A memória em festa e em luto em O Rio de Janeiro Continua Lindo, de Felipe Casanova

por Erick Aragão Pradela

É de praxe estar atento às surpresas emocionais que filmes experimentais podem proporcionar. Nem sempre acontecem, mas quando acontecem, ficam gravadas. O Rio de Janeiro Continua Lindo é uma dessas raras descobertas: um curta que facilmente se fixa na memória como experiência estética e política de grande força.

O filme tem um tema doloroso: a chacina de jovens negros, que deixa mães desoladas em luto permanente. A opção por imagens bastante granuladas confere ao curta um aspecto de lembrança, como se tudo fosse visto pelo filtro da memória. Nesse registro, o trabalho assume a forma de uma autoficção: um documentário que se transforma em encenação, a partir da carta escrita por uma mãe ao filho assassinado. O ato de escrever se mistura à recordação dos dias de carnaval, quando ela trabalhava como ambulante. A folia, em sua visão, passa a carregar a ausência, mas também a alegria transformada: no brilho da multidão, ela encontra a lembrança da felicidade do filho.

A montagem é precisa, cortando as imagens no instante certo, sem excessos, permitindo que cada plano respire com o fôlego necessário. É construído em imagens potentes, que comunicam tanto quanto a própria narração da mãe. Em determinado momento, os militares surgem como figuras quase circenses; em outro, assumem a rigidez da ordem, todos alinhados, compondo um retrato da repressão que se impõe diante da vitalidade popular. Essa alternância reforça a tensão entre violência institucional e resistência cultural.

O Rio de Janeiro Continua Lindo participou do programa Work in Progress do Kinoforum, conquistou dois prêmios em Locarno e faz agora sua estreia no Brasil no próprio festival. Um percurso que deixa claro a importância dos festivais como espaços de criatividade e renovação no cinema contemporâneo. O filme articula com clareza a memória íntima e coletiva, o luto e a celebração, a repressão e a vitalidade. É, afinal, uma daquelas boas surpresas que encontramos e que os festivais e o cinema experimental são capazes de oferecer. E que dificilmente se esquece.

Por mais mirabolante que seja o medo, o amor persiste: uma crítica da distopia cearense afetiva de O Medo Tá Foda, de Esaú Pereira

por Estefane Araújo Barguil

A animação “O Medo Tá Foda” apresenta Revo que, após roubar dindin de um posto de gasolina em um Ceará distópico coberto por areia, se depara com três figuras pecualires que lhe dão diferentes perspectivas de vida: Biri, Fran e Daisy. Biri, um velho com uma prótese no braço que pedala de chinela, carrega a responsabilidade da vida como um chapéu acabado; Fran, uma memória em meio a névoa, tem medo de muitas coisas, mas reconhece a beleza da saudade e a finitude das coisas; e Daisy, um desertor da guarda que se esconde em um parque de diversões abandonado para fugir das responsabilidades. Os três se apresentam como projeções de Revo e de suas preocupações.

E então, temos Revo, que precisa voltar para sua filha com o dindin, considerado um artigo de luxo no calor escaldante do deserto, mas é perseguido por drones do posto e, também, pelo medo, ansiedade e responsabilidades da vida, fortemente associadas ao futuro de si e de sua filha, por meio de closes na bolsa térmica onde está o doce e de diálogos com os outros personagens. 

O próprio design de Revo fala sobre os sentimentos do personagem. O casaco desproporcional, que mais parecia adequado ao frio, reforça a ideia do peso da responsabilidade que Revo carrega. As sandálias kenner, exageradamente grandes, também contribuem para o visual contrastante – e ao mesmo tempo – deslocado do personagem. Seu corpo, como ele mesmo afirma em diálogo com Daisy, é feito por borboletas que, ansiosas, tentam fugir. Essa informação intensifica o significado visual presente no casaco, como se ele também se tornasse um ponto de tensão entre Revo e sua ansiedade.

Apesar disso, principalmente no encontro com Fran, o curta-metragem é extremamente leve, afetivo e cotidiano, que permite a imersão do espectador. A título de curiosidade, é interessante perceber como a balaclava de Revo, apesar de ser uma máscara em que ele se esconde, também lembra um saco de dindin, objeto o qual ele protege e se torna parte da identidade afetiva do personagem. Como uma ficção científica com forte identidade cultural da periferia cearense, “O Medo Tá Foda” alinha uma estética marcante e construção de mundo única para falar do corre corre do dia a dia com sensibilidade, por meio de um sentimento tão conhecido e tão impactante quanto o medo, mas também, tão forte e necessário quanto o amor.

sobre Fronteriza, de Rosa Caldeira e Nay Mendl

por Maria Eudóxia Carvalho

Fronteriza é uma história de corpos que se buscam no tempo, através das linhas traçadas pelo colonizador, por entre divisões arbitrários de gênero, empurrados ao êxodo urbano por um sistema econômico profundamente desigual, abissal como as cataratas do Rio Iguaçu, mas talvez não tão forte quanto elas.

Nesse curta metragem, que atravessou fronteiras e tempo e refletiu sobre muitos corpos em sua realização, acompanhamos a história de Luca, jovem periférico transmasculino, na sua busca pelo pai, que deixou a família para trabalhar em Foz do Iguaçu e nunca mais regressou. Luca é apresentado em planos médios ou primeiros planos e em cores quentes mas sóbrias, com sua hand-cam em punho. Seu encontro com Diego, jovem paraguaio de origem guarani, durante o trabalho no porto do Rio Iguaçu é criado com os mesmos planos e cores e nos convida à aproximação e empatia, que também os envolve rapidamente. Diego acolhe e situa Luca nesse universo novo. 

Surgem as cataratas filmadas em contre-plongée e em cores ainda mais sóbrias, planos abertos como veias fortes (quem sabe “as veias abertas da América Latina”?). Sua espuma tão branca quanto eterna introduz essa terceira personagem que atravessa a narrativa e a transborda com a delicadeza da tradição oral, que Diego traz, pela memória das histórias que sua avó guarani lhe contava: o Rio Iguaçu. 

Nos planos-sequência sobre a Ponte da Amizade os dois jovens fluem velozes nas bikes, livres no embalo do Rio e da avó (ou seria da Avó-rio?). No entanto, o perigo está à espreita: o homem branco prendeu o Rio em uma jaula. Após essa metáfora anunciada na história da avó de Diego, o mundo se fragmenta em várias imagens estáticas da construção da hidrelétrica de Itaipu. O contraste fica evidente: enquanto as fotos do álbum de família de Diego nos foram reveladas pelas mãos e pelo olhar de Luca, os planos da construção da hidrelétrica são fechados e obedecem à visão distanciada do jornalismo frio e chapa-branca. O Rio foi enjaulado. 

Força das águas, força das palavras, os amigos caminham para descobertas da casa abandonada pelo pai e talvez de uma origem comum. Eles registram seu percurso no território e o banho de rio filmando com a hand-cam de Luca. A intimidade nesses planos fechados, tremidos parecem dizer que a felicidade não mora em cenas estáticas, planejadas. Ao contrário, ela se coloca aqui fluida como um banho de rio, em águas calmas, talvez cálidas, um abraço da Avó-rio.

O cinema e o ambiente como espaço ativo de memória sobre  Video Connection, de Sérgio Rizzo

por  Isadora Quaglia

Em uma das cenas iniciais de “Video Connection” escutamos uma criança encantada com uma ilustração de um filme de terror “Ei mamãe, olha o filme de terror!” A voz infantil e a resposta da mãe são transpostas pela imagem de alguns pôsteres de filmes pendurados. Essa rápida troca é apenas uma das primeiras reações de deslumbre registradas no curta-metragem e sintetiza bem qual será uma das principais mensagens do documentário. Durante uma sequência de 15 minutos de planos estáticos somos apresentados a todo o espaço da Video Connection, uma tradicional videolocadora localizada no Edifício Copan, emblemático prédio no centro de São Paulo,  e uma das poucas que ainda resiste à passagem do tempo.
Os planos que mostram desde as prateleiras recheadas com variados tipos de mídia física até os cantos mais inacessíveis da loja, inserem o telespectador dentro do cotidiano daquele local. É com esse retrato que o curta desperta a complexidade e o conforto do sentimento de nostalgia, mas em conjunto com a sobriedade de que agora os tempos são outros, e o que antes era um comércio comum e rotineiro na vida do brasileiro transformou-se em raridade.
Com uma rica pauta em mãos, o diretor Sérgio Rizzo não se prende em apenas registrar a excentricidade de uma locadora ainda aberta nos dias atuais, mas também aproveita da movimentação dentro e fora dela para apresentar um estudo sobre memória e como o audiovisual carrega o poder de sensibilizar o indivíduo. Ao longo de todo o curta, diferentes reações de curiosidade e encanto diante do espaço são destacadas, além de diálogos entre o dono da locadora, Paulo, e seus clientes. 

São as histórias contadas nos filmes alugados pelo público que constroem uma coletividade entre eles e o principal funcionário do estabelecimento. Video Connection é um passeio pelos sentimentos e marcas causadas pelo cinema, é uma reafirmação da potência da arte como objeto de afeto e fascínio, mesmo quando estes ocorrem de forma não intencional.

 O cinema à beira do abismo sobre Mostra Limite 2 – Vereda Tropical

por Clara Grosche

Sobre a Mostra Limite 2:

Seguindo o legado de Mário Peixoto, a Mostra Limite 2 apresenta filmes que não se reduzem a histórias ou fórmulas, mas se afirmam como experiências livres e inventivas, que de fato nos conduzem aos limites do ofício cinematográfico. Absolutamente originais, os curtas exibidos não apenas possuem uma ousadia formal, mas também uma coesão na ambição e na entrega à linguagem sensorial. Quase tendo mais sinestesia que narrativa, estes atravessamentos nos levam a viagens metafísicas que enriquecem o cinema experimental com um destemor avant-garde.

Filme 1: Espero Que Não Se Importe

Antigamente é muito dentro”, disse Nathália Lemos, diretora, antes da estreia de seu curta. E começamos dentro: dentro de um apartamento que não se explica, mas cujo mistério nos atiça. Na primeira imagem, das mais de 200 que compõem o filme, surgem dois caminhos; nas próximas, encontramos duas pessoas e três peixinhos.

A estética do pinhole cria uma atmosfera onírica, próxima da fantasmagoria, que nos envolve em uma história que se dissolve em haletos de prata. Algo que remete bastante às fotografias de Francesca Woodman, que vai para um caminho surrealista e conceitual a partir do uso de artifícios técnicos como a longa velocidade do obturador e a dupla exposição. O resultado são imagens borradas, gerando a sensação de movimento e urgência. Como nos sonhos, no filme não há espaço ou tempo definidos. Os sons destoam do que vemos e nos levam a outro lugar — um lugar que não foi feito para pensar. Afinal, “outras pessoas pensam”, como indica o quadro na sala.

Antes de ouvirmos o bilhete, que termina com o título do filme, “Espero que não se importe”, vemos a personagem em claro desconforto na cama, com movimentos disformes e quebrados. É um gesto que ecoa a própria estética do filme: composto por fotos fixas, poderia parecer truncado, sem fluxo. Mas essa aparente fragmentação funciona. Seguindo o legado de realizadores como Chris Marker, que exploraram narrativas fotográficas fora dos tradicionais 24 frames por segundo, o filme nos mostra que é possível contar histórias fluidas mesmo em sequências aparentemente desconexas.

Do lado de fora, livre, a personagem se espalha pelo quadro. Os movimentos, antes contidos e desconfortáveis, se expandem em gestos lúdicos e improvisados, carregando a narrativa quase sozinhos. As fotos não falam, e não é preciso: é o corpo dela que narra, cria ritmo e introduz o nonsense, beber os peixinhos, entrar nesse transe, brincar com a própria lógica do filme.

O final nos leva para dentro, para a água, enquanto os peixinhos vão para fora. Do inicial incômodo sem explicação à entrega ao absurdo, a personagem emerge espelhada na água, banhada como as fotos. É um fechamento sensorial, poético e íntimo, que traduz o poder da narrativa visual e da liberdade estética que o curta propõe.

Filme 2: O Jardim das Delícias Elétricas

O Jardim das Delícias Elétricas começa nos levando para um outro lugar, a partir de um círculo cinza centralizado na tela, que se assemelha à uma espécie de vórtex, ou a algo que veríamos em um microscópio, algo que se engole em si mesmo, e nós somos engolidos junto. Somos, então, transportados para esse novo ambiente, agora absolutamente colorido, e com sons que remetem a filmes de ficção científica: zumbidos de nave, propulsão, ruídos mecânicos de bips, é como se estivéssemos diante de uma explosão cósmica, ou de uma tela LCD quebrada. 

A experiência sensorial das cores gera uma dor de cabeça quase como em Lux Æterna, de Gaspar Noé, ao ponto de sermos tentados a desviar os olhos da tela. No final das contas, não é um filme convidativo, é quase um filme que não quer ser visto, mas sentido, um filme que quer chegar em nós a partir dessa grande sensação de desconforto. 

Não apenas no título, mas vemos Bosch em vários momentos, nas três telas que se dividem verticalmente, no verde da mata que ocupa o fundo da tela, ainda que quase escondido. Afinal, o que tais cores e texturas estão fazendo senão brincando e se experimentando, assim como as figuras do pintor flamengo? 

O curta pulsa o tempo inteiro, criando um sensação de frenesi cyber-sinestésico. Não apenas as cores, mas os formatos também mudam. Ele se desloca pela tela, sempre de forma ritmada, como uma dança elétrica. Tiramos disso algo absolutamente subjetivo, alguns planos assemelham-se mesmo a imagens do método Rorschach, de modo que o nosso olhar constrói bastante do que o filme diz, mesmo que não haja nele palavras.

Filme 3: Casca

Somos de onde viemos. Será? Pertencemos a esse lugar? Um lugar de onde saímos de dentro, de onde a casca foi irrompida.

Em meio a cores vibrantes, testemunhamos uma viagem iniciada a partir de uma semente arrancada de sua origem. Uma tempestade a lança para o outro lado do oceano, longe da ilha que a gerou, onde se destacam sobretudo as raízes — um gesto violento do acaso, mas também uma metáfora do deslocamento. Nesse novo espaço, absolutamente hostil, o filme medita sobre a origem e o que chamamos de lar: a possibilidade de permanecer inteiro onde quer que se esteja, de aceitar o próprio ser como suficiente.

O curta pulsa vida. Cores vibrantes se transformam e se ressignificam, como na cena inicial, quando o amarelo solar do céu se transforma no amarelo do mar e das ondas. É como estar dentro de uma das metamorfoses de Ovídio: transformações encadeiam-se em outras transformações, e o mundo físico, tal como a vida humana, está em constante mudança. Aquilo que vem da terra, após a metamorfose, nunca mais retorna ao estado original — reside aí a fragilidade humana, a mesma fragilidade do nosso herói, que brota da semente do caju.

A partir dessa viagem inicial indesejada, inicia-se uma nova jornada rumo ao pertencimento. O roxo que envolve nosso humanoide cajuesco se destoa completamente do ambiente ao seu redor. Fora de sua casca e desprotegido, precisa descobrir uma forma de fazer parte. Como agir em meio a tanta alteridade? Uma possível resposta é a partir da troca e da abertura: permitir ser contaminado e, ao mesmo tempo, contaminar.

O filme nos convida a habitar o espaço da semente e da casca, a sair, a sentir o deslocamento e a transformação, nos chama para experimentar o mundo em sua alteridade, aceitando a fragilidade e a potência da vida em suas constantes metamorfoses.

Filme 4: Cherry, Passion Fruit

A ausência pode ser tão presente que chega a se tornar fantasma: assombra, está na sombra, em todos os lugares porque não está lá. Essa presença invisível permeia Cherry, Passion Fruit. Desde a própria materialidade do filme, feito com carvão, a atmosfera criada é fantasmagórica, espectral.

O tempo todo escutamos um endereçamento, para quem? Uma única voz se pronuncia, marcada por dores, buscando comunicação. Memórias e tentativas se entrelaçam na tela em preto e branco, onde a pessoa que seguimos quase se funde à paisagem.

“Escuto vozes.” O filme traz consigo a expectativa e a espera; entre caminhos e rachaduras, estamos sempre à margem dessa expectativa. Desde o início, percebe-se que não se trata de uma história a ser concluída: é um déjà-vu, um recorte, que não quer explicar, mas chamar aquele outro que nunca se apresenta.

Na primeira parte, cercados pela natureza, somos envolvidos por uma experiência sensorial que mistura proximidade e estranhamento, desconcerto ante ao lugar ocupado pelo personagem. Num segundo momento, ao entrar numa casa modernista, apática, com um paulistano na sala, o sentimento de dor e não aceitação se intensifica. A figura humana, até então vista distante, aparece em close e mais nítida: a proximidade humaniza e intensifica a experiência emocional, vemos seus olhos, sua dor, terminamos com esse sentimento amargo, com essa estranheza.

Filme 5: Safo

No papel, no vidro e no cochicho, é assim que Safo, obra de Rosana Urbes, chega até nós. No papel, o poema é imortalizado, mas também escondido, fragmentado em citações perdidas, assim foi imortalizada a poeta da ilha de Lesbos. No papel, nas plantas, na sobreposição dos dois, que antes já fizeram parte de um só, o filme os unifica mais uma vez.

Absolutamente feminino, sensível, o curta canta os hinos, a beleza da natureza, das musas descalças, entregues. Com diferentes estilos de desenho que se atravessam em fluxo lírico, Safo nos envolve, nos abraça com seus braços de rosa. A sensibilidade cria aconchego; a narrativa se desdobra como uma canção de ninar, levando-nos a um espaço quase onírico, sem tensão, onde podemos experienciar a organicidade que invade cada plano.

A narrativa se move como uma dança no papel. “Encontra tua própria voz”, escutamos, mas também vemos: a animação traz à luz uma poesia que persiste através de outras vozes. Pode parecer rudimentar, hoje em dia, fazer animações de forma mais analógica, mas aqui isso parece mais verdadeiro, mais próximo da essência da essência poética.

O filme nos mostra que o cinema pode ser delicado e poderoso ao mesmo tempo. Ele nos convida a sentir a poesia em movimento, a ouvir vozes antigas e presentes, e a nos deixar envolver por essa dança de papel, cor e som, onde cada traço se torna uma ponte entre passado e presente, entre o poema e nós.

Filme 6: Bela Mulher Morta

A Bela Mulher Morta reúne 300 imagens de mulheres mortas, recortadas de uma série policial alemã. Não há narrativa, apenas a repetição incessante de trechos curtos que exibem corpos femininos sem vida. Vemos-as de olhos abertos e fechados, no quarto, na sala, no mato, ensanguentadas, descabeladas … A insistência é atordoante e, justamente por isso, nos leva a questionar tal escolha.

No início, os cenários peculiares e a estética de certas composições lembram algo de lynchiano, uma mistura de familiaridade suburbana, atmosfera de sonho e estranheza perturbadora. Em pouco tempo percebemos que não sairemos desse mesmo lugar, todas as mulheres tornam-se então a mesma mulher. A repetição produz uma espécie de anestesia: deixamos de reagir, tornamo-nos insensíveis, ecoa Hannah Arendt, a banalidade do mal – uma normalização silenciosa, que permite que a violência contra mulheres seja consumida digerida uma vez após a outra se naturalizando.

Com o filme, refletimos quanto aos limites do cinema e, também, quanto ao que consumimos como entretenimento. Poderia ser um compilado no YouTube, mas é um curta-metragem, ao ser, então, chamado de cinema, adquire outra potência e com ela traz luz ao absurdo da normalização dessas imagens. A repetição escancara a dimensão quase fetichista dessas narrativas.

Mais do que um exercício de montagem, A Bela Mulheres Morta funciona como um espelho que incomoda, no qual não queremos nos ver. Compilando o que nos acostumamos a ver, o filme expõe os sintomas de uma cultura que transforma a morte e a dor feminina em espetáculo.

Filme 7: Echoes of a Wet Finger

De um encontro, nasce a mudança. Em uma casa de aparência moderna, em frente à TV, vemos pela primeira vez uma personagem meio humana, meio animalesca, com excrescências e extensões que se fundem a texturas quase vegetais e elementos orgânico-viscosos.

O encontro com a lagartixa a desperta, como se a chamasse para uma aventura, iniciando uma espécie de jogo, que conversa com a estética do filme, que se assemelha algo próximo de The Sims, mas sendo aqui um The Sims que tomou uma substância.

De Echoes para Geckos, desbloqueamos outro nível, um transe. A mutação reina, dissolvendo e desencadeando crises. Quase todos os elementos contribuem para um sentimento incômodo, distante, por vezes repugnante. Frente ao espelho, ela se vê infectada por esses elementos que a cerca. As proporções nos confundem, o inseto gigante ou, será que ela é minúscula, seria um absurdismo ou uma metáfora? Não obteremos respostas, apenas mudanças constantes que parecem emergir do desespero. “É hora de assumir uma nova forma.” É assim que o filme se desenrola, aceitando a transformação, o habitar o estranho, permitir que a experiência nos desconcerte e nos transforme junto com a personagem. Geckos não busca conforto, mas o êxtase de observar a metamorfose em sua forma mais crua e intensa.

Quando o bizarro vira comum sobre Internacional 9 – A Parada dos Monstros

por Caique Lima

Ao assistir cinema de gênero contemporâneo, é importante lembrar que exercícios bizarros praticamente nasceram junto com a forma de arte – e podem ser datados há mais de um século atrás, com Uma Noite Terrível de George Méliès em 1896 – e evoluíram não só em forma, mas em conteúdo. É isso que a mostra Internacional A Parada dos Monstros busca representar com suas narrativas modernas bem adequadas ao zeitgeist, que variam do luto que leva um casal idoso a adotar bebês reborn a criaturas sobrenaturais que se alimentam de lixo, trazendo um comentário ecológico incomum ao gênero de terror.

É bem condizente às suas ambições narrativas que o filme tcheco  Maternando se inicie com a cena de um passarinho alimentando seu filhote. O curta segue um casal idoso que se apega muito à nova adição da família – um bebê reborn – pelas dificuldades que tem em lidar com a ausência de seu filho. Os olhares de julgamento que cercam a mãe se intercalam com passagens surreais onde ela se une à outras mulheres grávidas em danças no meio da floresta.

A seguir, o Indonésio Sammi, Que Consegue Separar suas Partes do Corpo compartilha mais do que o título com outro longa contemporâneo do sudeste asiático, Tio Boonmee que pode recordar das suas vidas passadas. O projeto segue a mãe do jovem Sammi em busca dos órgãos que ele, de forma altruísta, distribuiu a outras pessoas necessitadas em vida. Existe um sentimento de luto atrelado à espiritualidade muito único aqui, e as escolhas estéticas e formato episódico acompanham perfeitamente.

O espanhol O Sangue entende muito bem a juventude com uma narrativa satírica que retrata a forma como o acontecimento de um jovem chorando sangue seria interpretado em um contexto real permeada com toda seriedade. Se ancorando na inteligência de seu texto, o curta de apenas 12 minutos ainda possui espaço para explorar uma fotografia estática que acompanha a pacatez da pequena cidade mesmo após o milagre mudar a vida do garoto no centro de tudo.

Cais de Sisowath, curta francês que se passa em um cais cambojano homônimo ao título, segue um casal ansioso para seu primeiro encontro até que a garota se transforma em uma criatura sobrenatural após um encontro com uma bruxa. Essa criatura consome o lixo do cais, e está fadada a se alimentar do sangue de outras pessoas para sobreviver, subsequentemente as infectando e mantendo o espírito do monstro vivo. O curta mescla animação com planos de fundo reais e cria uma estética bem condizente às ideias que quer passar sobre terror ecológico. 

O último curta da sessão, o húngaro O Espetáculo, segue um garoto com um poder anormal: ele levita quando exposto à luz. Uma equipe de filmagem é chamada para registrar o fenômeno, mas os nervos do garoto o impedem de replicar seus poderes em frente às câmeras. É um filme que sabe muito bem demonstrar a força da liberdade das suas ambientações externas e retrata bem o domínio que as redes de comunicação de massa têm sobre a população.

Em suma, todos os projetos demonstram entendimento da força do cinema de gênero como comentário social e evocam narrativas específicas às vivências de seus idealizadores, seja nas referências pessoais de cada um ou em histórias intrínsecas a cada país. A pluralidade de abordagens estéticas apenas enriquece a experiência da sessão e escancara a importância de explorar o cinema do mundo todo, em especial quando se trata de exercícios bizarros como o desta mostra.

O cinema contra a indiferença sobre Girassóis, de Jessica Linhares e Miguel Chaves

por Caio Domingos 

Girassóis, de Jéssica Linhares e Michael Chaves, é um daqueles filmes que dizem muito mostrando pouco. Inspirado na morte real de um fiscal de loja em Recife, cujo corpo foi escondido para não interromper o funcionamento do estabelecimento, o curta parte de uma violência banalizada para expor a corrosão da vida pelo trabalho. A força dessa narrativa já foi reconhecida: venceu o Prêmio Canal Brasil de Melhor Curta-metragem do 14º Olhar de Cinema, premiação essa que confirma o alcance de um filme que fala a partir das margens, mas reverbera no centro da experiência coletiva.

No enredo, acompanhamos José Carlos e Glória, um casal de trabalhadores que habitam um espaço que já não cabe corpo, afeto ou descanso: vivem em um lar que se converteu em dormitório, onde o encontro é substituído por revezamento, e a convivência se reduz a corridas, leituras apressadas e refeições frias. É a doméstica sensação de existir sem se reconhecer, de dividir o mesmo teto sem nunca partilhar o tempo. 

A fotografia, assinada pelo também diretor Miguel Chaves, intensifica essa experiência ao alternar enquadramentos encarcerados e planos em parte vazios, metáforas visuais da alma fatigada dos personagens. A câmera se curva como quem acompanha os corpos resignados, mas sem perder a força da denúncia. Onde se esperaria calor, o olhar encontra ausência; onde se sonharia um sol, surgem girassóis que não têm tempo para buscá-lo. A montagem de Vinicius Nascimento reforça essa opressão: acelera e interrompe, alterna longos trechos de labuta com raros instantes de lazer, criando uma cadência que nos faz sentir na pele a respiração curta de vidas sugadas pela produtividade.

Girassóis representa o cinema contra a indiferença. Ele recusa o apagamento e individualiza aquilo que a lógica capitalista insiste em transformar em mera estatística: a exaustão anônima de vidas consumidas pelo trabalho. Cada gesto, cada silêncio, cada imagem evidencia que a verdadeira história é a que transcende a tela e retorna ao espectador. No fim, o curta nos lembra com delicadeza e brutalidade que a vida não pode ser reduzida ao expediente. O esforço para ganhar a vida não pode, jamais, nos roubar a vida que ainda temos.

O cinema como arma decolonial sobre A Dita Filha de Claudia Wonder, Picumã e Escorpiônikas – Contramanifesto

por Bruny Derotzi

Uma das maiores discussões dentro do pensamento decolonial é a necessidade de entender e combater as ficções coloniais que estão impregnadas em nossa sociedade.  Uma das ferramentas mais utilizadas para isso é a criação de novas ficções que questionem, tensionem e multipliquem novos imaginários. É possível ver esse movimento na sessão da Mostra Brasil chamada Rosas e Rosários, onde estão presentes curtas que desconstroem e/ou questionam as ficções criadas em volta do universo trans.

O filme que melhor ilustra isso é o curta Escorpiônikas – Contramanifesto, de Bruna Kury, Nisha Platzer e Matheus Mello. Esse documentário performático fala sobre as invenções coloniais em volta do sexo, prostituição, raça e gênero e como podem servir como uma arapuca contra o próprio cis-tema. “É preciso desficcionalizar ou criar novas ficções” diz Bruna Kury enquanto num momento do filme tem uma faca inserida no ânus e rasga bandeiras de países colonizadores com a arma.

O mesmo movimento acontece no curta Picumã, de Sladká Meduza. O filme ficcional conta a história de três travestis que são ligadas por um picumã – cabelo no dialeto Pajubá. Essa ligação que, inicialmente, existe por motivos individualistas, acaba se transformando numa rede onde a união faz a força. São as novas ficções criando imaginários onde travestis unidas jamais serão vencidas.

Já o curta A Dita Filha de Claudia Wonder, de Wallie Ruy, é um documentário que borra o gênero ao se transformar numa auto-ficção do que foi e do que poderia ser. Ele inicia com a diretora (que também protagoniza), contando sobre quando foi visitar o túmulo da Claudia Wonder, uma icônica artista travesti, e viu que seu túmulo tinha o nome que ela tinha renegado. A partir disso, o filme borra o real e o ficcional para discutir o direito à própria identidade e o que constitui o significado de família.

Uma reflexão que levo comigo todo dia dentro desse ofício do audiovisual, é o de lembrar que o cinema é uma invenção colonial que, por muitas vezes, foi usada para fins destrutivos. Não é por isso que devemos deixar de criar, pois é a partir dele que podemos construir novas ficções. E nesta sessão, nos foi dado três exemplos de como é possível destruir ficções coloniais usando as mesmas armas que utilizam contra nós.

Índice Crítica Curta 2025

Acompanhe aqui as críticas sobre a programação de 2025 do Kinoforum – Festival Internacional de Curtas de São Paulo!

Neste ano, a oficina contou com mentoria de Isabel Wittmann

Textos:

Paixão Que Fere Sobre O Atirador de Facas sobre A Mulher do Atirador de Facas, de Nelson Villas Boas por Rafaela Morais

Mulheres trans no topo da narrativa sobre Americana, de Agarb Rocha por Rhero Silva

As estrelas brilham até o apagamento sobre Por Fim Ela Mata Todo Mundo, de Céline Novel por Gil Robin

Nos Pequenos Detalhes sobre Mãe da Manhã, de Clara Trevisan Farret por Manu Couto

Um Olhar Delicado Sobre A Beleza Do Ser Incompreendido sobre Kabuki, de Tiago Minamisawa por Lucas Detoni

O vexaminoso espetáculo do eu sobre Mostra Brasil 6 – Ame e Dê Vexame por Sofia Carlos

O incômodo do som da batida no aquário sobre Amarela, de André Hayato Saito por Maria Silveira

República Dissolvida em Tela sobre República, de Grace Passô por Ana Peixe

Subjetividade periférica em imagens: um retrato geracional sobre Rolês, de Nathalia Cristina, Matheus Alcântara, Fernanda Lima e Madson Pomponet por Aline Fátima

Diretoras mulheres e suas histórias de meninas sobre  Minha mãe é uma vaca e Akababuru: Expressão de Espanto por Tainá Bezerril

A memória em festa e em luto em O Rio de Janeiro Continua Lindo, de Felipe Casanova por Erick Aragão Pradela

Por mais mirabolante que seja o medo, o amor persiste: uma crítica da distopia cearense afetiva de O Medo Tá Foda, de Esaú Pereira por Estefane Araújo Barguil

sobre Fronteriza, de Rosa Caldeira e Nay Mendl por Maria Eudóxia Carvalho

O cinema e o ambiente como espaço ativo de memória sobre  Video Connection, de Sérgio Rizzo por Isadora Quaglia

 O cinema à beira do abismo sobre Mostra Limite 2 – Vereda Tropical por Clara Grosche

Quando o bizarro vira comum sobre Internacional 9 – A Parada dos Monstros por Caique Lima

O cinema contra a indiferença sobre Girassóis, de Jessica Linhares e Miguel Chaves por Caio Domingos 

O cinema como arma decolonial sobre A Dita Filha de Claudia Wonder, Picumã e Escorpiônikas – Contramanifesto por Bruny Derotzi

Uma virtuosa homenagem ao cinema de David Lynch sobre Malmequer por Lucas Detoni

Cinema com significativa importância cultural sobre Mostra Brasil 1 – Memórias e Metalinguagens por Erick Aragão Pradela

Mamá, yo quiero mamá sobre Feiura Comovente por Luan Souza

No futuro só tem sapatão sobre Meu Pedaço de Mandioca por Nina Neves

No futuro só tem sapatão sobre Meu Pedaço de Mandioca de Raíssa Castor

por Nina Neves

Vez em quando desejo ser fumante só pela “licença poética” que permite escapulir de uma situação social e ficar num cantinho parada pensando na vida. O monólogo incitante de Meu Pedaço de Mandioca é um momento exatamente assim: Rita, brilhantemente interpretada por Moira Albuquerque, levanta de uma mesa de bar com amigos, pede um cigarro a um desconhecido e compartilha conosco os pensamentos mais profundos sobre seu pedaço favorito de mandioca frita (aqueles pequenos e bem torradinhos, caso tenha batido a curiosidade aí). Rita reflete com perturbada intensidade “o que isso quer dizer sobre mim?”, mas antes que o devaneio chegue a alguma conclusão, ela tem a visão encantadora de uma porta-bandeiras que dança na rua em meio ao brilho de cores e purpurina. Afinal, Rita saiu da mesa pra não fumar, o cigarro sequer é aceso, mas a chispa do seu pensamento questionador e onírico dá o tom ao filme. 

Quando retorna ao bar, ela encontra personagens que vão mudar sua vida – inclusive adicionando literalmente mais cor às cenas de forma progressiva, um dos méritos da direção de arte de Flora Suzuki, que inclui outras sutilezas e gracinhas gostosas de descobrir a cada quadro. Primeiro, Rita se surpreende com um cozinheiro drag queen, então conhece Laila, a porta-bandeira do seu delírio que é, na verdade, a garçonete do bar. Esse encontro provoca um incêndio (simbólico e literal!), depois do qual Laila explica tantos detalhes sobre a mandioca feita ali, que vamos entendendo que talvez não seja bem de mandioca que ela está falando… Rita agradece – pela aula? pelo que está por vir? – e a beija. Por fim, Rita se depara com uma mulher com cabeça de sapo que a convida para uma pista de dança onde personagens queer a recebem com alegria. 

O filme é feito de alucinações e ludicidade bastante simbólicas, embaladas em cenas deliciosas de ver e ouvir. Os primeiros planos já evidenciam a energia empregada na sensorialidade: ouvimos no detalhe o corte da mandioca, sua fritura, sons do que acontece em volta – tudo com uma trilha gostosa no volume certinho para ser notada sem atrapalhar nenhuma das demais sensações. O mesmo pode ser dito sobre os planos fechados em detalhes como gotas de suor, objetos da cozinha, um incenso espetado na mandioca. Já o zoom lento no rosto de Moira durante o monólogo aproxima e cria cumplicidade com o espectador. Sua atuação sensível dá ainda mais sentido ao texto doidinho e divertido de Raíssa Castor, que também assina a excelente direção. 

São muitas as camadas simbólicas cifradas nos detalhes. O som de brejo no momento do olhar trocado com uma comensal sapatona no bar, Rita encharcada após o incêndio do desejo, os movimentos repetitivos de quem come no bar, condensando a ideia de normatividade – aquelas “leis” não ditas nem acordadas sob as quais acabamos vivendo em sociedade. E por fim a dança da aceitação de si, esse baile onde Rita é vista e celebrada. 

A mandioca, muitas vezes considerada um símbolo fálico, aqui é picadinha, frita, temperada e digerida, se tornando um totem lésbico de libertação. Assim, o filme condensa magistralmente a proposta da Mostra Fora da Ordem, representando o que há de mais interessante nos “desejos que zombam do falo”. 

Com suas imagens improváveis e saborosas, Meu Pedaço de Mandioca é de dar água na boca – da comida ao beijo.