A percepção e a quebra de expectativas sobre III, dirigido por Salomé Villeneuve

por André Quental Sanchez

 

O curta “III” de Salomé Villeneuve lembra o livro “O Senhor das Moscas”, de William Golding, em ambas as produções temos o retrato de uma violência ocasionada por medo e raiva de crianças. Tanto Golding quanto Salomé distorcem a percepção do público sobre a imagem de uma criança, inserindo comportamentos que destoam do senso comum como comportamentos animalescos, assim, o espectador fica em choque com a quebra de expectativas e é gerado uma tensão.

O curta apresenta uma direção de atores eficaz em um retrato de três irmãos que entram em um conflito violento após um conflito de interesses. Com somente 3 atores e poucos diálogos, a força do projeto se dá por gestos, respirações e olhares, na medida que as crianças mal se comunicam entre si e agem como animais.

Elliot Desjardins Gauthier como Saul é o que apresenta maior destaque por conta de suas expressões, em um momento presenciamos suas escápulas subindo e descendo de raiva e seu olhar de raiva após bater em uma árvore, assim, sentimos pena e ao mesmo tempo um estranhamento.

A floresta amedrontadora, a fotografia com tons escuros, a imensidão do mundo criado, o isolamento de seus personagens e a direção de arte auxiliam na criação de um estranhamento e um enriquecimento do projeto. Um exemplo é a constatação que a irmã mais velha é a única totalmente vestida, o que a coloca na posição de mãe do mesmo modo que Wendy em “Peter Pan” de J.M.Barrie.

No momento que Saul persegue sua irmã para matá-la, o público coloca em xeque a construção social sobre o que uma criança deve ser, fazer, etc. O retrato violento e visceral presente no curta quebra todas as expectativas e abre lugar ao medo e o desconforto.

Golding em seu livro usa um paralelo semelhante, ao contrastar uma imagem do senso comum e enraizada em seu público, o projeto ganha força e atrai a atenção por conta da quebra de expectativas, fazendo o público refletir sobre as percepções que temos do mundo.

 

Bora, Big! sobre Big Bang, dirigido por Carlos Segundo

por Boni Zanatta  

Para os corpos marginalizados, o não-percebimento é sentido na pele. É uma tensão, um ruído metálico grave que cresce até não se aguentar e estourar – como é a trilha sonora de  Big Bang, cujo protagonista Chico (Giovanni Venturini) trabalha consertando fornos. Para  tanto, entra de corpo inteiro em suas entranhas de metal. Chico vivencia uma exclusão social por conta de seu nanismo. Segundo ele mesmo, ele ganha a vida estragando tudo que pode caber dentro; e não é bem pago por isso. 

A direção do curta, de Carlos Segundo, trabalha a ideia de perspectiva e ponto de vista. Onde começa e termina cada imagem, cada som, é ditado por Chico e por sua percepção do mundo. Os personagens com quem interage no começo do curta têm suas cabeças fora de quadro, enquanto Chico está inteiro: isso, não só pelo distanciamento das alturas, mas pelo fato de que eles não estão, de fato, inseridos ou interessados na vida do protagonista. A despeito deles, a câmera toma Chico como seu ponto de partida, e o registra na altura do olho. Como se dissesse: estamos em momento de contar esta história. 

A ânsia de Chico para se libertar da realidade em que está trancado remonta a Sideral, o curta anterior do diretor – sendo Big Bang o segundo desta chamada Trilogia do Espaço, sobre as explosões infinitas que fazem morada na ponta do nariz. E que ressoam com as explosões de quem recebe estes filmes; Na mostra dos Favoritos da Crítica do Curta  

Kinoforum, ‘Big Bang’, o último da sessão, demorou a começar. Houve burburinho na sala. A princípios de começar o filme, uma mulher grita: “bora, Big!”, chamando o filme como se  fosse um conhecido, a fim de prosear. E na tela, gigantesca, assistiu-se à explosão

extasiada que encerra o filme. Que é o big bang de Chico. É a revogação do direito de ser visto, de mandar tudo à merda, e de explodir: apesar da brutalidade dos dias, em que tudo arde e comprime, feito uma fornalha. Como a música final: This is life. It’s not rock ‘n roll (but I like it).

 

Acima de nós, só Deus e a roda da frente sobre Ramal, dirigido por Higor Gomes

Por Felipe Rodrigues da Costa 

 

Em um vale, numa tarde ensolarada e mágica, jovens empinam suas motocicletas como se o tempo não andasse. Em “Ramal”, Higor Gomes utiliza uma forma naturalista para mostrar a magia e a sacralidade do “grau”, o ato de empinar suas motocicletas. Com garotos ocupando e transformando um viaduto periférico no interior de Minas Gerais, o tendo como um santuário. 

Com uma fotografia expansiva e grandiosa, Higor Gomes constrói uma relação de comunidade. A fotografia começa com planos individuais, como por exemplo, as primeiras cenas que focam em apenas um personagem no enquadramento e depois, focam em planos conjuntos, enquadrando o grupo de forma majoritária. Planos de estabelecimento também são comuns, mostrando a importância da localidade. 

O filme traz uma grande relação de um mundo real e uma realidade alternativa, invocada por aqueles que trabalham o dobro. Os motoqueiros abrem um portal para congelar o tempo e desfrutar uma pequena fração do presente. O grupo vive um momento hedonista.

Através dos diálogos e trilhas sonora, percebe-se uma realidade crua e sensível, que ganha um grande ar poético com os elementos oníricos abordados, desde objetos, como uma “luva mágica” usada por um dos motoqueiros, quanto um portal aberto pelo grupo, com a ideia de parar o tempo. O ideal de ocupar e realizar um “ritual” para o tempo congelar e poder desfrutar de um lazer de interesse mútuo, traz um grande senso de comunidade e abre novos caminhos para um sonho coletivo, a visibilidade em meio a grandes montanhas.

As motocicletas deixam de ser apenas um meio de transporte e são tidas como verdadeiras parceiras de cada um dos motociclistas, às tendo como um objeto sacro e vivo, além de algo provedor de lazer, oportunidades e pertencimento. 

Em um mundo onde dois trabalhos ocupam todo o repouso, realizar uma manobra e chegar o mais alto possível com o pneu, é o que importa em uma realidade de presente infinito. 

 

Olhar os ecos sobre Espectro restauración, dirigido por Felippe Mussel

por Barbara Bello

Quando falamos em metade de um bioma afetado por chamas, falamos em morte. Especificamente, a que pretende a desaparição. Lembro de Vital Farias cantando sobre a floresta: o que se corta em segundos gasta tempo pra vingar. Realizado em meio a um incêndio no Pantanal, Espectro Restauración (2022), de Felippe Mussel, intercepta a rapidez do fogo examinando-o a partir do som. Enquanto os passos do progresso avançam emudecendo, olhar para os ecos da floresta é colocar-se em posição de sentir e lembrar o que se perde.

Um espectrograma atravessa a tela ao meio deixando rastros de uma violência extrema. Sua audiovisualidade convoca no corpo imagens tão incapturáveis quanto inescapáveis. Um incêndio como esse é obliteração e, assim, procurar modos de registrá-lo é dificultar sua efetivação. Não há imagem que alcance, mas precisamos delas para pensar. No espectrograma, o azul sonoro de muitas vozes vai se tornando inteiramente amarelo conforme o incêndio se aproxima. O fogo se sobrepõe. Parece um trecho de película queimada, uma imagem cujo dado central é a ausência. Palavras-azuis são cravadas sobre o amarelo: la naturaleza tiene derecho a la restauratión. A partir daqui, opera uma inversão: o fogo cessa, voltamos à floresta vivente. Ouvi-la depois do fogo é aliviante e assustador. Tive medo diante do encontro entre a palavra restauración e a sensação de irreparabilidade. O que existe depois que o fogo passa?

A impossibilidade do silêncio absoluto faz do som, no limite, um dado incontornável. Enquanto a voz da floresta e as marcas da violência ressoam é preciso perguntar o que seria uma escuta sensível. Através de um movimento vai e volta, Espectro Restauración convoca isso. Em seu gesto de montagem, o registro se desdobra numa imagem que ecoa. Para imaginar novos possíveis, é preciso tomar dimensão das perdas e se entender ao lado dessas outras vidas.

 

Por dentro do desconforto sobre Nua por dentro do couro, dirigido por Lucas Sá

Por Larissa Armesto Snege

Com simbolismos e texturas, o curta provoca reflexão sobre sensações ambíguas. A fotografia é satisfatória ao olhar, pelos elementos alinhados e simétricos. Ideias sobre comida são ressignificadas: ora ligadas ao conforto e familiaridade, ora a imagens de faca, moscas e morte. O desconforto é gradualmente incitado, através do cenário desleixado.

Perguntando sobre inseticidas ao comprar carne, a protagonista de Gilda Nomacce revela que suas intenções e do curta não são óbvias. Cada vez mais
elementos estranhos são postos: mortes, facas e sujeira que, interpretados por uma fotografia com contrastes e de simetrias, transmitem um prazer estranho,
estimulando reflexão sobre a estranha atração e satisfação que o ser humano por vezes sente pelo grotesco.
A narrativa transita por essa ideia. A protagonista flerta com o esquisito: alimenta sua planta carnívora e limpa sujeiras sanguinárias sem repulsa. No clímax, ela sequestra uma garota através do bolinho, mutila-a e utiliza das partes para alimentar uma criatura misteriosa. Ela se delicia, esfregando-se no sangue e satisfazendo-se com os grunhidos da criatura, a sujeira, e a dor da vítima. Segundo a psicanálise, o ser humano tem um lado sombra que sente prazer com sofrimento. Mesmo que de modo inconsciente, submerso, e até negado, o prazer misto ao desconforto é parte da psicose humana.

O bolinho azul, cor escassa em alimentos na natureza, inspira a estranheza. Mas os confeitos remetem ao lúdico, trazendo inocência. E seu nome Céu Azul é quase um spoiler do final. Há humor de compensação sutil e brasileiro, um respiro em meio ao caos. “Você vende cupcake?” “Não, só bolinho”, falas que trouxeram risadas a
sala de cinema.

Um filme sensorialmente ambíguo: confortável e perturbador, como passar por um acidente e esticar o pescoço para ver mais. Leva o espectador à conexão com seu lado sombra e polêmico. Nua por dentro do couro nos provoca a despirmo-nos e entrarmos em contato com esse lado que nos torna humanos.

CRÍTICA CURTA 2022 – ÍNDICE

MOSTRA BRASIL 3 – Estranhas Relações – por Adriana Gaeta

MOSTRA BRASIL 4 – Que Futuro é Esse? – por Gabriela Zanatta

MOSTRA BRASIL 8 – Fantasiando – por Nicole Namie

Ararat, por Rodrigo Saturnino

Corpo Celeste, por Hannah Sloboda

Fantasma Neon, por Larissa Sneige

Terremoto, por Felipe Karnakis

Yabá, por Gabriela Gonçalves

 

MOSTRA INTERNACIONAL 5 – Ainda Estou Aqui – por Gustavo Guilherme

Warsha, por Lohan Lage

 

MOSTRA LATINO-AMERICANA – por Gabriel Presto

Estrelas do Deserto (Chile), por Gustavo Furtuoso

Somos Pequenas (México), por Felipe Thomaz Fabris

 

Mostra PELAS MÃOS DE PASOLINI – por Alex Brito

Mostra O EFEITO QUEER INDÍGENA – por Enzo Rugeri

CORPO: TRINCHEIRA ABERTA ENTRE O EU E O CAOS – Mostra Brasil 3: Estranhas Relações

por Adriana Gaeta

O corpo na modernidade ocidental é a marca do indivíduo, sendo o traço mais visível do sujeito. Em um mundo onde as relações sociais, econômicas e de produção são volúveis, o corpo se torna o limite entre o eu e o outro. Os filmes da Mostra Brasil 3 investigam, cada um à sua maneira, os tensionamentos criados a partir dessa percepção. A relação entre corpos fora dos padrões normativos e a nossa sociedade capacitista; o corpo fetiche como a interface entre

duas pessoas que já se amaram; o envenenamento do solo, que também nos mata; e o corpo que se desconectou das forças da natureza são alguns dos aspectos levantados pelos cineastas da mostra.

Possa Poder, de Márcio Picoli e Victor Di Marco. Victor, que também atua no filme, tem em sua trajetória trabalhos que trazem como elemento narrativo a sua própria vivência enquanto pessoa com deficiência. Esse tema é conduzido através da trajetória de três personagens, Lucas, Luiza e Bia, em busca de uma oportunidade de trabalho. As recusas que recebem são tão excludentes quanto a própria cidade, que embora inclua elementos de todas as formas geométricas possíveis em sua arquitetura, rejeita a diversidade de corpos e individualidades.

É no transbordamento dos desejos, da água que escorre do copo, dos afetos e do cotidiano compartilhado através da irmandade desses corpos dissonantes que as personagens encontram forças para resistir e se tornarem visíveis. E a beleza do filme, sua força maior, é a humanidade desses corpos, expostos além dos estigmas de heróis ou vítimas.

Corpo Celeste, de André Sobral e Renata Paschoal, tem como protagonistas Letícia e Fernando, que se reencontram em uma sala de sexo virtual, onde Letícia trabalha como camgirl. É a partir desse não lugar, onde o tempo é literalmente dinheiro, e que passa tão rápido quanto a aparição de um cometa, que eles têm em dez minutos o desafio de curarem as feridas de dez anos de um relacionamento mal resolvido. A fotografia transforma os espectadores em clientes da camgirl. Conhecemos Letícia, ou melhor, Natasha Hot, esse corpo objeto, ora fragmentado, ora superdimensionado, através de closes, sempre a contento do fetiche de quem paga. Aos poucos, Letícia emerge das lembranças, e o que sobra é o corpo memória, inteiro e tridimensional.

Nonna, de Maria Augusta V. Nunes, aborda o uso de agrotóxicos em uma pequena comunidade rural e as consequências para os moradores. A Nonna é ao mesmo tempo a avó e a menina, passado e futuro, comprometidas, em sua integridade física, pelos venenos lançados nas plantas e animais. Já adulta, Ana volta para a casa de sua infância, e para dentro de si mesma, para se reconectar a sua ancestralidade.

Os últimos dias de duas amigas, de Rodrigo Lavorato, é, de todos os filmes apresentados, o mais ousado em sua linguagem. Duas amigas decidem ir a um retiro espiritual para morrerem juntas. Lá, se reconectam às forças do feminino e se transmutam em água, árvore e ar, durante um ritual noturno. Através do realismo fantástico, e com uma sequência impactante, valorizada pela montagem, os corpos das duas amigas se metamorfoseiam diante dos nossos olhos, assumindo a dimensão de veículo do subconsciente, do imaginário e do cosmos ao (re)viver seu caráter sagrado.

O humano e o corpo são indissociáveis nas representações coletivas;  os  componentes  da  carne  são  misturados  à natureza, ao cosmos e ao outro. Em sociedades que permanecem comunitárias, o corpo é a ligação da energia coletiva, e é através dele que cada pessoa é incluída no grupo. Por outro lado, em sociedades individualistas, o corpo é um elemento que interrompe, que marca os limites da pessoa, isto é, onde começa e acaba a presença do indivíduo. Cada um dos filmes nos leva a uma zona cinzenta, onde os corpos extrapolam o plano, onde os rostos encaram o espectador, rompendo a zona segura entre ele e a tela.

São filmes que nos obrigam a participar, a olhar para corpos que, assim como nós, procuram reafirmar sua identidade.

POR UM FUTURO AOS INVISÍVEIS – Mostra Brasil 4: Que Futuro É Esse?

por Gabriela Boni Zanatta

Se foi feito um cinema a ser exibido em 2022, é ele produto de uma necessidade absoluta: o transbordamento de um grito sufocado, uma pulsão que age contra todas as sórdidas, nefastas estratégias de um desgoverno ainda vigente. Mas os ares de agora trazem a sugestão de mudança. Os olhares se voltam ao futuro, e, quando se olha ao futuro, não se pode deixar de se indagar: que amanhã pode gerar um hoje como este?

No cinema da Mostra Brasil 4, “Que futuro é esse?”, a ficção científica é uma ferramenta narrativa ressignificada para se amalgamar à realidade política atual, tornando-se indissociáveis. No universo compartilhado por este conjunto de filmes, predomina uma visão de Brasil que se utiliza da fantasia para escancarar o absurdo concreto da realidade comum: a exclusão absoluta, a carência de direitos e de afetos.

O exercício estereotipado da ficção científica ensina a tratar do futuro como algo distante. Não é essa uma noção presente aqui; este futuro é um que já chegou. É um mundo inóspito, devastado, de um tal abandono que pode levar a crer que a tragédia que lhe acometeu se tornou já um acontecimento longínquo, algo pontual e passado ao qual algo da vida sobreviveu. Em Anantara, percebe-se que não: a aniquilação do mundo não é um evento breve, não é algo que ficou no passado e tampouco é total. Uma vez que é o homem que cria a aniquilação do mundo, ela segue seus moldes e torna-se enviesada e injusta. Em Anantara, campos de força protegem as cidades intactas da toxicidade e do perigo das regiões suburbanas, onde a devastação é a norma. Campos esses que são impenetráveis, mas transparentes, permitindo a vista do outro lado. Mesmo assim, os corpos descartados à sorte da devastação não são vistos.

Esses corpos, portanto, estão em perigo, como sugere o título de Eles não vêm em paz. Aqui, a violência extrema policial e a política de morte são tamanhas que não há perspectiva de um futuro além deste presente; são tamanhas que, muitas vezes, são suportáveis apenas se relatadas por meio de uma metáfora fantasiosa.

A luta até o momento é clara: é a da sobrevivência. Uma vez conquistada a vida, parte-se então para outros embates no movimento pela visibilidade. Lua, Mar, cujo título carrega os dois polos da loucura de Ismália, carrega também dois contrapontos dentro de uma mais complexa luta por afirmação: de um lado, a conquista dos direitos dentro da lógica do opressor; do outro, a negação absoluta da sua práxis. É válida a luta para ser visto de acordo com os padrões e as determinações regidas pelos olhos daquele que não vê? A protagonista advoga que sim. Afinal, o mais enfraquecedor ao movimento de resistência é a desintegração coletiva.

Já não há uma desintegração do grupo em foco em Fantasma Neon. Ao que parece, a luta da invisibilidade sempre volta à sobrevivência. Para contar a história de trabalhadores contemporâneos num regime análogo à escravidão, não se usa uma metáfora, mas um conjunto de peças performáticas. A realidade (das comidas por aplicativo) é indigesta. O protesto é realizado em música e em dança. Fantasma Neon é um transbordamento audiovisual, uma efetividade do devir da arte que entra em cena quando as palavras já não dão conta. Não dão conta da fome, da morte, da invisibilidade pintada de neon. Aqui, não existe futuro. O fim do filme é um canto interrompido por um silêncio oco, bruto e estúpido. Irresoluto, enquanto a realidade também o for.

A invisibilidade está nas ruas, nas favelas, nas peles, nas distopias – enfim, todas as histórias aqui são de distopias. O movimento final da mostra transporta a percepção das ruas para o ambiente doméstico, onde todas as mazelas sociais se traduzem nos íntimos detalhes. A invisibilidade está também no gênero e na vida comum.

O futuro aqui é uma esfera sutil: existe o futuro de ficção científica, o foguete, por certo. Mas o maior dos futuros é aquele com o qual a personagem de Sideral sonha. O peso da rotina doméstica, as atribuições arbitrárias mas obrigatórias de gênero provocam o sonho de um outro mundo. Em um ímpeto fora de quadro, a personagem se permite a indagação (com a retórica da indignação) que atravessa todos estes cinemas: “que futuro é esse?”. E ainda: “para quem é esse futuro?”. Porque, se o presente não pertence aos invisíveis, qual tempo pertencerá? E que tempo melhor que o de agora para reivindicar esse pertencimento?

RETRATO DO BRASIL NAS ENTRELINHAS – Mostra Brasil 8: Fantasiando

por Nicole Namie

Aos olhos daqueles que todos os dias vivem a dificuldade da realidade brasileira, surpreendem-se aqueles que olham para o mundo com a inocência e esperança que existe na fantasia.

Com formatos diferentes de se contar histórias, a Mostra Brasil 8: Fantasiando apresenta curtas com abordagens em assuntos importantes e necessários. Contagiando sutilmente, pela sua maneira de contar as histórias, até aqueles que diariamente escolhem fechar os olhos aos preconceitos e violências estruturais presentes na sociedade brasileira.

A fantasia, em sua essência, existe para além da criação de uma realidade paralela desassociada das vivências cotidianas dos indivíduos. Os cinco filmes apresentados mostram em suas entrelinhas o Brasil que todos querem esquecer, mas que através da sensibilidade ao retratar os fatos, poderão abrir os olhos dos que permanecem desacordados.

Através do realismo fantástico, Blackout, de Rodrigo Grota, trata do esquecimento não só pessoal, mas de uma sociedade que se perdeu pela chegada de um meteorito. A história vai muito além de uma realidade inexistente perdida numa distopia; o meteorito serve como causalidade de uma vivência bastante presente na vida dos brasileiros. Retrata todos aqueles que tiveram suas vidas perdidas e esquecidas. Yuri busca sua mãe assim como muitos procuraram por seus parentes perdidos nas mãos da ditadura militar. O filme fala àqueles que procuram pelas memórias dos brutalmente assassinados apenas por existir – e não se encaixar no que a hegemônica parcela da sociedade espera. Fala sobre o sentimento perdido e, por caminhos experimentais, traz o espectador para a ansiedade da procura com um final incerto.

Ela Mora Logo Ali, de Fabiano Tertuliano de Barros e Rafael Rogante, faz a crítica à falta de acessibilidade e exclusão extrema dos que não se encaixam nos padrões esperados pela sociedade. Neste curta, a fantasia permanece viva dentro da vendedora ambulante que se preenche na oportunidade de conhecer e contar histórias diferentes, através do contato com uma desconhecida num ônibus, esta lhe apresenta pela primeira vez uma narrativa contada a partir de um livro. Tomada pela emoção da história, a vendedora consegue transportar o seu filho para um mundo diferente do que eles vivem. Enquanto pessoa com deficiência, o filho se vê preso às limitações criadas por uma sociedade inclusiva e facilitada apenas aos que se encontram dentro da tipicidade imposta socialmente. O analfabetismo impossibilita ainda mais o acesso dessas pessoas ao que todos deveriam ter direito. O curta traz um retrato do descaso social de uma sociedade que prioriza apenas aqueles que ocupam uma posição de poder e privilégio. As relações construídas entre os personagens tiram suas vivências do esquecimento diário político e social.

A Menina atrás do Espelho, de Iure Moreno, constrói uma narrativa de busca e encontro dentro e fora de si. Gustavo e Helena se encontram e compartilham os seus mundos, que no fundo são um só. Uma vivência que parece ser apenas pessoal revela os monstros enfrentados por todes aqueles que não se encaixam dentro dos padrões heteronormativos da sociedade. A linguagem sensibilizada permite identificação e o encontro daqueles que se sentem representados, e a aproximação dos que não querem entender, ou não enxergam vivências distantes das suas.

Inspirado nas obras do americano Edward Hopper, Selfie de Alex Sernambi traz para a discussão a solidão feminina e o encontro de uma em muitas. Usualmente acomodada na calmaria das vivências do campo, uma fotógrafa se encontra e se perde ao entrar em contato com a velocidade da cidade grande. Ela vê a si mesma numa outra. Um retrato social importante sobre reconhecimento e união feminina, mas que infelizmente não retrata as paisagens urbanas brasileiras. O formato diferenciado chama a atenção, mas a falta de conectividade com a realidade diária de histórias e espaços do Brasil distancia a identificação e criação de sentimentos compartilhados pelo ambiente.

Tamo Junto, de Pedro Conti, coloca em debate e valoriza a vivência do povo brasileiro. A animação traz consigo a história do dia-a-dia pandêmico dentro das comunidades, que por si só precisou lutar para resistir. O formato contagiante consegue levar com leveza os espectadores para perto da subjetividade da união de todos. Diante de uma situação de emergência, o descaso do governo colocou a população frente à necessidade natural do ser humano de existir coletivamente. Infelizmente não foram todos que quiseram entender e aprender com a extremidade e perigo sanitário-social causado pela pandemia. O curta consegue transportar os espectadores de fora para uma realidade que muita gente não viu.

Todos os curtas são unidos pela fantasia, conectando-se pela forma e pontualidade em não se desligar do ponto histórico-crítico presente na sociedade brasileira. Eles conectam os espectadores sem grandes impactos, e com uma construção empática contagiante. As histórias fantasiosas não existem paralelas às questões reais. São através delas que podemos visualizar de fora e compreender melhor as nossas e as outras realidades.

A RESISTÊNCIA DO PERTENCER E A DESCOBERTA DA IDENTIDADE – Mostra Latino-Americana

por Gabriel Presto

Como discutido por Glauber Rocha em seu manifesto Uma Estética da Fome (1965), havia um forte desencontro entre a América Latina representada no cinema e a América Latina como ela é de fato. Da publicação do manifesto para cá, é satisfatório perceber, a partir dos filmes que compõem a mostra, que hoje somos levados a conhecer a cultura de povos excluídos, as paisagens de regiões remotas, a partir de um cinema feito pelo próprio povo que o representa.

Do México à Argentina, em variantes do espanhol ou em línguas nativas, o cotidiano de personagens impõe-se aos espectadores através de narrativas e alegorias sofisticadas, comprovando a potência da representação dessa população invisibilizada. Pessoas, culturas, línguas e espaços que vivem sob a constante ameaça do apagamento de sua identidade e autonomia.

Somos quem somos e nos reconhecemos individualmente como seres humanos a partir da relação com o outro. Na América Latina atormentada pelos fantasmas do colonialismo etnocida, essa relação pode ser crucial para a sobrevivência de seus povos e de sua memória. Como resultado, a busca pelo pertencimento surge como a substância do conforto e dos conflitos internos vividos pelos personagens que representam a diversidade da população latino-americana retratada nos filmes.

Em Invisíveis (Colômbia), a perspectiva da criança potencializa ainda mais o descobrimento de si enquanto parte de um todo. Em um contexto social e politicamente fragmentado, Azen, um menino de 9 anos, encara sua ancestralidade ao mesmo tempo em que a existência de seu povo é colocada em risco. Além da narrativa complexa retratada com planos bem estruturados que resultam num universo mágico e psicodélico, a identidade em construção do personagem indígena é encenada em sua língua nativa. O espanhol aparece em segundo plano, na voz do locutor da rádio que anuncia as mortes causadas pelo neocolonialismo.

A exuberância da natureza e das culturas segue como um aspecto marcante do continente. O profundo azul do céu e do mar no Caribe, em Yemaya, cumpre o mesmo papel do intenso verde da mata fechada na Colômbia e do amarelo árido na paisagem mexicana, em Somos Pequenas. A natureza é palco da vida em coletividade, dos corpos sociais que nela habitam e que são ainda mais ricos que suas cores.

Estrelas do Deserto (Chile) expõe a célebre paisagem do deserto do Atacama ao abordar o sentimento de abandono, resultado da decomposição do time de futebol formado por crianças de um pobre vilarejo. Pouco a pouco, o jovem Antay vê seus amigos partindo com a família por conta da seca. Assim como a terra e a comunidade, o time de futebol vai perdendo sua prosperidade a cada abandono. Na terra abandonada, não há espaço para a vida. E onde não há vida, não há memória.

Num mundo profundamente globalizado, continentes inteiros dificilmente se libertarão completamente das grandes cicatrizes deixadas pela colonização etnocida que ainda perdura. Como uma floresta em processo de desertificação – ou como um time de futebol que não pode jogar porque depende de um corpo coletivo para entrar em ação -, a memória e a autonomia de muitos grupos é constantemente devastada. A arte e seu princípio de liberdade tornam-se uma importante ferramenta para representação de universos particulares que estão longe de estarem isolados. Se eu é o outro, quando o outro morre eu morro também.