeia esse personagem, creditando-o apenas como “Musculoso”. O que nos indica que o corpo dele é o mais importante em sua vida.

O jovem vampiro e seu amigo são pessoas opostas, algo evidenciado pela fotografia, que coloca o corpo dos dois no mesmo plano. Além da diferença física, o amigo se mostra muito melhor no boxe, e também mais ativo na vida, diferente do contido Hochman. O Musculoso se aproveita desse desequilíbrio e é o dominante na amizade. Há também uma tensão sexual entre os dois, que pode ser confundida com o instinto faminto de Hochman, que não para de observar o pescoço do amigo. Só que luxúria e gula se misturam neste caso.

Há também uma vontade no jovem vampiro de se tornar aquilo que o amigo representa, uma antropofagia que casa muito bem com seu novo estilo de vida. Mas Hochman ainda não está pronto para abocanhar o parceiro de boxe, e sua fome deve encontrar outra vítima.

A partir do cardápio humano fornecido pelos aplicativos de pegação, ele conhece Dulcinea e marca um encontro na mesma noite – um imediatismo que só as redes sociais permitem, e que também é perfeito para um vampiro faminto. Os dois se encontram na praça escura e durante a caminhada se deparam com a estátua da Loba Capitolina, aquela que alimenta os bebês. O diretor argentino explora como sugar é essencial para a vida. Sangue e leite: as mesmas coisas, diferentes ingredientes. A figura de bronze atiça a fome de Hochman e também a de Dulcinea, que se revela outra vampira. Uma grande ironia, um morto-vivo se depara com outro. É apenas isso que existe no mundo moderno, criaturas imediatistas que caem na própria arapuca?

O que era um vampiro faminto agora são dois. No entanto, o problema se apazigua quando um pequeno senso de amizade e companheirismo surge entre os dois. Hochman ganha uma colega, tudo o que ele precisava para abocanhar o Musculoso.

Nicolás Schujman dirige, interpreta o protagonista e também assina o roteiro. Sua tripla função é bem-vinda, principalmente no campo da atuação. Os três atores têm química, e conseguem desenhar no curto tempo a personalidade de seus personagens. Eles trazem verdade para a estética estranha do filme. Acreditamos em suas garras e em seus diálogos sobre uma ética vampiresca.

É melancólico pensar como vampiros são criaturas imortais e por isso mesmo vagam sem rumo. A longevidade vem do sofrimento alheio, portanto é impossível criar qualquer forma de vida que seja saudável. Ou melhor, criar qualquer felicidade que não seja efêmera. Por isso mesmo, a superficialidade nas relações humanas parece ser o tema central de Na praça escura.