O REGISTRO FEMININO DAS ANCESTRALIDADES INDÍGENAS – Mostra Amotara 1

por Bernardo Bruno

Na Mostra Amotara 1, o registro cinematográfico se torna ferramenta de resistência das mulheres indígenas frente às reivindicações de causas como a inclusão social e política, a demarcação de terras e o fim da violência contra suas culturas e indivíduos. “No que você vai trabalhar com as comunidades quando crescer?”, pergunta o pai e diretor Yariato Juruna à sua filha em Mandayaki e Takino. Ela responde: “com isso (aponta para câmera)”. A câmera, o tripé e o microfone – ferramentas da contemporaneidade – são protagonistas fundamentais na preservação dos saberes e relações ancestrais. Cada gesto e ação em tela tem enorme valor e destaque – a tecelagem em Tecendo Nossos Caminhos, a produção com o cipó em Cipó Tupi, o idioma em Os espíritos só entendem nosso idioma  ou a relação de pais e filhos em Mandayaki e Takino e Pará Reté. Os cinco documentários foram dirigidos ou codirigidos por mulheres indígenas e foram selecionados do catálogo da Mostra Amotara – Olhares das Mulheres Indígenas, de 2021.

Apesar da urgência temática dos discursos, a forma dos cinco documentários não se deixa afetar completamente por essa indignação. Muito pelo contrário, as obras adotam o lírico, o contemplativo, o sublime ou até o lúdico e o infantil sem nenhuma pressa. Em Mandayaki e Takino, acompanhamos o cotidiano dos filhos de Yariato Juruna e Dadyma Juruna, casal de diretores do curta. A câmera de Yariato e Dadyma desce até a altura do olhar de Mandayaki, filha mais velha de três anos, e Takino, com apenas um ano de idade. Os diretores nos inserem no patamar infantil, e presenciamos cada brincadeira entre as duas crianças com a maior atenção possível. Se Mandayaki está brincando de peneirar alimentos com um ventilador quebrado ou ajudando sua mãe a moer um alimento com um pilão, a câmera se fixa praticamente no chão acompanhando cada gesto da criança, deixando os adultos em segundo plano. Quando vemos a sua mãe, a câmera registra de baixo para cima, nos situando no olhar daquelas crianças. O filme ludicamente nos transporta diretamente para a infância e lida com a questão geracional na passagem das práticas ancestrais para os mais novos.

Os filmes da Mostra Amotara nos transportam para dentro dos acontecimentos, sociedades e vivências. Nada é visto de fora para dentro, a essência de filmes que valorizam a diversidade e a importância da representatividade de povos com quase nenhuma voz no Brasil contemporâneo.

Se Mandayaki e Takino retrata o infantil no olhar da criança, Para Reté retrata a maternidade pelo olhar de duas mães: Elsa, mãe de Patrícia Ferreira Pará Yxapy, que também é mãe e diretora do filme. O filme expande o debate sobre ancestralidade, incorporando diversos elementos místicos nos diálogos e na forma. Para Reté revela-se o filme mais contemplativo do programa. Ferreira Pará Yxapy dilata o tempo dos planos, concedendo-lhes uma característica mística e poética, mesmo que ainda muito ancorada na realidade cotidiana. Numa das cenas, a cineasta explora a produção de artefatos tradicionais por Elsa, sua mãe; em outro momento, sua filha mexe no celular assistindo O Rei Leão. Logo depois, ela é vista andando de bicicleta vestida com uma camisa da seleção argentina, enquanto um reggaeton toca no fundo. O filme retrata esses contrastes geracionais e estéticos não com uma visão conservadora ou negativa, mas sim de aceitação, identificando tudo como parte do que é ser indígena em 2021. A cineasta lança assim um olhar contemplativo que encontra a beleza em todas as situações, das mais tradicionais às mais modernas.

De tantas ideias, fica a fala de Marta Tipuici em Tecendo Nossos Caminhos, de Cledson Kanunxi, Jackson Xinunxi e a própria Marta: “No início, o Nanã é frágil, vulnerável, desmancha nas mãos. Depois de colhido e penteado, é transformado em fio forte. Com muito trabalho, sua trama se torna rígida e resistente. Assim somos nós, povos indígenas. Tecer o nosso caminho é como tecer uma rede, fio por fio, para conseguirmos construir nossas vidas e nossa resistência.” O curta alterna cenas da vivência do povo Manoki, com foco nas interações de Marta Tipuici e sua avó tecendo uma rede. Enquanto se constrói a rede, fio a fio (ou plano a plano), se entrelaça um poderoso discurso político de resistência e valorização da tradição ancestral.

As obras desta seção mostram uma qualidade ensaística muito forte, sempre abordando temas políticos, fio a fio, através de um escopo micro do cotidiano de cada povo – entre o poético, o documental e o experimental – para compor um discurso macro, ou uma rede de discursos, que engloba causas nacionais. Que a Mostra Amotara contribua com a tecelagem de uma causa maior.

 

A LÍNGUA VIVA NO CINEMAOs Espíritos só entendem o nosso idioma, de Cileuza Jemjusi, Robert Tamuxi, Valdeilson Jolasi

por Luisa Rinaldi Petrucci

“Não falamos sobre isso porque dói”. Essa frase é dita pela narradora logo no começo de Os Espíritos só entendem o nosso idioma: nela é explicitada uma dor que a maioria de nós jamais terá a dimensão. A dor à qual a narradora se refere diz respeito ao etnocídio e suas consequências catastróficas, que incluem desde a morte física até a morte cultural e espiritual. O foco do filme, no entanto, repousa na dor da perda do contato com a língua materna. O próprio título revela a tristeza advinda do progressivo desaparecimento da língua, bem como o desejo de se restabelecer o contato com a linguagem tradicional, tida como ponte para o ancestral. O documentário, de tom ensaístico, nos convida a refletir sobre a luta, o território, o sagrado e os saberes indígenas.

O filme se inicia com um poderoso plano de abertura, no qual um grupo de meninos dança: devido ao longo tempo de exposição da câmera, a imagem torna-se borrada, quase como uma materialização dos próprios espíritos em questão, criando uma poética das imagens. Somos visualmente introduzidos ao contexto: desmatamento, lavouras, luta pelo direito à terra, cotidiano, natureza x cidade, passado colonial e tradições indígenas. No entanto, é a partir da narração que somos guiados pela reflexão: a própria língua sendo a conexão com a ancestralidade. Devido ao aspecto predominantemente oral das culturas indígenas, não há registros escritos do idioma, sendo necessário recorrer aos mais antigos para a sua perpetuação. O próprio contato com a língua é o resgate da ancestralidade.

Por sua vez, o cinema e sua linguagem são abordados no filme como uma forma de registro e resistência. Isso pode ser observado na cena em que se faz uso da metalinguagem, filmando-se o próprio ato de filmar. Dessa forma, os diretores se apropriam da linguagem do cinema como uma forma de registro de sua própria linguagem. Como a própria narradora explicita: “com novas tecnologias, um legado deixamos”. É o resgate da tradição e da ancestralidade, por meio da prática cinematográfica.

O grupo de cineastas que integram o Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky, de Mato Grosso, transformam o próprio fazer cinema em poesia. É a partir do próprio filme, e de sua possibilidade de construir narrativas, sonhos e de afetar realidades, que se tornou possível moldar a concretude das histórias e das experiências. Como é dito em uma cena: “Hoje não posso falar a minha língua, mas não vou desistir de fazer poesia nela”.

É a partir do cinema, um meio tecnológico, que ocorre o resgate e a afirmação do idioma. É essa apropriação de uma outra linguagem que ajudará na preservação da língua Manoki. É o próprio ato de filmar a fala “A língua Manoki viverá” no idioma original que contribuirá para sua perpetuação. A língua Manoki está viva no cinema.

 

HERANÇA ANCESTRALCipó Tupi, de Léo Mendez e Célia Tupinambá

por Victor Adriano Ramos

“Cê ouviu falar da Patioba?”. Essa é a pergunta que movimenta Cipó Tupi, nos fazendo entrar nesse universo que parece estar tão distante de uma realidade urbana, mas que se mostra muito mais familiar do que imaginávamos. O Patioba a que a pergunta se refere é uma espécie de palmeira de onde é possível extrair o cipó do título. As personagens que conduzem essa narrativa nos apresentam a raiz exposta, mostrando a forma correta de remoção do cipó, que podemos visualizar ocupando todo o campo da imagem.

O plano aberto nos ajuda a ter dimensão da imensidão das terras, os cipós parecem ganhar vida e se entranham um no outro, mas há um alerta: ao remover as raízes, elas acabam por matar a “mãe”. É preciso cuidado, existe uma sabedoria para a remoção sem causar desgaste à natureza. Esse conhecimento é passado de geração para geração. Mas na atual circunstância, com o avanço do desmatamento e a não demarcação das terras indígenas, aqueles que lutam para preservar a tradição e a memória de seu povo se veem minados. A mensagem é clara: é preciso demarcação já, para a preservação não só do espaço ocupado, mas das tradições milenares.

A herança ancestral não é manifestada apenas nos cuidados com a natureza. O curta explora a produção artesanal que conduz o dia-a-dia daquela população. São itens como bassouras e cestos produzidos a partir do cipó extraído sabiamente por essas famílias. A presença diária desses objetos está intrinsicamente ligada à memória daqueles que se beneficiam da prática. A personagem principal compartilha sua história de fuga: ainda jovem, ela pensava em abandonar a família, e para isso usaria um cesto produzido por ela mesma, no qual levaria os seus pertences. Ao rememorar esse fato, ela sorri, assim como todos os rostos que o olhar da câmera captura, revelando não só a familiaridade com a prática, mas o bem-estar provocado pelo hábito, herdado dos parentes distantes.

Naturalmente, algumas coisas eventualmente deixam de existir ou não são mais produzidas, e as habilidades do trançado do cipó encontram novas utilidades. Esse processo é natural, mas corre o risco de ser aniquilado pelas invasões, pelo desmatamento. A entrada de outros grupos revela uma outra lógica de se relacionar com a herança dos antepassados. “Nada se acaba, tudo serve pra gente” é a lógica que prevalece dentro da comunidade; “a pessoa não nasce sabendo, tem que aprender”. O que é ensinado dentro da aldeia é justamente a preservação não só da natureza, mas de toda a cultura, que se vê ameaçada pela falta de uma política que assegure os direitos das populações indígenas.

A partir da intervenção estética, a tela se enche dos vários termos que designam os objetos feitos a partir do cipó. Estes não são apenas itens; eles mantêm a função de materializar uma herança ancestral. Cipó Tupi funciona como um documento político, um registro histórico feito através da imagem. A enchente de palavras que domina a tela para pontuar os diferentes produtos e as imagens dos vários cestos e bassouras nos remete às histórias de um povo que tem a sua voz e sua imagem constantemente apagadas. Num grito em consonância com a imagem, exigimos: Demarcação já!

 

FILMES PARA TEMPOS DIFÍCEIS – Mostra Brasil 1 – Estamos Vivos!

por Gustavo Rego

A Mostra Brasil 1 – Estamos Vivos! apresentou filmes que retratam a angústia de viver em meio a uma crise sanitária, econômica e política num país da periferia do capitalismo, onde a crise global ganha contornos mais dramáticos.

Luna Quer Sair, em seus pouco mais de 2 minutos, apresenta de forma doce e divertida o desejo de romper o isolamento e explorar o mundo – o que a protagonista finalmente atinge por meio da arte e da literatura. Uma animação em stop-motion marca a entrada da fantasia na narrativa.

Nervo Errante apresenta uma perspectiva bem menos otimista. Com um estilo que o aproxima do fantástico, o curta apresenta uma designer em home office com problemas financeiros e à beira de uma crise de ansiedade. Parte do filme apresenta uma narrativa clara dos motivos que estão causando ansiedade na personagem. Outra parte é composta por uma montagem acelerada de imagens à primeira vista aleatórias, mas cuja dinâmica sugere o estado mental da protagonista. A combinação perfeita entre o narrativo e o sensorial fazem qualquer pessoa que já sofreu de transtorno de ansiedade sentir-se na pele da personagem. Para fechar, utilizando efeitos especiais surpreendentes, o filme apresenta uma potente metáfora da síndrome do burnout.

Mas ficar em casa é um privilégio em tempos de pandemia. Nesse sentido, é fundamental conhecer o documentário Pandelivery, que apresenta a vida dos entregadores de aplicativo neste contexto. Com uma montagem acelerada, glitches e uma trilha sonora pesada, o filme traz para a sua forma a sensação de urgência vivida pelos entregadores. Sem jamais poder parar, sequer por motivos de doença – pois acarretaria no bloqueio do aplicativo e acúmulo de dívidas –, os trabalhadores arriscam suas vidas no trânsito selvagem e veloz em troca de poucos reais por quilômetro rodado. O filme aproveita o carisma de Galo, líder dos Entregadores Antifascistas, uma dessas grandes lideranças da classe trabalhadora que surgem de tempos em tempos.

Retratando o mesmo problema, temos Gilson, documentário cujo estilo lembra muito o clássico Ilha das Flores. A livre associação que conduz a narrativa, à princípio, parece aleatória, mas contribui não apenas para causar efeito cômico como para compreender a relação entre a parte (o entregador Gilson) e o todo (o capitalismo brasileiro contemporâneo).

Porém, as angústias brasileiras não estão apenas relacionadas à pandemia. Utopia apresenta garimpeiros que enfrentam um trabalho duro e perigoso em busca de um sonho. Mas, como o título sugere, este sonho é inalcançável. Essa contradição entre sonho (belo) e realidade (dura) é expressa no contraste entre, de um lado, planos do desmatamento, do riacho sujo, das marretadas na parede; e, de outro, do rio por onde navega uma criança e das partes da floresta ainda viva. A síntese é retratada pela dança sublime de uma moça suja de terra.

Viver no Brasil não é fácil. De acordo com levantamento feito pela Organização Mundial da Saúde em 2020, o Brasil é o país com mais vítimas de transtornos de ansiedade no mundo e o quinto com mais casos de depressão. A pandemia certamente agravou este quadro. De acordo com pesquisa encomendada pelo Fórum Econômico Mundial em 2021, 53% dos brasileiros relataram piora em seu quadro de saúde mental no último ano. A falta de medidas efetivas de amparo econômico e contenção da disseminação da covid certamente contribuíram para isso.

Os filmes da Mostra Brasil 1 – Estamos Vivos! retratam essa realidade. Por que ver filmes sobre a dificuldade dos nossos tempos justamente quando se está vivendo essa angústia? Porque a arte tem seu papel terapêutico. Somente entrando em contato com as dores, sociais e individuais, é que será possível encontrar as curas. Em Luna Quer Sair, por exemplo, a angústia do isolamento encontra a cura na fantasia e na arte. Em Pandelivery, a cura para a injustiça social é a revolução, indiretamente sugerida por Galo. Mas mesmo que a narrativa do filme não apresente solução para a dor, como em Nervo Errante, o espectador se sentirá provocado a encontrá-la para além do filme.

Apesar dos tempos difíceis, estamos vivos!

QUASE VIVANervo Errante, de Bruno Badain

por Vera Sampaio

Atender ligação de chefe pode ser mais aterrorizante do que bater de frente com muito espírito por aí. Nervo Errante, de Bruno Badain, mostra o horror de um ataque de pânico motivado por um trabalho estressante e precarizado. A protagonista do filme é Valentina, uma ilustradora trabalhando home-office num quarto-e-sala minúsculo e mal iluminado, com milhares de objetos entulhados por todos os cantos, que acaba, de modo surrealista, perdendo a cabeça pela alta demanda de trabalho.

Para mostrar a ansiedade pela qual a protagonista passa ao longo da narrativa, o realizador articulou as cenas de Valentina trabalhando e se comunicando com o chefe com imagens de arquivo num ritmo frenético. É principalmente por meio da montagem que o filme consegue transmitir ao espectador a sensação de pânico pela qual Valentina está passando. De início, vemos imagens aceleradas que representam uma natureza selvagem que a invade, tomando seu corpo. São imagens e sons com grande potência de vida, como fungos, plantas, lesmas e formigas crescendo e se expandido. (Essas imagens dialogam também com o trabalho de Valentina, pois elementos como plantas e cogumelos são típicos de colagens e arte digital, logo é como se o seu trabalho realmente penetrasse na pele e ganhasse vida).

Em seguida, assistimos a filmagens de ratos e macacos presos em laboratório, frangos degolados e prontos pra serem distribuídos em escala. Essas cenas remetem à claustrofobia de uma vida aprisionada e a um trabalho extenuante no qual as pessoas submetidas a ele são desumanizadas e obrigadas a produzir como peças de uma indústria. Assim, essas cenas espelham a condição de Valentina e também a de muitos brasileiros nesses tempos de crises acumuladas e de extrema precarização do trabalho.

A forma de intercalar o som e o silêncio também confere a sensação de caos, nesse filme profundamente estético, que procura o tempo todo mexer com os sentidos do espectador. Os olhos esbugalhados de Valentina e os sons estridentes seguidos de momentos de silêncio nos permitem entrar na mente e no corpo da personagem e sentir sua agitação e exaustão. O toque de chamada do Skype, somado aos milhares de ruídos que se acumulam na tela e na mente de Valentina, nos incomoda, angustia e assombra. Até o avatar de Edney, chefe de Valentina, em close, na ligação, consegue ser realmente assustador. Valentina é desmembrada, seu corpo é torcido e retorcido, ao modo surrealista, inserindo o filme de vez no gênero fantástico.

O trabalho de Valentina gera ansiedade, o que a faz precisar de remédios. Pra conseguir esses remédios, ela precisa trabalhar. Quando o trabalho não paga os remédios, o que acontece? Ela perde a cabeça? Ou esta é decepada? Agora com a cabeça desmembrada do corpo, o zumbido da voz de Edney ecoa sem resposta pelas paredes do quarto escuro e cheio de coisas quase vivas: “Valentina?”.

A CORPORIFICAÇÃO DE UMA MEMÓRIA EXTERNAUtopia, de Rayane de Penha (AP)

por Heitor Montipó Lopes

Após lançar em 2017 um de seus primeiros trabalhos, o curta “Cartas sobre nosso lugar: mulheres do Vila Nova”, a diretora Rayane de Penha chega com uma nova obra, desta vez captando uma essência bem intimista e investigativa de um espírito próximo. Uma filha procura histórias e relatos vividos por seu pai, que morreu no garimpo, traçando um paralelo histórico e social frente à prática econômica e a situação financeira e emocional daqueles que precisam desse trabalho para sobreviver.

A construção narrativa do documentário se utiliza bastante de relatos falados, de indivíduos que trabalharam no garimpo, comentando a prática e trazendo questões que só quem viveu sabe. Mas o conteúdo não impacta por ele mesmo, deve ser acompanhado de uma forma, de uma articulação visual e linguística que potencialize aquilo que é mostrado. Rayane não só dá voz a rostos, mas os preenche de identidade e sentimento. Existe ali uma melancolia bem vigente, uma dor, um pesar que paira enquanto histórias são contadas, imagens acompanhadas de uma melodia lírica, intensificando os laços mais dramáticos. Mas a diretora equilibra sua encenação com sensibilidade e um estilo que abraça o espectador e aqueles sobre quem comenta, fazendo do luto uma mensagem de carinho e lembrança.

Tal aspecto cativante da obra se dá muito pela forma com que a cineasta filma tudo que é fora dos relatos pessoais. O modo de filmar um martelo batendo em uma pedra, a mão passando no rio, os toques do corpo na terra. Por mais banal que isso pareça, contribui para a formação de uma lógica cênica, do estabelecimento de um contato, de uma textura narrativa que trará o espectador para mais perto daquilo que é evidenciado. Não se trata somente de expor um drama, mas também de trazer signos, expressões, movimentos e gestos que consigam transmitir para a tela aquilo que não é dito.

É como se a procura de Rayane não se reduzisse somente a achar relatos ou resgatar as memórias de um homem, mas estender o espírito de corpos para a terra, traçar uma ligação entre o ser e o espaço – indissociáveis dentro dessa prática econômica. A materialização de uma aura terrena e humana se dá por uma aproximação de meios, aspectos e traços reconhecíveis, focando não só em um significado aparente, mas num efeito prolongado e conjunto.

O termo utopia, que dá nome ao curta, remete a algo distante e inalcançável. É como se a diretora, em seu processo, entendesse que realmente existem cenários e desejos que não vão se materializar. Ela se debruça naquilo que é tangível, no que está ao seu alcance, trazendo para sua obra uma fluidez sentimental, sensorial e natural do mundo para o mundo.

CRÍTICA CURTA 2020 – ÍNDICE

MOSTRA COMPETITIVA BRASIL

A identidade como verbo, por Thaynara Brito

ENTRE NÓS E O MUNDO, de Fábio Rodrigo (SP)

Com amor, a um passado que não se repita, por Alexandre Ferraz

INABITÁVEIS, de Anderson Bardot (ES)

Antes arte do que nunca, por pedro a duArte

CONSTRUÇÃO, de Leonardo Santa Rosa (RS)

O Rio Grande das ausências, por Guilherme Novello

 

MOSTRA BRASIL 1: FABULAÇÕES DO AGORA

A fabulação como gesto, por Amanda Soares

LUGAR ALGUM, de Gabriel Amaral (BA)

A propriedade de si e a objetificação do sujeito, por Mariana Peixoto Alves

ALFAZEMA, de Sabrina Fidalgo (RJ)

Da culpa à purificação, por Natália Marques

 

MOSTRA BRASIL 6: IMAGENS DO MUNDO

A identidade e o tempo, por Angelo Pignaton

O TAMBOR ME CHAMOU, de Marcio Cruz (SP)

O tambor chamou muitas, por Nayla Guerra

AOS CUIDADOS DELA, de Marcos Yoshi (SP)

Retratos do presente, por Lira Kim

 

MOSTRA LATINO-AMERICANA

Os ásperos tempos na América Latina, por Jade Louisie Felippe

OS ANÉIS DA SERPENTE, de Edison Cajás (Chile)

Materializando possibilidades históricas, por Suete Souza da Silva

KINI, de Hernán Oliveira (Uruguai)

Nós, os humanos, por Lucival Almeida

 

MOSTRA NOVAS ÁFRICAS

Olhos abertos à África, por Cacá Espíndola

BABLINGA, de Fabien Dao (Burkina Faso)

O fantasma sedutor do passado, por Pedro Reis Guimarães Rosa

ZUMBIS, de Baloji (Congo)

Uma geração de zumbis digitais, por Lecco França

 

MOSTRA INTERNACIONAL 1 E 2

O nosso infame upgrade, por Alexande Diniz

UM MUNDO MAIS HUMANO, de Gavin Hipkins (Bélgica, Nova Zelândia)

Por um mundo menos humano, por Pedro Pimenta

CATIORROS, de Halima Ouardiri (Marrocos)

O esvaziamento da existência e a beleza da diversidade, por Gustavo Furtuoso

 

MOSTRA LIMITE 1: BRUTALISMO

A força bruta da matéria, por David Terao

A MAIOR MASSA DE GRANITO DO MUNDO, de Luis Felipe Labaki

São Paulo não contém o seu júbilo, por Douglas Manolo

FORMAS CONCRETAS DE RESISTÊNCIA, de Nick Jordan (Reino Unido)

Esperança em forma de concreto, por Renato Teixeira de Magalhães

 

PROGRAMA TERROR NA TELA

Panorama sobre medos solitários, por Murilo Morais

DESERTO ESTRANGEIRO, de Davi Pretto

O horror como ressignificação das brutalidades históricas, por Antonio Victor Cardozo

NA PRAÇA ESCURA, de Nicholás Schujman (Argentina)

Os mortos-vivos, por Demerson Souza

A IDENTIDADE COMO VERBO – Mostra Competitiva Brasil

por Thaynara Brito

Na Mostra Competitiva Brasil do 31º Festival Internacional de Curtas, não há destaque para a exotificação barata ou o tradicionalismo repetitivo de dramas burgueses afogados em irrelevância. Ao contrário, é aqui que narrativas relegadas à margem surgem com força em reflexão e reação à realidade política do momento nacional. “Não entenderam minha história!”, frase do menino protagonista de Jardim fantástico, é oriunda de uma brincadeira mas parece resposta direta a um momento de extrema efervescência política, quando um governo autoritário promove esquecimento histórico com o apagamento da memória brasileira preservada em seu cinema, rompantes de brutalismo que ameaçam a Cinemateca de São Paulo e a própria realização fílmica. Mas no filme de Fábio Baldo e Tico Dias acompanhamos uma visão indígena fantástica e sincera, que tensiona a realidade com a precisão técnica de sua forma e o estranhamento de suas atuações, da espera por não se sabe o quê e de sua direção de arte curiosa, que relaciona figuras mágicas da floresta a dispositivos tecnológicos.

Recorrente nesta edição da mostra e tradição latina em resposta a regimes autoritários, o gênero fantástico aparece como reflexo dos medos e anseios individuais e coletivos, usa do estranhamento e da realocação para reagir a uma realidade incompreensível em sua tendência retrógrada e assustadora. É o caso do pernambucano Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho. Partindo da busca por Roberta, somos deixados com um objeto misterioso e inexplicável que une as mulheres e indica uma rede de segurança afetiva e revolucionária que se opõe à violência do país que mais mata pessoas trans no mundo. Roberta retorna ao fim, como heroína intergaláctica, e na poética deste desfecho inesperado começa o paralelo com outro curta de nome parecido, Inabitáveis.

Se naquele um mundo intolerante é inabitável, neste quase ensaio é com grande sensibilidade que Anderson Bardot se inspira no espetáculo de mesmo título para questionar o lugar e a visão que diminuem os corpos e existências fora do padrão, no primeiro plano já revelando sua potência ao filmar uma coreografia em meio a um tenso jogo de luz e sonoridade pontuais. A conexão que o realizador faz entre afetividade e resistência pela existência é gradual. Está na leitura de arquivos do período escravagista; na dança que questiona presenças colonialistas na paisagem urbana da cidade de Vitória; e numa personagem que surge em tela vulnerável frente a seus agressores, mas que encerra o filme com uma performance ao som da chuva que é dor, liberdade e grito.

Similar afetividade identitária existe em Perifericu. Feito de maneira coletiva em São Paulo – direção e outras funções compartilhadas – por quem vive e sente as questões retratadas, carrega em si um trânsito acurado entre o ficcional e o documentário, talvez um irmão mais maduro de Bonde, filme também paulista exibido na 30ª edição do festival. Sobre estes dois e outros que têm se alinhado numa tendência a realizações vibrantes e relevantes: que respiro bem-vindo, e que os favela movies da burguesia não retornem nunca mais.

Com narrativa linear, Receita de caranguejo, de Issis Valenzuela, apresenta em longos planos estáticos uma mãe e sua filha lidando com perda e descoberta. No meio de grandes quadros abertos do céu cinzento e do mar da Baixada Santista, as duas se destacam da realidade, entre o desenho de som elaborado, esquisito e furtivo. A mãe é fala, a filha é silêncio. Um jogo de atuação que transborda afetividade compartilhada e aponta a grande presença de Preta Ferreira, atriz que é uma das lideranças do movimento de luta por moradia em São Paulo.

Numa potência das questões sociais que permeiam toda a curadoria, está a viagem angustiante proposta por A morte branca do feiticeiro negro. O filme constrói através de imagem de arquivo a ambientação para um relato que não se ouve, mas se lê na tela, e nessa obrigatoriedade do olhar em associar imagens e palavras se aprofunda o choque à medida em que a carta de Timóteo vai sendo exposta. O filme de Rodrigo Ribeiro possui qualquer coisa de indizível. Em paralelo com o conceito de punctum cunhado por Roland Barthes, atinge, transpassa, desperta e fere. A ele não se assiste, se experimenta.

Ao fim, a curadoria desta edição nos apresenta diversidade de realizações que dialogam principalmente na união identitária e afetiva como grande forma de reação política. Por um lado, assegura ruptura, com filmes poéticos e alguns processos de produção fora da curva; por outro, ainda mantém uma predominância viciada na metade mais chuvosa do eixo Rio-São Paulo, com sete dos 12 filmes selecionados sendo paulistas.

COM AMOR, A UM PASSADO QUE NÃO SE REPITA – Entre nós e o mundo, de Fábio Rodrigo (SP)

por Alexandre Ferraz

Entre nós e o mundo (2019), de Fábio Rodrigo, parte de um assunto pesado: a vida de uma mulher negra, grávida, após ter perdido o filho mais velho assassinado pela polícia durante uma revista. Mais do que um drama para a mãe, uma revoltante realidade sistêmica nas periferias do Brasil. Apesar de tudo isso, o tratamento dado pelo diretor ao tema desemboca em esperança, configurando uma sincera homenagem, sem perder a seriedade.

O diretor intercala em seu relato técnicas de documentário e ficção. O filme começa com um grupo de jovens cantando na escada de uma favela, cena filmada de maneira aparentemente bem ensaiada, dando a impressão de se tratar de uma ficção. Em seguida, vemos imagens da comunidade de Vila Ede enquanto ouvimos depoimentos de familiares sobre o assassinato do menino Theylor pela polícia. É aos poucos que o filme se assume mais como um documentário, ainda que não deixe de lado mecanismos típicos de um cinema ficcional, como uma postura às vezes encenada dos integrantes da história.

Tal linguagem não é novidade no trabalho do diretor, que aplicou essa ficcionalização do documental de forma até mais atuada em seu curta de estreia, Lúcida (2015), que discorre sobre a ausência da paternidade e os sofrimentos de uma mãe solteira na periferia. Nos dois trabalhos, Fábio traz o familiar e o pessoal para a tela. Em Entre nós e o mundo, notamos que a história em foco é a de sua prima, Erika, ao ouvirmos áudios de whatsapp trocados pelos dois enquanto vemos imagens de arquivo pessoal. Neste momento, o diretor explicita seu método de pesquisa, o que passa a impressão que o filme foi tomando forma enquanto era feito. Essa presença mostra a coragem do diretor e principalmente de Erika ao exporem seus íntimos para contar suas histórias.

No entanto, ao contrário de seu primeiro filme, o diretor traz aqui uma abordagem mais delicada sobre um tema real. É bem verdade que, ao descobrirmos o acontecimento, sente-se um peso e uma imensa tristeza. E há ainda a preocupação da mãe com a segurança de seu outro filho jovem. Mas o filme em si situa-se após os primeiros estágios de um luto e foca na atitude da mãe em deixar as recordações terríveis para trás e seguir vislumbrando o que há por vir – postura revelada pelo foco na gravidez e no nascimento de sua filha.

Fábio concretiza sua visão voltada a seguir em frente com uma sequência de imagens de crianças convivendo nas ruas da favela, ruas estas anteriormente vazias. Quem sabe algumas dessas crianças vão conseguir concretizar seus sonhos, diferente dos mais velhos. Quem sabe as ruas da favela serão ocupadas por seus moradores livremente, e não por uma violência racista e opressora. A trilha musical de fundo explicita a postura de Fábio e Erika de enxugar as lágrimas, lembrar as boas recordações e continuar, por mais melancólico que isso possa ser no início. É assim que o diretor conclui sua homenagem a todos os Theylors presentes por aí, com a esperança de que os mais jovens possam ter outros desfechos em suas histórias.

ANTES ARTE DO QUE NUNCA – Inabitáveis, de Anderson Bardot (ES)

por pedro a duArte

Inabitáveis acompanha uma companhia de dança contemporânea sediada em Vitória, Espírito Santo, durante seus ensaios para o próximo espetáculo. Enquanto os bailarinos principais parecem ter dificuldades para encontrar seus personagens, o coreógrafo conhece Pedro, uma jovem que não se identifica com o gênero masculino.

Dessa forma, o curta irá se valer de longas sequências de dança para refletir sobre a vivência negra e transgênera, principalmente no ponto em que elas se mostram semelhantes. Após um prólogo, somos apresentados ao coreógrafo enquanto ele faz uma pesquisa para seu segundo trabalho como guia de sítios históricos: ele lê sobre quanto custava um escravo no ciclo do café – em paralelo, vemos estátuas de padres e colonizadores. Depois, somos apresentados a Pedro enquanto ela é agredida por rapazes mais velhos que cospem em seu rosto. A violência se dá presumivelmente porque a garota não performa uma cisnormatividade – a cena é crua e nos aproxima da angústia da personagem.

A obra coloca os corpos negros e transgêneros como impossíveis de serem habitados, uma vez que em toda oportunidade a sociedade se prontifica para massacrá-los. Mas Pedro é incansável, capitã de sua alma: ao conhecer o coreógrafo, ela não se contenta com o desfecho sangrento de um evento histórico sobre uma revolta de escravos e tenta propor um novo final. Se por um lado a geração do coreógrafo parece ser mais resignada, a geração de Pedro se recusa a aceitar que as injustiças sociais continuem vigentes.

A jovem participa de uma oficina na companhia, e a narrativa do curta sugere que foi ela que inspirou os bailarinos para que finalmente encontrassem seus personagens. É aí que começa a maior sequência de dança do filme: após um dos bailarinos ser abençoado por uma “rainha das fadas” (interpretada pelo mesmo ator que faz Pedro), vemos os bailarinos realizando a sequência de dança de seu espetáculo em diversos pontos da cidade de Vitória, que vão desde a laje e ruelas de uma favela até prédios históricos – a edição parece teletransportar os bailarinos durante seus movimentos. Por muito tempo, a comunidade LGBT se viu obrigada a expressar seus afetos, mesmo que gestos de carinho singelos, em ambientes fechados por conta do medo e da opressão; agora, nós os vemos povoando a cidade, se beijando seminus em frente a igrejas ao mesmo tempo em que o corpo negro sai da favela para também ocupar prédios históricos e se ressignifica. A sequência se encerra no Teatro Carlos Gomes, inaugurado em 1927, onde os bailarinos são ovacionados, aplaudidos de pé pelo público – através deste evento tão significativo, os vemos habitando um espaço que durante muito tempo lhes foi negado.

Se na primeira vez que vemos Pedro ela está sofrendo uma agressão, na última vez que a encontramos ela está mais uma vez lutando pelo futuro que sonha ter enquanto bailarina. Dançando na chuva, a garota apresenta sua coreografia aos bailarinos e coreógrafo da companhia. É como se a chuva e a dança lavassem sua alma, renovando-a, deixando-a mais forte.

Através da dança, uma forma artística que trabalha em primeira instância com o corpo, Inabitáveis traz a Arte como uma maneira de tornar possível habitar estes corpos e ocupar espaços que foram negados. Quando direitos básicos nos são violentamente retirados e nossas vidas empurradas para a margem, a ação criativa é uma forma de resistência e revolta, uma forma de propor e conquistar um novo mundo.