por Clara Grosche
Sobre a Mostra Limite 2:
Seguindo o legado de Mário Peixoto, a Mostra Limite 2 apresenta filmes que não se reduzem a histórias ou fórmulas, mas se afirmam como experiências livres e inventivas, que de fato nos conduzem aos limites do ofício cinematográfico. Absolutamente originais, os curtas exibidos não apenas possuem uma ousadia formal, mas também uma coesão na ambição e na entrega à linguagem sensorial. Quase tendo mais sinestesia que narrativa, estes atravessamentos nos levam a viagens metafísicas que enriquecem o cinema experimental com um destemor avant-garde.
Filme 1: Espero Que Não Se Importe
Antigamente é muito dentro”, disse Nathália Lemos, diretora, antes da estreia de seu curta. E começamos dentro: dentro de um apartamento que não se explica, mas cujo mistério nos atiça. Na primeira imagem, das mais de 200 que compõem o filme, surgem dois caminhos; nas próximas, encontramos duas pessoas e três peixinhos.
A estética do pinhole cria uma atmosfera onírica, próxima da fantasmagoria, que nos envolve em uma história que se dissolve em haletos de prata. Algo que remete bastante às fotografias de Francesca Woodman, que vai para um caminho surrealista e conceitual a partir do uso de artifícios técnicos como a longa velocidade do obturador e a dupla exposição. O resultado são imagens borradas, gerando a sensação de movimento e urgência. Como nos sonhos, no filme não há espaço ou tempo definidos. Os sons destoam do que vemos e nos levam a outro lugar — um lugar que não foi feito para pensar. Afinal, “outras pessoas pensam”, como indica o quadro na sala.
Antes de ouvirmos o bilhete, que termina com o título do filme, “Espero que não se importe”, vemos a personagem em claro desconforto na cama, com movimentos disformes e quebrados. É um gesto que ecoa a própria estética do filme: composto por fotos fixas, poderia parecer truncado, sem fluxo. Mas essa aparente fragmentação funciona. Seguindo o legado de realizadores como Chris Marker, que exploraram narrativas fotográficas fora dos tradicionais 24 frames por segundo, o filme nos mostra que é possível contar histórias fluidas mesmo em sequências aparentemente desconexas.
Do lado de fora, livre, a personagem se espalha pelo quadro. Os movimentos, antes contidos e desconfortáveis, se expandem em gestos lúdicos e improvisados, carregando a narrativa quase sozinhos. As fotos não falam, e não é preciso: é o corpo dela que narra, cria ritmo e introduz o nonsense, beber os peixinhos, entrar nesse transe, brincar com a própria lógica do filme.
O final nos leva para dentro, para a água, enquanto os peixinhos vão para fora. Do inicial incômodo sem explicação à entrega ao absurdo, a personagem emerge espelhada na água, banhada como as fotos. É um fechamento sensorial, poético e íntimo, que traduz o poder da narrativa visual e da liberdade estética que o curta propõe.
Filme 2: O Jardim das Delícias Elétricas
O Jardim das Delícias Elétricas começa nos levando para um outro lugar, a partir de um círculo cinza centralizado na tela, que se assemelha à uma espécie de vórtex, ou a algo que veríamos em um microscópio, algo que se engole em si mesmo, e nós somos engolidos junto. Somos, então, transportados para esse novo ambiente, agora absolutamente colorido, e com sons que remetem a filmes de ficção científica: zumbidos de nave, propulsão, ruídos mecânicos de bips, é como se estivéssemos diante de uma explosão cósmica, ou de uma tela LCD quebrada.
A experiência sensorial das cores gera uma dor de cabeça quase como em Lux Æterna, de Gaspar Noé, ao ponto de sermos tentados a desviar os olhos da tela. No final das contas, não é um filme convidativo, é quase um filme que não quer ser visto, mas sentido, um filme que quer chegar em nós a partir dessa grande sensação de desconforto.
Não apenas no título, mas vemos Bosch em vários momentos, nas três telas que se dividem verticalmente, no verde da mata que ocupa o fundo da tela, ainda que quase escondido. Afinal, o que tais cores e texturas estão fazendo senão brincando e se experimentando, assim como as figuras do pintor flamengo?
O curta pulsa o tempo inteiro, criando um sensação de frenesi cyber-sinestésico. Não apenas as cores, mas os formatos também mudam. Ele se desloca pela tela, sempre de forma ritmada, como uma dança elétrica. Tiramos disso algo absolutamente subjetivo, alguns planos assemelham-se mesmo a imagens do método Rorschach, de modo que o nosso olhar constrói bastante do que o filme diz, mesmo que não haja nele palavras.
Filme 3: Casca
Somos de onde viemos. Será? Pertencemos a esse lugar? Um lugar de onde saímos de dentro, de onde a casca foi irrompida.
Em meio a cores vibrantes, testemunhamos uma viagem iniciada a partir de uma semente arrancada de sua origem. Uma tempestade a lança para o outro lado do oceano, longe da ilha que a gerou, onde se destacam sobretudo as raízes — um gesto violento do acaso, mas também uma metáfora do deslocamento. Nesse novo espaço, absolutamente hostil, o filme medita sobre a origem e o que chamamos de lar: a possibilidade de permanecer inteiro onde quer que se esteja, de aceitar o próprio ser como suficiente.
O curta pulsa vida. Cores vibrantes se transformam e se ressignificam, como na cena inicial, quando o amarelo solar do céu se transforma no amarelo do mar e das ondas. É como estar dentro de uma das metamorfoses de Ovídio: transformações encadeiam-se em outras transformações, e o mundo físico, tal como a vida humana, está em constante mudança. Aquilo que vem da terra, após a metamorfose, nunca mais retorna ao estado original — reside aí a fragilidade humana, a mesma fragilidade do nosso herói, que brota da semente do caju.
A partir dessa viagem inicial indesejada, inicia-se uma nova jornada rumo ao pertencimento. O roxo que envolve nosso humanoide cajuesco se destoa completamente do ambiente ao seu redor. Fora de sua casca e desprotegido, precisa descobrir uma forma de fazer parte. Como agir em meio a tanta alteridade? Uma possível resposta é a partir da troca e da abertura: permitir ser contaminado e, ao mesmo tempo, contaminar.
O filme nos convida a habitar o espaço da semente e da casca, a sair, a sentir o deslocamento e a transformação, nos chama para experimentar o mundo em sua alteridade, aceitando a fragilidade e a potência da vida em suas constantes metamorfoses.
Filme 4: Cherry, Passion Fruit
A ausência pode ser tão presente que chega a se tornar fantasma: assombra, está na sombra, em todos os lugares porque não está lá. Essa presença invisível permeia Cherry, Passion Fruit. Desde a própria materialidade do filme, feito com carvão, a atmosfera criada é fantasmagórica, espectral.
O tempo todo escutamos um endereçamento, para quem? Uma única voz se pronuncia, marcada por dores, buscando comunicação. Memórias e tentativas se entrelaçam na tela em preto e branco, onde a pessoa que seguimos quase se funde à paisagem.
“Escuto vozes.” O filme traz consigo a expectativa e a espera; entre caminhos e rachaduras, estamos sempre à margem dessa expectativa. Desde o início, percebe-se que não se trata de uma história a ser concluída: é um déjà-vu, um recorte, que não quer explicar, mas chamar aquele outro que nunca se apresenta.
Na primeira parte, cercados pela natureza, somos envolvidos por uma experiência sensorial que mistura proximidade e estranhamento, desconcerto ante ao lugar ocupado pelo personagem. Num segundo momento, ao entrar numa casa modernista, apática, com um paulistano na sala, o sentimento de dor e não aceitação se intensifica. A figura humana, até então vista distante, aparece em close e mais nítida: a proximidade humaniza e intensifica a experiência emocional, vemos seus olhos, sua dor, terminamos com esse sentimento amargo, com essa estranheza.
Filme 5: Safo
No papel, no vidro e no cochicho, é assim que Safo, obra de Rosana Urbes, chega até nós. No papel, o poema é imortalizado, mas também escondido, fragmentado em citações perdidas, assim foi imortalizada a poeta da ilha de Lesbos. No papel, nas plantas, na sobreposição dos dois, que antes já fizeram parte de um só, o filme os unifica mais uma vez.
Absolutamente feminino, sensível, o curta canta os hinos, a beleza da natureza, das musas descalças, entregues. Com diferentes estilos de desenho que se atravessam em fluxo lírico, Safo nos envolve, nos abraça com seus braços de rosa. A sensibilidade cria aconchego; a narrativa se desdobra como uma canção de ninar, levando-nos a um espaço quase onírico, sem tensão, onde podemos experienciar a organicidade que invade cada plano.
A narrativa se move como uma dança no papel. “Encontra tua própria voz”, escutamos, mas também vemos: a animação traz à luz uma poesia que persiste através de outras vozes. Pode parecer rudimentar, hoje em dia, fazer animações de forma mais analógica, mas aqui isso parece mais verdadeiro, mais próximo da essência da essência poética.
O filme nos mostra que o cinema pode ser delicado e poderoso ao mesmo tempo. Ele nos convida a sentir a poesia em movimento, a ouvir vozes antigas e presentes, e a nos deixar envolver por essa dança de papel, cor e som, onde cada traço se torna uma ponte entre passado e presente, entre o poema e nós.
Filme 6: Bela Mulher Morta
A Bela Mulher Morta reúne 300 imagens de mulheres mortas, recortadas de uma série policial alemã. Não há narrativa, apenas a repetição incessante de trechos curtos que exibem corpos femininos sem vida. Vemos-as de olhos abertos e fechados, no quarto, na sala, no mato, ensanguentadas, descabeladas … A insistência é atordoante e, justamente por isso, nos leva a questionar tal escolha.
No início, os cenários peculiares e a estética de certas composições lembram algo de lynchiano, uma mistura de familiaridade suburbana, atmosfera de sonho e estranheza perturbadora. Em pouco tempo percebemos que não sairemos desse mesmo lugar, todas as mulheres tornam-se então a mesma mulher. A repetição produz uma espécie de anestesia: deixamos de reagir, tornamo-nos insensíveis, ecoa Hannah Arendt, a banalidade do mal – uma normalização silenciosa, que permite que a violência contra mulheres seja consumida digerida uma vez após a outra se naturalizando.
Com o filme, refletimos quanto aos limites do cinema e, também, quanto ao que consumimos como entretenimento. Poderia ser um compilado no YouTube, mas é um curta-metragem, ao ser, então, chamado de cinema, adquire outra potência e com ela traz luz ao absurdo da normalização dessas imagens. A repetição escancara a dimensão quase fetichista dessas narrativas.
Mais do que um exercício de montagem, A Bela Mulheres Morta funciona como um espelho que incomoda, no qual não queremos nos ver. Compilando o que nos acostumamos a ver, o filme expõe os sintomas de uma cultura que transforma a morte e a dor feminina em espetáculo.
Filme 7: Echoes of a Wet Finger
De um encontro, nasce a mudança. Em uma casa de aparência moderna, em frente à TV, vemos pela primeira vez uma personagem meio humana, meio animalesca, com excrescências e extensões que se fundem a texturas quase vegetais e elementos orgânico-viscosos.
O encontro com a lagartixa a desperta, como se a chamasse para uma aventura, iniciando uma espécie de jogo, que conversa com a estética do filme, que se assemelha algo próximo de The Sims, mas sendo aqui um The Sims que tomou uma substância.
De Echoes para Geckos, desbloqueamos outro nível, um transe. A mutação reina, dissolvendo e desencadeando crises. Quase todos os elementos contribuem para um sentimento incômodo, distante, por vezes repugnante. Frente ao espelho, ela se vê infectada por esses elementos que a cerca. As proporções nos confundem, o inseto gigante ou, será que ela é minúscula, seria um absurdismo ou uma metáfora? Não obteremos respostas, apenas mudanças constantes que parecem emergir do desespero. “É hora de assumir uma nova forma.” É assim que o filme se desenrola, aceitando a transformação, o habitar o estranho, permitir que a experiência nos desconcerte e nos transforme junto com a personagem. Geckos não busca conforto, mas o êxtase de observar a metamorfose em sua forma mais crua e intensa.